Parte 4
Depois do
velório, entrei no carro dos meus tios, e tio Raul nos levou até a minha casa,
deixando-nos lá sozinhas. Eram quase cinco da tarde quando chegamos, e eu
estava exausta, tanto emocional quanto fisicamente. Eu estava acostumada à
presença dos meus tios – crescera tendo-os em minha vida – mas agora que eu sabia
que durante todo aquele tempo eles tinham escondido coisas de mim, de repente
não me sentia mais tão à vontade com eles. Para mim era como se eu estivesse
cercada de pessoas estranhas, que sabiam tudo de mim sem que eu soubesse o
suficiente sobre elas. A sensação de solidão era excruciante.
Na varanda,
encontramos sobre a mesinha alguns cartões de pêsames e também vasilhas com
comida, como uma lasanha, salada, bolos e biscoitos caseiros. Todos com um
cartãozinho. Senti gratidão e simpatia por aquelas pessoas, vizinhos que nem
moravam tão perto e que eu mal cumprimentava, e que estavam demonstrando
solidariedade. Eu me sentia grata também pelo fato de que por causa da
generosidade deles, eu não precisaria comer a comida da minha tia.
Eu e Tia
Atena levamos tudo aquilo para dentro e guardamos. Ela colocou a lasanha
semipronta no forno e começou a pôr a mesa para o jantar. Com toda aquela
comida, eu concluí que não teria que me preocupar em cozinhar por pelo menos
uma semana, o que é um alívio para quem está passando por um momento de luto.
Nós comemos –
ou seja, tia Atena devorou a maior parte da lasanha, enquanto eu dei apenas
algumas garfadas, desmanchando o resto no prato em uma massa disforme e
repugnante. Fiquei me perguntando se algum dia eu teria fome outra vez. Depois
que eu a ajudei a limpar a cozinha, nós nos sentamos no sofá da sala, cobertas
pelas mantas que estavam sempre jogadas sobre o sofá. Acendemos a lareira, pois
a noite era fria, e deixamos apenas as luzes dos dois abajures acesas. E então
ela me contou a história dos meus pais.
Meu pai era
um homem casado quando conheceu minha mãe. O nome da primeira esposa dele era
Fernanda. Aquela informação, por si só, já me deixou boquiaberta. Ele tinha 36
anos, e minha mãe, 25 quando se conheceram em um bar. Eles começaram a se
relacionar naquela mesma noite. Meus tios sabiam de tudo, pois eles namoravam
naquela época, e os quatro – meu pai, Fernanda e meus tios - saíam juntos
algumas vezes. Naquela noite, Fernanda tinha ficado trabalhando até mais tarde.
Minha tia me disse que meu pai e minha mãe trocaram olhares durante alguns
minutos (meu tio Heitor tentando fazer ele não perder o juízo) e depois ele a
convidou para dançar. No começo do relacionamento do meu pai com minha mãe, meu
tio Heitor foi totalmente contra, pois não gostava da ideia de meu pai estar
traindo a esposa com quem estava casado há cinco anos e meio. Tia Atena, porém,
passou a gostar muito de minha mãe e as duas ficaram muito amigas.
Fernanda, a
primeira esposa de meu pai, era uma pessoa difícil e problemática, muito
ciumenta, quase sempre em estado depressivo. Meu pai se apaixonou por ela
porque ela era extremamente bonita, segundo minha tia me contou. A paixão dos
dois era puramente sexual, quase uma doença da qual eles não conseguiam se
curar, mas ela não sentia que havia amor entre eles, pois na opinião dela,
nenhum tipo de amor poderia causar tanta discórdia e tantos problemas. Na cama,
eles se davam perfeitamente bem, segundo confissões da própria Fernanda a ela, mas
fora dela, eram como água e óleo. Mesmo assim, agiam como se não pudesse
respirar sem a presença um do outro, até que Bia – minha mãe – surgiu.
No começo,
meus tios pensaram que seria apenas um caso passageiro, mas à medida que o
tempo passava, eles viam que era muito mais que isso. Logo, a paixão sexual que
meu pai nutria por Fernanda diminuiu, e ela percebeu logo que alguma coisa estava
errada. Mas meu pai não tinha coragem de se separar de Fernanda, pois tinha
medo de que ela cumprisse sua promessa de se matar caso ele fosse embora. Ao
mesmo tempo, Bia também cobrava dele uma escolha. Fernanda desconfiava que ele
estava tendo um caso, mas tio Heitor o ajudava a encobrir tudo, e minha tia
Atena também procurava se envolver o menos possível naquela história, já que
era amiga de Fernanda e tinha se tornado também amiga de Bia.
