sexta-feira, 16 de setembro de 2016

FEITIÇOS DE AMOR – PARTE VI









Eu ia andando rápido pela estradinha de paralelepípedos, e Dora ia quase correndo atrás de mim – era um pouco mais baixa que eu, e estava um pouco gordinha. Ela conseguiu emparelhar comigo, e disse, ofegante:

-Nossa, que confusão, hein? Família, família...

Não sei bem o motivo, mas aquele comentário me deixou irritada. Parei de caminhar, e com as mãos nos bolsos da calça jeans, virei-me para ela, e quase gritando:

- O que tem a minha família? Vai tirar onda para cima de mim agora?

Dora me olhou de volta, surpresa, e vi que seus olhos se encheram de água. Ela encolheu os ombros:

-Desculpe, eu só quis...

-Só quis encher, não é mesmo? Fique você com a sua vidinha perfeita de grande cantora, e me deixe sozinha com os meus problemas de ‘família, família!’

Vi a expressão estarrecida no rosto dela. Boquiaberta, ela gaguejou:

-Hey, espere aí! A família é minha também! O que acontece a qualquer um deles também me afeta!

Revirei os olhos, bufando, e em um tom irônico que surpreendeu até a mim mesma, respondi:

- Daqui a pouco, tudo isso vai ficar para trás para você. Nós seremos apenas pessoas com quem você cresceu, Dora. Não se preocupe tanto.

E continuei a andar, as lágrimas embaçando o caminho à minha frente. De repente, comecei a correr, não sei porquê. Corri e corri, até que não tinha mais fôlego, até que eu chegasse até perto do rio, e me enfiando entre as moitas e folhagens, encontrei a margem e sentei-me lá. Eu estava completamente só. Cigarras cantavam naquela manhã quente, e a água do rio era um espelho. Tanta beleza me deixava ainda mais triste, pois eu me lembrava de quando eu, Dora e toda a família fazíamos piquenique ali. Mas aquilo parecia ter sido há milênios, quando minha avó tinha saúde, meu pai e minha mãe se amavam, Tia Maya era apenas uma figura velada no passado de todos e Dora estaria sempre comigo. Quando eu tinha uma vida normal, e uma família normal e feliz.

Percebi, então, que o maior drama entre todos os dramas que eu estava vivendo, tinha a ver com ela. Saber que Dora poderia realmente tornar-se uma cantora de sucesso e ir embora de Rio Verde, era uma possibilidade que me apavorava. Eu sabia, mais que ninguém que ela era muito boa no que fazia, e que tinha talento e determinação de sobra para conseguir o que queria. Achei que eu ficaria para sempre ali, enterrada naquela cidadezinha (que eu costumava amar apaixonadamente, mas que naquele momento pareceu-me a opção de uma perdedora) enquanto Dora, a que não era tão bonita, nem tão popular, ganharia o mundo. Eu percebi que aquele sentimento que eu estava vivenciando tinha um nome muito feio: inveja. Pensei também na história entre mamãe e Maya, na inveja e nos ciúmes que minha mãe sentia de Maya. Será que a inveja era algo hereditário? Eu queria pensar diferente e torcer por Dora, mas eu não conseguia! Eu me sentia pequena, mesquinha, e muito feia. 

De repente, passei as unhas pelos meus braços, arranhando-me fundo. De certa forma, aquilo fez com que eu me sentisse melhor por algum tempo. Mas quando eu olhei as marcas vermelhas e sangrentas, pensei no que diria às pessoas quando me perguntassem o que era aquilo. Fiquei com medo. Então tive uma ideia: eu diria que tinha me arranhado numa moita de espinhos, quando fiquei presa perto do rio. Realmente, havia várias moitas daquelas, e tínhamos que tomar cuidado para não ficarmos presos nelas pela roupa ou pelo cabelo, ou para não acabarmos arranhados. 

Nem sei quanto tempo fiquei por ali. só voltei para casa depois que tinha chorado todas as minhas lágrimas, e quando uma grossa gota de chuva – seguida de muitas outras – me obrigou a levantar e voltar para casa, no final da tarde.

Fui caminhando devagar, deixando aquela chuva lavar meu corpo e minha mente. Chutava as poças d’água no caminho, como eu fazia na infância, e virava a cabeça para cima, a boca escancarada, tentando beber algumas gotas. E foi assim que ele me encontrou.

