terça-feira, 5 de abril de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XXII - FINAL








O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XXII - FINAL



Regiane adormecera segurando o livro, e quando as freiras chegaram ao porão, encontraram-no às escuras. Irmã Malvina hesitou à porta do quarto que fora do filho, as lembranças dolorosas chegando aos borbotões. Mas ela reuniu forças, e abriu a porta, acendendo a luz apenas para encontrar a jovem deitada na cama, abraçada a um livro. Regiane remexeu-se na cama, despertando de seus sonhos mais doces, e deparou com o rosto duro de Irmã Malvina. Pôs-se de pé em um salto. Irmã Dulce aguardava, do lado de fora do quarto, na entrada. 

Irmã Malvina dirigiu-lhe um olhar de desprezo, dizendo:

-Soube que anda inventando histórias nesta escola. Eu sempre soube que você era uma mentirosa. 
Regiane pôs-se na defensiva, crispando as mãos e tentando não soar ríspida demais:

-Não sei do que a senhora está falando, Irmã.

-Agora que está perto de retirar-se e não precisa mais de nós, começa a inventar histórias sobre estar se encontrando com um homem neste porão, há anos? O que quer com tudo isso? Manchar a reputação de minha escola?

Regiane franziu a testa:

-Não quero nada disso, e nem seria preciso, já que a reputação deste lugar foi construída sobre falsos moralismos e segredos abafados, limitados a este porão.

Irmã Malvina indignou-se com o atrevimento da aluna, e erguendo a voz, respondeu-lhe:

-Eu não vou aceitar ser desrespeitada desta forma, mocinha! Falarei com seu pai!

-E o que dirá a ele, Irmã? Que a filha dele andou se encontrando com um homem entre as paredes desta escola de reputação tão ilibada? O que acha que acontecerá depois?

-Não se atreva a me desafiar!

Irmã Malvina foi até ela, erguendo a mão para bater-lhe, mas Irmã Dulce segurou-lhe o braço antes que ela o baixasse sobre a moça encolhida:

-Chega, por favor, Madre... vamos leva-la até o lugar onde Ricardo – o verdadeiro Ricardo – se encontra agora.

As três deixaram o quarto em silêncio, Irmã Malvina caminhando à frente e segurando uma lanterna que pegara sobre a pilha de tijolos no porão, seguida por Irmã Dulce e uma Regiane confusa e magoada. Elas cruzaram o pátio da escola, já envolto pela semiescuridão da noite que chegava, e encaminharam-se para o pomar. Irmã Malvina abriu o portão de ferro, que rangeu tristemente. Uma névoa esbranquiçada já cobria a vegetação, dando ao lugar um aspecto abandonado e triste. As árvores estavam nuas, os galhos retorcidos desenhados contra o céu avermelhado, pois era outono. Irmã Malvina chegou junto ao muro que separava o terreno da escola do terreno onde ficava um prédio de apartamentos, e parou. Jogou a luz da lanterna sobre uma lápide meio-escondida entre a vegetação. Suspirou profundamente, esquecendo-se de sua raiva. Murmurou:

-Aí está Ricardo. 

E com muita dificuldade, ela pronunciou a frase mais dolorida de sua vida pela primeira vez em público:

-Meu filho.

As três permaneceram em silêncio por alguns instantes. Regiane leu o nome e as datas na lápide, e viu que o rapaz que descansava ali, sob aquela lápide, tinha nascido, vivido e morrido há quase cinquenta anos. Sentiu-se enjoada. Afastou-se, e vomitou junto à raiz de um pessegueiro.
De repente, a constatação de que havia sido enganada. A pessoa com quem ela estava se encontrando não era quem dizia ser. Mesmo assim, ela percebeu, surpresa, que o que sentia por ele não diminuíra; pelo contrário, permanecia intocado, puro, o sentimento mais lindo que ela tinha por alguém a quem aprendera a amar durante toda a sua vida. Aquele homem que a enganara e mentira para ela, ajudara-a a ser uma mulher de verdade; ele a compreendera, secara suas lágrimas, ouvira suas histórias, rira e chorara junto com ela, ajudara-a na escola e em seus relacionamentos, através de seus conselhos amorosos e sábios, e acima de tudo, ele a amara.

