domingo, 8 de setembro de 2013

O VOYEUR





Seguia-na com os olhos. Mais do que apenas com os olhos: com a parte mais negra de sua alma. E enquanto o fazia, morrendo a cada sorriso dado por ela, sentindo seu sangue envenenar-se a cada sucesso anunciado, e seus membros, enregelarem-se a todo inclinar de cabeça, postura e passo, negava a si mesmo a chance de aproveitar as próprias horas em alguma atividade que pudesse edificar-lhe o espírito ou promover-lhe o progresso financeiro e social.

Dormia e acordava pensando nela. De dentro de sua escuridão, acreditava que tudo o que ela fazia, era um gesto deliberado para atingi-lo. Enquanto isso, ela passava, alheia a tudo o que acontecia na alma dele, embora sentisse, de vez em quando, ao estar sozinha e pensativa, uma certa atmosfera sombria ao seu redor - que ela logo espantava com alguma coisa útil, como um passeio ou a leitura de um bom livro.

Ele não sabia, mas ao segui-la daquela maneira, o ódio e o desprezo que, dizia si mesmo, sentia por ela, transformava-se em um vício quase sexual,  um prazer mórbido e inexplicável.

Ele pecava, pois ao olhá-la, não entendia como ela poderia estar recebendo tanta atenção, sendo tão simples como era, e toda a sua obra, tão pequena e obtusa, insignificante e de mau gosto, enquanto a dele, sempre tão centrada e firmemente alicerçada nos pilares do estudo, da dedicação e do eruditismo: as palavras sempre cuidadosamente selecionadas a fim de darem ao interlocutor uma boa impressão, e a certeza de sua educação superior, que também ajudava-no a intimidar opiniões contrárias à sua e reafirmar suas crenças e convicções como sendo as mais corretas. Sabia que o caminho das palavras, quando ornado de rebuscadas intenções e obscuras afirmações, dava aos incautos a impressão de grandeza de espírito e inteligência superior à da maioria. Assim, achava-se incontestável, dominador, eloquente. Não mais que de repente, aquela mulher simples, de vocabulário raso e chinfrim, tomava-lhe a atenção! Como ela ousava?

Ela pecou pela sua demasiada transparência e simplicidade; não sabia que os abutres sentem-se sempre atraídos pela carne fresca descuidadamente exposta, e que ao contrário do que se pensa, eles a preferem à carniça fétida  e em decomposição, que é o que geralmente lhes é oferecido pela natureza. Ela jogava palavras livres e descuidadas sobre o papel, não se preocupando em dar a elas a proteção que as palavras merecem para que se tornem eternas; a eternidade, para ela, era uma fraude, um engôdo, e se suas palavras alcançassem a eternidade da manhã seguinte, mas falassem dentro de algum coração mais sensível, sua missão tinha sido cumprida. Não percebia o quanto as desperdiçava!

Ele se contorcia e se debatia do alto de seu pedestal, esforçando-se para lá permanecer, rebatendo todos os que lhe eram contrários ou contrários às suas idéias com a força e a ira que o medo lhe conferia. Usava de argumentos torpes, mas enfeitados pelo reboco do falso eruditismo, tornando seu discurso sedutor e cheio de falsas verdades. 

Ela caminhava bem rente ao solo, os pés descalços sujando-se na lama criadora da vida, os olhos bem próximos às flores miúdas que cresciam entre o mato ao longo do caminho, os cabelos revoltos ornados pelas folhas secas da vida que caíam indiferentes das árvores do tempo, e banhava-se nua nas águas claras do rio das palavras sem saber que era obcecadamente observada pela a fúria e o nojo de um voyeur apaixonado e mortal. Mas enquanto se banhava, ela sentia um bafejar fétido em sua nuca, e olhava em volta, assustada, mas nada vislumbrava. 

Enquanto isso, a fúria e a ira dele cresciam cada vez mais, e tornou-se necessário que mais seguidores passassem a odiar seu desafeto, além dele mesmo; assim, começou a tecer ameaças mais óbvias, fazendo alusão àquela que andava na lama do solo da vida, incitando os outros seres, atiçando-lhes a curiosidade a fim de tê-los às mãos no momento em que ele decidisse que era chegada a hora de revelar o nome de seu desafeto! Mas precisava, para isto, que tivesse argumentos sólidos. Continuou vasculhando os passos dela, a procura de alguma coisa que pudesse servir-lhe de justificativa para suas intenções, e assim passou a ver-se em cada palavra por ela proferida, cada frase, cada suspiro. Tudo o que ela dizia passou a ser para ele um espelho, no qual ele era obrigado, por ele mesmo, a enxergar aquilo que mais o incomodava a respeito de si próprio. Diante daquilo, recorreu ao seu último recurso: a calúnia!

Criou histórias mal-cheirosas e absurdas a respeito dela, e passou a espalhá-las abertamente, de forma a atraí-la para o seu covil e expô-la; pois sabia muito bem que ninguém é capaz de perceber-se caluniado e permanecer calado!

E mais uma vez, ela pecou, caindo na armadilha que ele havia montado. Mas ela, tendo finalmente a certeza sobre de onde vinham as emanações de enxofre que a vinham perturbando, tomou uma atitude rápida e eficaz: apontou aquele que a feria! Ao invés de usar dos mesmos recursos dele, ou seja, a grosseria, a infâmia e a ameaça, repeliu-o com clareza. Respingou-o com a lama da vida que havia em seus pés, a qual queimou o rosto falsamente imaculado daquele falso cavalheiro. 

Ele, fingindo-se ferido de morte, retomou seu discurso rebuscado e passou a choramingar entre seus amigos, mostrando-lhes a pele maculada, mas escondendo as setas pontiagudas com as quais mirara seu alvo.

E ela voltou a caminhar descalça sobre a lama da vida, respirando o perfume das flores e tendo as folhas secas das árvores ornando seus cabelos. Seguiu pelos caminhos preferidos, onde morava a sua poesia, a sua crônica do viver, a sua história ainda não terminada.

E ele? Obteve a falsa piedade de falsos amigos. Aqueles que lhe davam suporte logo o esqueceriam, pois constavam no mural de suas falsas lágrimas apenas para que eles mesmos desfrutassem de um minuto que fosse de celebridade. A memória, uma das coisas mais fugazes da vida, logo os transformaria a ambos em esquecimento, único caminho que aguarda a todos no futuro. 






4 comentários:

  1. Boa noite Ana.. muito talentosa nesta arte de contista que eu ainda não domino.. temos que ter uma imaginação muito boa para criar cenas e cenarios.. te desejo uma linda noite até sempre

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  2. Olá!!!, Deus te abençoe, tenha uma semana encantadora, amiga realmente o seu texto muito lindo amei e apreendi, o seu blog é maravilhoso continue assim, S-U-C-E-S-S-O
    Já estou te seguindo, aguardo a retribuição.
    Canal de youtube: http://www.youtube.com/NekitaReis
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    Blog: http://arrasandonobatomvermelho.blogspot.com.br

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  3. Olá amiga Ana
    Mais um conto que sempre nos deixa querendo ler outros mais, como disse a amiga acima, uma arte e isso você tem dentro de si

    Abraços,
    Trocyn Bão - Thiago

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  4. Excelente trama, cujos passos se sucedem com lógica. Gostei muito, amiga Ana, inclusive dos fatos digamos 'psicológicos' que você aborda.
    Abraço.

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