E quando meus
avós - pais de Bia - descobriram quem era o homem com quem a filha deles vinha
saindo, a pressão aumentou ainda mais. Não queriam o escândalo de ter sua filha
sendo amante de um homem casado. Fizeram tudo para separar os dois, mas não
conseguiram. Quanto mais tentavam, mais os dois se uniam. Até que eles acharam
que a única saída seria procurar Fernanda e contar tudo a ela.
E foi o que
eles fizeram. Meu pai e minha mãe já vinham se relacionando há quase um ano
quando aquilo aconteceu. Exatamente naquela época, minha mãe ficou grávida.
Quando Fernanda soube de tudo, ela procurou minha mãe e pediu a ela que se
afastasse, mas quando minha mãe disse que estava grávida, Fernanda não
suportou, já que ela mesma não podia engravidar. Naquela mesma noite, Fernanda
cometeu suicídio.
Aquilo
arruinou o relacionamento que meu pai poderia ter tido com meus avós para
sempre, pois meus avós culpavam meu pai, e ele, aos meus avós, pelo que tinha
acontecido com Fernanda (eles ficaram com muita pena dela). E a família de
Fernanda passou a perseguir meu pai e minha mãe, o que fez com que ele vendesse
a casa e se afastasse, e foi quando fomos morar em Lumiar. Mesmo desaprovando o
relacionamento, meus avós jamais deixaram de proteger a filha, e fizeram
questão de dar a ela uma casa decente para morar, mesmo ela tendo se casado com
um homem que eles detestavam. Pelo menos, sua filha e sua neta teriam uma vida
confortável, como eles mesmos disseram. No começo, meu pai não queria morar na
casa, mas com o tempo, achou que seria egoísmo privar a mim e à minha mãe de
conforto apenas por causa do seu orgulho ferido.
Naquele
trecho da história, senti raiva de meu pai; a vida toda, ele me dissera que
meus avós não gostavam dele porque ele não era rico, e que eles só nos
presentearam com uma casa porque não queriam que os seus amigos ricos ficassem
sabendo que nós morávamos em seu apartamentinho. Privou-me de ter um
relacionamento com meus avós e minha tia e primos porque não queria que eu
soubesse da verdade. Minha tia respondeu, à minha observação:
- Jamais
duvide do amor do seu pai por você. Ele cometeu muitos erros. Talvez mais erros
do que a maioria das pessoas, mas depois ele caiu em si, ele compreendeu o
quanto ele tinha magoado Fernanda e sua mãe, e se arrependeu. Se ele não queria
que você ficasse sabendo da verdade, foi apenas por medo de perder você. Eu e
seu tio sabemos o quanto ele sofreu depois que sua mãe se foi. A vida para ele
nunca mais teve sentido, ele nunca mais conseguiu amar outra mulher.
No fundo, eu
sabia que ela estava dizendo a verdade, mas não era fácil para mim aceitar que
meu pai não era o homem que eu crescera acreditando que fosse. Eu não sabia
quase nada sobre ele durante todo o tempo em que cresci. E agora eu ficava
sabendo que ele era um homem egoísta, mulherengo e tóxico. Minha tia arregalou
os olhos ao ouvir aquilo:
-Não diga
isso, Valentina, porque a vida particular dele era a vida particular dele, e
você... você era a melhor parte dele.
Otávio faria qualquer coisa para te proteger.
Os olhos dela
se encheram de água, e percebi que minha tia Atena também tinha sido apaixonada
pelo meu pai. Ao falar dele, os olhos dela brilhavam, seus lábios tremiam. Ela
estava a ponto de explodir. Aproximei-me dela:
-Tia Atena...
você era apaixonada pelo meu pai não era?
Ele
enrubesceu e tentou negar, mas eu insisti:
- É claro que
era. Senão, por que teria passado tempo tomando conta de mim, uma menina que
sequer é seu parente de sangue?
Ela levou a
mão à garganta, e vi o rosto dela se transformar em uma careta, antes que as
lágrimas pulassem de suas órbitas. Fiquei sem saber o que fazer, então
permaneci sentada perto dela, sem tocá-la. O choro de tia Atena era convulsivo.
- Que baita
cliché, não é, uma mulher se apaixonar pelo próprio cunhado. Sim, você está
certa, Valentina, eu fui apaixonada por ele, mas ele nunca ficou sabendo. E eu
te peço que jamais comente nada com seu tio Heitor. Ele não merece isso.
Eu me
levantei, caminhando até o outro lado da sala, e me voltei para encará-la:
-E quanto a
Natália, tia?