Ele a tornara uma mulher, e colocara em seu coração todos os sonhos que ela jamais atrevera-se a sonhar. Ele fizera dela algo mais que apenas uma menina perdida, uma órfã que ninguém queria por perto. Ele a ajudara a desenvolver sua autoconfiança e a gostar de si mesma, aprendendo a impor-se, não aceitando o que as pessoas diziam a ela com a intenção de feri-la ou “coloca-la em seu devido lugar.” Ele a ensinara que seu lugar era aonde ela queria ficar, e que sua história estava muito além daquilo que os outros contavam a ela, pois ela mesma poderia escrevê-la, criando para si um belo futuro. Não era obrigada a recolher-se e ser quem a sociedade dizia que ela teria que ser, não importando quem fora a sua mãe ou o que ela fizera de sua vida.

Regiane compreendeu que o amor que ela sentia por aquela criatura, fosse ele quem fosse, não poderia morrer jamais. E que era ao lado dele que ela queria passar o resto de sua vida, mesmo que ele fosse um bandido, um ladrão ou um mentiroso para as outras pessoas. 

De repente, ela lembrou-se de algo importante: havia uma fotografia de Ricardo – o seu Ricardo – dentro do livro que encontrara, e que deixara sobre a cama, no porão. E aquela fotografia era tudo o que lhe restava dele naquele momento. Então, Regiane correu de volta para o porão. As duas mulheres a seguiram, e apesar de ter mais de setenta anos, Irmã Malvina nem sequer sentia-se ofegante, caminhando a passos largos, querendo ver o que a moça “aprontaria” daquela vez.
Encontraram-na sentada na cama, a fotografia diante dos olhos banhados em lágrimas. Irmã Malvina arrancou-lhe a fotografia das mãos:

-Onde a encontrou?

Regiane recuperou-se do susto, e respondeu com voz calma:

-Estava dentro deste livro. Este, é o meu Ricardo!

Irmã Malvina apanhou o livro, e leu o título. 
Aquele era o livro com o qual encontrara o corpo do filho, quando ela despertou naquela horrível manhã, após dormir sentada ao lado da cama dele. Ricardo estivera lendo aquele livro antes de morrer, mas jamais o terminara. Ela olhou para Regiane, e depois, para Irmã Dulce. Em silêncio, as duas freiras deixaram o porão. Irmã Malvina entregou o livro e a foto a Regiane antes de fechar a porta. 

.    .    .    .    .    .    .

Ele não voltava. 

Regiane esperou por ele durante muitos dias e muitas noites, muitas das quais passou em claro. Cada manhã que surgia trazia uma nova dor, fazendo com que mais um fio de esperança se esgarçasse. Ela segurava-se àquela corda fina de esperança que lhe restava, mas quando o dia chegava e ela percebia que, mais uma vez, ela acordara sozinha na cama, naquele porão, ela sentia que mais um fio arrebentara-se. Ela sofria além do que pudesse ser descrito.

O pai tentara leva-la para casa. As tias também tinham vindo, mas ninguém conseguia tentar tirá-la daquele porão sem fazer com que ela se agarrasse aos móveis, gritando desesperadamente a cada tentativa. Os médicos tentaram leva-la à força, mas o pai compadeceu-se dela, e pediu-lhes que a deixassem em paz, pois ele se responsabilizaria por ela e o que acontecesse a ela. Irmã Malvina não deixava que nada lhe faltasse, e Irmã Dulce era uma das poucas pessoas a cuja presença ela não reagia com desespero, concordando em tomar algumas colheradas de sopa e goles de água ou suco todos os dias de suas mãos. 

Regiane ficava por ali, vestida com uma longa camisola branca, os cabelos soltos, os pés descalços, abraçada a um livro e a uma fotografia. Os dias transformaram-se em semanas, que transformaram-se em meses. 

O pai vinha sempre, acompanhado de Petra, que massageava-lhe as pernas e os pés frios com óleos aquecidos, limpando seu corpo com panos umedecidos em água morna. Ela estava sendo como a mãe que Regiane sempre desejara ter, e ela nem sequer notava que a mulher estava ali. Os olhos dela estavam sempre pousados em algum lugar que não era ali, e Régis temia que a filha estivesse enlouquecendo. 

Mas o tempo passa sobre tudo, suavizando as arestas. 

