terça-feira, 26 de agosto de 2014

Minhas Tias - Parte IV

Frésias



Minhas Tias - Parte IV


Passamos - eu e meu pai - um ano viajando pelo mundo. Percorremos a Europa de trem, parando em cada país pelo tempo que desejássemos. às vezes chegávamos em alguma pequena e encantadora cidade, onde permanecíamos por semanas ou meses, até que decidíamos seguir em frente. Visitamos vinícolas na Itália e na França,  cruzamos continentes, mares, e muitas pontes. Livramo-nos de um jejum de silêncios que nos envolvera durante anos, dançando tango na Argentina, ouvindo música clássica em Viena, aproveitando o carnaval de Nova Orleans, dançando no México no Dia de Todos os Santos, aprendendo alguns passos de danças africanas ao som de canções tribais. Foram momentos só nossos, nos quais nem sequer tivemos tempo para chorar ou sentir saudades de mamãe, pois ambos sabíamos (mas não pronunciávamos tal heresia) que, se ela estivesse viva, estaríamos ainda relegados a deslizar no silêncio daquela casa triste.

Foram tempos realmente felizes. Mandávamos à Nana cartões postais de várias partes do mundo, que ela guardou numa caixinha de papelão fechada por uma fita coral que às vezes ornara os cabelos de minha mãe. Não tínhamos pressa. Aos dezessete anos, eu terminara a escola e de repente decidíramos sair pelo mundo naquele ano sabático.

Meu pai deixara à Nana ordens expressas para que ela trocasse cortinas, almofadas, colchas, toalhas e tapetes da casa na nossa ausência, substituindo tudo por padrões mais modernos, leves e coloridos. Também mandou que a casa fosse repintada em tonalidades alegres e aconchegantes, substituindo o bege doentio das paredes.

 Meu pai ordenou-lhe que apenas os aposentos de minha mãe fossem mantidos como estavam, talvez porque acreditasse que aquela seria uma maneira de preservar sua memória naquela casa de impedir que ela se transformasse nalguma espécie de fantasma que vagasse por ali em busca de um espaço só seu.

Quando retornamos, finalmente, e uma Nana chorosa e saudosa abriu-nos as portas da casa, Reparei nas cortinas esvoaçantes, branco-imaculadas que agitavam suas saias como se dançassem ao sabor do vento, e que substituíam as pesadas cortinas de brocado que muitas vezes impediam que entrasse luz nos cômodos. Admirei os novos padrões florais discretos dos sofás, e as almofadas coloridas sobre eles, os tapetes felpudos menores que substituíram os carpetes que encobriam o piso (que antes evitavam que os ruídos dos nossos passos não repercutissem até o quarto de minha mãe), e experimentei pisar o assoalho encerado de madeira, ouvindo, pela primeira vez, meus passos ecoando pela casa. Adorei as novas cores das paredes - cada cômodo de uma cor em tom pastel - e também minha nova colcha rosa-choque. Meu pai fizera muito bem em confiar no gosto de Nana. Havia também flores em vasos espalhadas por toda casa, e as janelas abertas deixavam entrar o perfume das flores de laranjeira que abundavam no pomar.

Retornamos para uma nova casa, e uma nova vida.

Mas senti necessidade de despedir-me, de vez, das memórias de minha mãe.

Era uma tarde de primavera, e sem nada dizer ao meu pai, dirigi-me para o cemitério a fim de visitar o túmulo de minha mãe pela última vez - estava decidida a não mais voltar lá, pois sempre ficava deprimida em cemitérios, e afinal de contas, acreditava que aqueles que se foram não estavam lá. Levava comigo um ramo de margaridas que colhera em nosso próprio jardim. A tarde estava morna, e uma fina camada de nuvens suavizava a luz do sol. Envolta em meus pensamentos, caminhei até o túmulo de minha mãe quando algo me fez estancar o passo:

Parada junto à sepultura, havia uma mulher loira trajando roupas leves e esvoaçantes, de aparência muito cara, que harmonizavam-se à claridade do dia. Fiquei observando-a durante algum tempo. Ela parecia rezar ou quem sabe, estava perdida em lembranças. Cabeça baixa, as mãos cruzadas descansando sob o queixo. Notei que havia um ramo fresco de frésias sobre a campa. Tentei lembrar-me de onde vira aquelas flores antes... logo vieram-me à memória as fotografias que eu costumava examinar quando criança; em algumas delas, junto às minhas tias, havia um canteiro de frésias.

A mulher ergueu o rosto, e apesar da passagem do tempo que pouco lhe afetara, pude reconhecer as feições de minha tia Rosana - a de cabelos loiros, muito pálida, que tornara-se uma grande pintora!

Eu queria caminhar até ela, mas meus pés pareciam fincados no solo. Meu coração descompassado não conseguia administrar aquela cena que se descortinava diante de meus olhos, e por um momento, pensei que eu dormia e que tudo não passava de um sonho. Notei que ela ainda era muito bela, apesar dos mais de vinte anos que separavam sua imagem daquela à qual eu estava acostumada a ver nas fotografias. Imediatamente, sem nem mesmo trocar qualquer palavra com ela, eu a amei. Lembrei-me de que os motivos que nos separaram durante tanto tempo  não mais existiam. Respirei fundo, mas meus pés ainda não conseguiam mover-se.