Ela
enrubesceu, respirando profundamente:
-Ela foi
amante de seu pai enquanto ele era casado com sua mãe. Aconteceu nos últimos
dois anos de casamento, antes de sua mãe ir embora. Ela já estava doente na
ocasião, e acho que Natália foi uma válvula de escape.
-Pensei um
pouco sobre aquilo antes de perguntar:
-E onde ela
está agora?
-Não sei. Ele
deixou de vê-la depois que sua mãe morreu. Nunca mais se encontraram.
-Você a
conheceu?
-Superficialmente.
Ela era frívola, engraçada... como eu disse, acho que foi apenas uma válvula de
escape.
Concordei com
a cabeça, pensando que a minha ida toda, eu nunca soubera muito sobre meu
próprio pai. Caminhei de volta até o sofá, e segurei as mãos de tia Atena,
fazendo-a me olhar de frente:
-O que mais
eu não sei sobre esta família, tia Atena? Seria um bom momento para me contar.
Ela negou com
a cabeça, colocando as mãos sobre o colo:
-Não há mais
nada, eu juro. Mas agora seu pai se foi, tudo isso ficou no passado. Você
deveria deixar o passado no passado.
Achei que
aquele era um bom conselho, mas era mais fácil falar do que fazer. Pensei que
eu precisaria de tempo para digerir tudo aquilo. Então, fui para o meu quarto.
Tirei a roupa e entrei na banheira, enchendo-a com espuma de banho e água bem
quente. Foi reconfortante o calor da água sobre a minha pele, que ficou
avermelhada. Quando saí da banheira, uma hora e meia depois, a água estava fria.
Depois, enfiei uma camiseta velha que tinha sido de meu pai sobre a cabeça e me
deitei na cama desarrumada da noite anterior. O sono foi quase instantâneo. Há
muito tempo eu não dormia daquele jeito.
Acordei na
manhã seguinte com o barulho do aspirador de pó. Passava das dez da manhã. Levantei-me,
escovei os dentes e fui para a sala, onde minha tia Atena estava finalizando a
limpeza. Tudo estava limpo e organizado. Ela ergueu os olhos para mim,
apontando para a cozinha:
-Bom dia,
querida. Tem café e panquecas na cozinha. Sirva-se enquanto arrumo o seu
quarto.
-Bom dia,
tia... não precisava arrumar nada...
-A casa
estava uma bagunça, e muito empoeirada. Parecia que não via uma faxina há
meses. Aproveitei e coloquei as mantas do sofá ao sol, não se esqueça de
recolhê-las mais tarde. Parece que vai chover.
Me lembrei
que a última faxina que eu fizera tinha sido mesmo há meses.
Sentei-me à
mesa, e devorei as panquecas. Meu apetite tinha voltado. A casa cheirava bem, e
o chão de madeira brilhava de novo. Sobre o fogão, meu almoço me esperava entre
dois pratos sobre uma panela de água para que eu o esquentasse em banho-maria
quando tivesse fome. Me senti grata. O ruído do aspirador recomeçou, e quando
acabei de comer, cerca de dez minutos mais tarde, minha tia passou carregando
minhas roupas de cama:
- Troquei sua
roupa de cama, vou colocar esta para lavar. Mais tarde, estenda-a para terminar
de secar. Daqui em diante, você terá que fazer essas coisas sozinha ou então
contratar alguém.
Eu não disse
nada, mas estava acostumada a fazer metade do serviço de casa. Às vezes,
tínhamos uma arrumadeira, mas na maior parte do tempo, eu e papai nos virávamos
sozinhos.
Ela
desapareceu em direção a área de serviço, e segundos depois escutei o barulho
da máquina trabalhando. Depois que terminou de arrumar tudo, tia Atena me
abraçou, dizendo:
-Se precisar
de mim, sabe como me encontrar. Quer que eu passe aqui mais tarde?
Neguei com a
cabeça:
-Não tia,
obrigada. Obrigada por tudo, obrigada por me dizer a verdade.
Ela saiu e
fechou a porta atrás de si.
Eu fiquei
sozinha.
Começaria
aquele que foi o dia seguinte ao funeral de meu pai, e o resto da minha vida
sem ele.
(continua)
Gracias por compartir tus pensamientos con nosotros
ResponderExcluirA acompanhar a história.
ResponderExcluirIsabel Sá
Brilhos da Moda
Olá Ana.
ResponderExcluirVim ler um pouco aqui
e deixar meu abraço
de feriado
Bjins
CatiahoAlc.😍💖
a passar por cá para acompanhar a história!
ResponderExcluirIsabel Sá
Brilhos da Moda
É esmagador quando se descobre que parte da nossa vida foi sustentada na mentira e omissão.
ResponderExcluirCada vez mais presa na história.
Brisas doces *