Seis meses após aquele estado de torpor, Regiane começou a voltar. Primeiro, aos poucos; começou a perguntar sobre as priminhas. Prestou atenção ao canto de um passarinho lá fora. Pediu que abrissem as cortinas da janelinha do porão para que entrasse um pouco de luz. Concordou em sentar-se e tomar, sozinha, um prato de sopa. Ergueu-se da cama e conseguiu dar alguns passos pelo quarto. Recebeu Dália e Otávio. Dália estava grávida, e ela acariciou sua barriga. Perguntou à Tia Fiorela pelos gatos da casa, e se o chalé ainda existia. 

Tia Fiorela, em uma atitude totalmente inesperada para Regiane (mas sobre a qual já havia conversado com João, Rosa e Régis) dissera-lhe que o chalé não só existia, como estava esperando por ela, totalmente reformado. Ela havia mandado reconstruir o jardim, podar as árvores do pomar – que agora já começavam a dar flores, e que dentro em breve, estariam cobertas de frutos – tinha pedido a Régis que pintasse de branco os cômodos, e ela e Rosa tinham decorado tudo com roupas de cama novas e cortinas, conseguido alguns móveis usados, mas em bom estado. Além daquilo, ainda mandara melhorar as escadas que davam acesso à colina, criando trechos com rampas, que eram mais confortáveis para a subida, mandando construir corrimões. Disse-lhe que poderia ficar lá quanto tempo quisesse, e que o deixaria para ela em testamento.

Aquela notícia acelerou a recuperação de Regiane. Em questão de semanas, ela estava novamente de pé, pronta para recomeçar sua vida. 

Deixar o porão aonde fora tão feliz após passar tanto tempo ali, não foi fácil para ela. Irmã Malvina dissera que ela poderia escolher os livros que quisesse levar, e ela escolheu uma pequena pilha na qual estava incluído “Sonhos de Uma Noite de Verão,” que ela passaria semanas e mais semanas lendo ao cair da tarde, sentada em um banquinho de madeira junto ao pomar do chalé. 

Ninguém mais tocara naquele assunto na escola, e as alunas e as demais freiras continuaram a nem sequer imaginar o que se escondia no passado de Irmã Dulce e Irmã Malvina. Apenas elas duas sabiam o que acontecera, e a história vinha à tona quando elas trocavam olhares ao passarem uma pela outra nos corredores da escola. Irmã Malvina não se importou em mandar averiguar quem fora o rapaz que vivera tantos anos no porão da escola, fazendo-se passar por seu filho morto. Ela preferia acreditar que o próprio Ricardo voltara para terminar sua missão nessa terra, e quando pensava nele, era como se ele estivesse em algum lugar da terra naquele momento, vivendo normalmente. Algumas coisas eram simplesmente misteriosas, e deveriam permanecer assim; esta era a magia da vida. 
Irmã Dulce ainda pôde visitar seu segundo neto, e acabou deixando o hábito para mudar-se para a casa do filho e da nora, onde permaneceu o resto de sua vida. Viu os netos crescerem, casarem-se e terem filhos. Foi a mãe, a avó e a bisavó que sempre desejara ser. 

Régis e Petra viveram juntos o resto de suas vidas, e foram felizes. Régis serviu Madame Fonseca de todas as formas possíveis, até sua morte, aos setenta anos de idade. Ela deixou-lhe a mansão de Niterói em testamento, e ele a vendeu. Com o dinheiro, viveu uma velhice despreocupada e confortável junto à sua amada Petra. 

Rosa transformou-se na tia encantada que todas as crianças sonham. Era ela quem confeccionava os vestidos de festas, cozia os bolos e doces, contava as mais lindas histórias, colocava as crianças para dormir e tomava conta de todas, quando elas se reuniam para passar as noites no casarão no final de semana. Foi o braço direito de Fiorela, ajudando-a a cuidar dos filhos e administrar a casa. Quando soube que seu ex-noivo enviuvou, suspirou profundamente quando ele a procurou, mas despediu-se dele e tratou de esquecê-lo; alguns amores existem para serem vividos na hora certa, e depois, é tarde demais para eles. Principalmente quando o caminho que os separa é feito de mágoas e preconceitos. 
Fiorela e João, assim como Rosa, viveram vidas muito longas, chegando a passarem dos cem anos de idade. Já Régis faleceria aos 80 anos, de um ataque cardíaco. 