Foi naquele instante que ela virou-se devagar na minha direção, e nossos olhares se reconheceram. Ela pareceu calma e muito tranquila, como se já esperasse que aquilo acontecesse, como se tivéssemos marcado um encontro com o destino. Lembrei-me de que meu pai dissera que ela às vezes tinha premonições, conseguindo dizer de antemão o que aconteceria na vida das pessoas. Caminhamos em direção uma da outra, e quando estávamos próximas, nós paramos, nos olhando longamente. Ela sorriu, eu sorri. Ela estendeu-me seus braços, e eu me aconcheguei dentro deles.

Murmurei seu nome, como esperando uma confirmação, e ela balançou a cabeça positivamente. Sua voz era calma e muito suave:

-Você está tão bonita, Alana! Como cresceu... é uma mulher...

-Eu sempre quis conhecer você, tia Rosana. E as outras.

Uma sombra passou rapidamente sobre seu rosto, mas ela a dissipou com um sorriso:

-Eu moro perto daqui. Gostaria de vir à minha casa?

Assenti com a cabeça, e fomos caminhando pela calçada, mas antes, deixei sobre a campa de minha mãe as margaridas que trouxera. Caminhei para fora do cemitério na companhia de minha tia Rosana sem olhar para trás. O momento que eu vivia era tão esperado e tão inesperado, ao mesmo tempo...

Pensei que a casa de uma grande pintora seria exuberante, mas ao invés disso, após caminharmos por dez ou quinze minutos, ela parou em frente a um portão branco de madeira, e ao abri-lo para que entrássemos, percebi canteiros de frésias em ambos os lados do caminho que conduzia à porta de uma casa branca simples de dois andares.

Ela abriu a porta, e imediatamente eu senti que mergulhava em um ambiente de contos de fadas; tudo transpirava uma beleza austera e simples ao mesmo tempo, e o perfume suave de incensos queimando em algum cômodo me envolveu completamente. A luz do por do sol entrava pela janela aberta da sala, e seus raios coloridos por um arco-íris inesperado ia deitar-se sobre as rosas pálidas do tapete. Havia muitos quadros pelas paredes, todos eles retratando paisagens maravilhosas que pareciam não ser deste mundo, e rostos cujos olhares transmitiam uma força e uma beleza transcendentais. Quem seriam aquelas pessoas?

 Eu estava muito feliz! Era como se eu sempre tivesse frequentado aquela casa, pois sentia-me totalmente à vontade na presença dela, e naquele ambiente que parecia ter sido feito sob medida para os meus sonhos. Ao contrário de minha mãe, Tia Rosana exalava uma paz, tranquilidade, firmeza e  alegria serena que me contagiavam e faziam com que eu me sentisse absolutamente segura em sua presença.

Ela pareceu adivinhar meus pensamentos, quando eu mentalmente indaguei quem seriam seu marido e seus filhos - se ela o tinha - e ela respondeu-me, sem que eu perguntasse, que vivia ali sozinha e jamais casara-se. Sua carreira de pintora fazia com que viajasse muito, e que chegara há apenas alguns dias, mas já estava de partida marcada para dali a uma semana.

Ela sempre estivera ali, tão perto de nós!... No entanto, tão longe... era incrível que jamais tivéssemos nos encontrado. Verbalizei o meu assombro, e ela respondeu-me:

-É que fico por aqui apenas alguns dias por ano. Viajo muito, devido à minha profissão. E além disso, posso ser bastante discreta quando quero...

Ela leu em meus olhos todas as perguntas que eu guardara durante todos aqueles anos. Ela sabia que eu desejava conhecer a história de nossa família, o porquê do silêncio e da depressão de minha mãe. Mas apesar de tudo, ela apenas passou a mão suavemente sobre meu rosto (estávamos sentadas à varanda de sua casa, tomando um refresco de morango que ela acabara de preparar):

-Eu sei que você tem muitas perguntas... mas no momento, tudo o que eu queria era poder pintar o seu retrato. Posso?

Prometi que viria todos os dias posar para ela, e ela então respondeu que retardaria a sua partida para que o retrato pudesse ficar pronto. Antes que eu partisse, Tia Rosana pediu-me que não comentasse com meu pai, pelo menos por enquanto, que nós tínhamos nos encontrado. Eu despedira-me dela, e estávamos ambas paradas ao portão da casa. As primeiras estrelas já começavam a despontar num céu avermelhado. De repente, senti um medo imenso de que, assim que eu virasse as costas, ela, a casa e tudo o que havia por ali, desapareceria para sempre de minhas vistas, e deste mundo. 

Ocorreu-me subitamente que eu já passara por aquela casa várias vezes em minha vida, e jamais a notara. Sequer olhara para ela. O medo invadiu-me o coração, e olhei para ela ansiosamente, esperando que me assegurasse de que ela estaria ali na manhã seguinte. Ela apenas sorriu-me seu melhor sorriso tranquilizador. 

Despedimos-nos novamente com um abraço apertado, e quando meu afastei da casa apenas alguns  metros, olhei para trás; ela ainda estava ao portão, e acenou-me. 

Fui para casa, pensando na desculpa que teria que inventar para que meu pai não desconfiasse das minhas saídas diárias que aconteceriam nos próximos dias...


(continua...)


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