Nem notei que estava sendo observada. Estava girando e dançando na chuva, quando em uma das voltas, avistei um rapaz de guarda-chuva parado na calçada me olhando com ar divertido. Imediatamente, parei de girar, e continuei caminhando. Ele riu. Passei por ele com o rosto pegando fogo, e deu para ver o quanto ele era lindo. Tinha cabelos castanhos ondulados e repicados, penteados para trás, era alto, sobrancelhas grossas e bem desenhadas, lábios finos e dentes muito, muito brancos. Os olhos eram de um cinza azulado. Não pude deixar de olhar para ele. Olhei mesmo. E pela primeira vez, senti que alguma coisa acontecia no meu coração, e que ele batia de um jeito diferente, como ele nunca tinha batido antes por um garoto. Passei por ele, sentindo um formigamento pelo corpo, e ele me chamou:

-Isso foi uma dança da chuva?

Parei, sem me virar para ele:

-Foi.

Continuei andando, e ele me chamou de novo:

-Será que você pode me dar uma informação?

Parei novamente, e ele caminhou até mim.

-Você conhece a Dora?

-A Dora? Minha prima. Por que?

Ele sorriu:

-Desculpe, deixe eu me apresentar. Meu nome é Fred. 

Ele estendeu a mão, e eu a segurei, sentindo uma eletricidade diferente passando dele para mim.

-Sou Eleanor. Você quer falar com a minha prima? Ela mora logo ali (apontei na direção da casa de Dora).

Ele sorriu, e me agradeceu:

-Muito obrigada, Eleanor. – o olhar dele para mim era como um jato de ar quente. Fiquei me perguntando o que um menino como ele poderia querer com Dora. Acabei formulando a pergunta, segubdos antes que ele se virasse para ir embora:

-Por favor... se não for incômodo responder... não me considere indiscreta, mas... você e Dora são amigos?

Ele sacudiu a cabeça, negando:

-Não. Na verdade, nem a conheço. Vi o anúncio no jornal, procurando por um pianista, e eu sou um, então...

-Um pianista?

-Sim. Ela quer um pianista para acompanha-la em sua apresentação.

Ele notou o embaraço e a surpresa em meus olhos.

--Você não sabia? Sua prima foi selecionada pelo programa...

-Sim, eu sei – interrompi-o. – mas ela nunca tinha me falado que estava a procura de um pianista.

Ele pareceu um tanto constrangido:

-Bem, quem sabe ela ainda não teve tempo de contar, não é? Foi legal te conhecer, Eleanor, mas tenho que ir.

Ele se afastou, e me deixou plantada na chuva, onde ainda fiquei por alguns minutos, tentando entender o que estava acontecendo comigo – e entre Dora e eu. Ela sempre me contava tudo! Por que tinha escondido aquele fato? Fui caminhando devagar, e entrei em casa. Abri a porta – estava tudo na penumbra. Apenas um abajur aceso sobre a mesinha de canto. Já ia direto para o meu quarto, quando a voz de Vó Duda me assustou:

-Você perdeu o almoço e o jantar outra vez, menina.

Virei-me; ela estava sentada na poltrona ao lado do abajur que estava apagado, enrolada em uma manta.

-Desculpe, vó... mas... eu perdi, realmente, alguma coisa que prestasse?

Ela ergueu um pouco a voz, em um tom que era, ao mesmo tempo, sussurrante e gritante – vó Duda tinha aquela habilidade peculiar das pessoas que gritam enquanto sussurram.

-Não fale assim! Almoços e jantares em família sempre são importantes. Sente aí. Tenho algo para contar a você.

Sentei-me, e esperei.

Ela deu a notícia de supetão:

-Seu pai estará ausente desta casa. Ao menos temporariamente.

-O que? Meu pai foi embora???

Senti que as coisas desmoronavam em cima de mim.

-Sim. Depois que você saiu, as coisas ficaram difíceis.

-Cadê tia Maya? (eu esperava que ela não tivesse ido com ele).

-Está lá em cima, como os outros membros da família. Cada qual em seu próprio mundinho, pensando que assim os problemas se resolverão sozinhos. 

Respirei aliviada por Tia Maya não ter ido embora com papai. Vó Duda parecia muito cansada. Achei que estar ali me esperando para dar a notícia a tinha desgastado. Ofereci-me para leva-la para a cama, e ela aceitou, tomando meu braço ara levantar-se, mas recusando-o enquanto caminhávamos para o quarto. Eu a coloquei na cama, e quando ia saindo, ela me chamou:

-Coma alguma coisa. Está o dia todo de estômago vazio, e isso não é bom.

Apesar de  eu não sentir fome, prometi a ela que comeria uma maçã. Porém, fui para o meu quarto, onde caí na cama, deixando que as lágrimas caíssem até eu adormecer.





Um comentário:

  1. Ana, sempre tive muito medo de feitiço e quando coisas ruins acontecem, como o bebê com problema cardíaco, parece que as coisas se complicam mais.
    Que carga enorme para as crianças...
    Felizes dias, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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