Irmã Malvina morreu aos noventa e dois anos de idade. Regiane compareceu ao seu enterro, levando-lhe flores que colheu em seu jardim na colina, e aquela foi a primeira vez que foi vista em público desde que voltara da escola, e também a última. Ela não compareceu a outros velórios, batizados, aniversários ou casamentos da família. 

Regiane tornou-se uma lenda; apesar de todos os esforços para que a história que ela vivera permanecesse como um segredo de família, de alguma maneira, as crianças de Fiorela acabaram contando-a na escola, entre os amigos, acrescentando detalhes que deram a ela um tom mais mágico, ao gosto das crianças.

Regiane passou a ser conhecida, muitos anos depois, como A Dama de Branco – a mulher que se apaixonara por um fantasma, e que o procurava todas as noites usando sua camisola branca. O fato, é que, como Regiane jamais saísse de casa, ela mesma confeccionou vários vestidos largos e confortáveis, simples e brancos, sem quaisquer adornos, e passou a usar somente eles. 

Quando seu pai e suas tias faleceram, Regiane já era idosa, e as primas passaram a cuidar dela. Levavam-lhe mantimentos e conversavam com ela, nas raras vezes em que ela se mostrava disposta. Regiane ainda tinha os livros que trouxera da escola, e a fotografia de seu grande amor. Todas as tardes, quando não chovia, ela se sentava no banco de madeira que ficava no pomar, e fechava os olhos. Ela então prestava atenção, e o vento conversava com ela. Sentia as mãos macias e doces de sua mãe em seus cabelos, e os lábios frios e amorosos de Ricardo sobre os seus. 
E ela sempre sabia quando alguém estava para chegar, ou para morrer.




FIM








6 comentários:

  1. creio que não seria justo deixar de dizer que acompanhei avidamente, que gostei muito, Ana!
    parabéns!

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  2. Ana, sua criatividade é maravilhosa. O desenrolar de seu conto prende a atenção e foi um prazer lê-lo. Parabéns!! Bjs.

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  3. Nossa Ana, que lindo! Triste, mas misticamente lindo!
    O desfecho minucioso das personagens, tão reais as imagens que se formaram, eu poderia desenhar o cenário, tbm a imagem física de cada um...
    Imaginei tantos finais diferentes e errei todos! Encantada, mesmo, obrigada!

    Ana, acompanhar esse conto foi uma experiência única! Pude me ver em algumas situações, tbm me peguei em alguns pré-conceitos... Um capítulo após outro, foram intensas as reflexões...

    Foi mágico, obrigada! Espero que venham outros...

    PARABÉNS pela criatividade, sensibilidade e esmero no desenrolar dos capítulos, todos fluíram harmoniosamente. Eu estou mesmo, muito encantada. Obrigada!

    Um beijo de carinho e gratidão...

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  4. Oi Ana, ufa... só vim comentar agora... rsrs

    Então amiga seu conto ou novela, acho que combina mais, foi muito bem urdido no sentido de começo, meio e fim. Você, a seu modo, criou personagens posicionando-os em seus ambientes e descrevendo ambos de maneira muito criativa, permitindo ao leitor ver as imagens.

    Em alguns momentos, você revelava aquilo que deveria ficar meio escondido, mas por outro lado, costurava dúvidas. E assim o leitor ia ficando cativo dentro da história.
    Eu sabia que Ricardo era uma figura do éter, que se materializava quando queria.

    A magia e a fantasia sempre presentes em suas histórias lhe conferem uma assinatura, diferentemente da minha que também escrevo nesse estilo.

    Parabéns Ana, você é uma artista da palavra escrita.

    Bacios

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  5. Olá Ana A Já estava com saudade dos seus escritos e este conto como sempre você deixou transbordar toda sensibilidade, com muito romantismo e magia no contexto dos capítulos. Parabéns você é uma grande escritora. Gratíssima pela visita ao meu cantinho. Abraços fica na paz de Deus. Lourdes Duarte

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  6. Ana, maravilhoso!
    Não tenho palavras para falar do teu talento tão especial!
    Parabéns e obrigada pela partilha, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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