quarta-feira, 16 de novembro de 2016

MINHA VIDA, SUA VIDA - PARTE I






Pelas janelas do trem, Karen via passar a manhã fria e chuvosa em manchas borradas. As vidraças gotejadas pela chuva pareciam chorar. Dentro do trem, pessoas liam jornais, ouviam música ou mantinham os rostos presos nas telas dos celulares – tudo para poderem evitar o constrangimento de encarar uns aos outros. Alguns daqueles rostos eram velhos conhecidos – embora jamais se cumprimentassem. Karen os encontrava todas as manhãs, estivessem elas ensolaradas ou chuvosas como aquela, mas mesmo assim, os rostos não ofereciam qualquer conforto de familiaridade ou qualquer sorriso acolhedor de boas-vindas. 

Estava acostumada a pegar aquele mesmo trem todas as manhãs. Exceto aos sábados e domingos. E sempre ficava com o rosto fixo na paisagem de sempre, e sempre descobrindo coisas novas: a roseira daquela casinha à beira da linha do trem florira. Havia um pobre cão morto na beirada da calçada. Algumas crianças ficavam acenando para o trem, e ela era sempre a única a responder, acenando de volta para elas. Uma árvore tinha sido derrubada, e estavam construindo um novo prédio em seu lugar.  Hoje estava chovendo, mas ontem estava sol, e as cores e nuances eram diferentes. 

Karen era observadora. Gostava de ler e escrever poemas, que publicava em um blog pouco acessado. Ela não tinha amigos – virtuais ou reais. Conversava apenas com seus colegas de trabalho na empresa, e somente assuntos de trabalho, e eles não a incluíam nas saídas às sextas-feiras, não a convidavam para suas casas e seus aniversários, pois Karen era considerada estranha, esquisita. 

Achavam difícil relacionar-se com ela, pois ela era sempre arredia e monossilábica, evitando dar informações sobre sua vida pessoal. Ninguém sabia se ela tinha um namorado, se tinha família, ou quem eram seus amigos. Ela desviava habilmente de tais perguntas, até que as pessoas desistiam de perguntar ou de se aproximar dela. Na verdade, ela não queria que ninguém soubesse o quanto sua vida era sem-graça, previsível.

Escutava as colegas conversando sobre o final de semana e as viagens, os namorados e as reuniões de família. Ela não tinha família. Tinha sido criada em um orfanato, e nunca soubera quem eram seus pais. Quando saiu de lá, arranjaram para ela um emprego servindo café na empresa onde trabalhava até hoje, e ela nunca pensou em procurar por outro, apesar de não gostar do que fazia. Karen ia vivendo a vida dia a dia, sem grandes expectativas, mas dentro dela havia um sonho, um ímpeto de que um dia, alguma coisa diferente apareceria em sua vida para revelar o quanto ela era especial. Mas aos 28 anos, estava ficando cada vez mais difícil acreditar naquele sonho.

Ela não era uma pessoa triste. Conseguia sorrir com simpatia para todo mundo, só não gostava de manter conversas por muito tempo, pois logo começavam as perguntas. Ela tinha vergonha de ter sido rejeitada pelos pais, e por não saber quem eles eram. Não gostaria que as pessoas pensassem que ela não era ninguém. Karen era bonita. Não era nenhuma moça de almanaque, mas tinha uma beleza que ela fazia questão de esconder por trás dos óculos  de leitura de aros grossos e pretos dos quais ela nem necessitava tanto assim, e do rabo de cavalo sem graça que sempre domava as ondas sedosas de seu lindo cabelo ruivo. A pele era clara e delicada, e as mãos tinham dedos longos, brancos e finos, terminando em unhas rosadas e ovaladas que ela jamais pintava. Ela era alta, magra e tinha pálidos olhos azuis. A boca pequena e desenhada, em forma de cereja, atraía os olhares dos rapazes – que ela repelia sempre.

Seu nome – Karen, com ‘k’ – estava bordado na gola do casaquinho branco de lã que ela usava quando as freiras a encontraram, e por isso, decidiram batizá-la com ele. Karen cresceu no orfanato, e por isso, nunca sentiu falta de ter um pai e uma mãe. Seus pais, sua família, eram as freiras e as outras crianças. Já crescida, não queria ser adotada, e quando a escolhiam, levando-a para o final de semana, ela aprontava tanto na casa dos possíveis pais adotivos, que eles a devolviam na segunda-feira. Quando bebê, tinha sofrido de bronquite, e por isso, não quiseram adotá-la. Era muito branquinha. Diziam as freiras que parecia que ela não iria vingar. Somente aos cinco anos um longo tratamento médico fez o efeito desejado, e ela conseguiu curar-se. 

Aos dezoito anos, a Madre Superiora a chamou, dizendo que ela teria que deixar o orfanato, ou poderia escolher ficar morando e trabalhando ali, ajudando a tomar conta das crianças. Karen achou que já era hora de ir embora e tentar uma vida diferente. Eles arranjaram para ela um emprego e um quarto de pensão para morar, e com o tempo, ela fez um curso de secretária executiva e também aprendeu inglês, e teve uma promoção, podendo alugar um pequeno apartamento. 

Karen tivera alguns namorados, mas nada sério. Perdera a virgindade apenas por conveniência, sem amor e sem prazer. Nunca mais viu o seu primeiro homem após aquela única noite em que se conheceram no supermercado, entre as prateleiras. Ele disse que se chamava Márcio, e que a achava uma moça muito bonita. Ela sorriu, dizendo chamar-se Karen. Ele perguntou onde ela morava, e ela respondeu que morava logo ali pertinho, e sem pensar nas consequências ou no perigo, convidou-o para um café. 

Quando ele percebeu que ela ainda era virgem, ainda parou e perguntou se deveria ir adiante, e ela assentiu com a cabeça. 
Depois dele ainda houveram outros que não duraram, e finalmente, um que durou alguns meses, mas ela acabou descobrindo que ele era casado, e mandou-o embora. As freiras lhe disseram que adultério era um pecado mortal. Apesar de todos os pecados mortais que cometera com outros, nunca ficara sabendo que um deles fosse casado até então. 

Jamais se apaixonara, ou sentira prazer sexual. Só conseguia quando estava sozinha, durante o banho ou pouco antes de dormir. Sua imaginação a guiava, e ela se imaginava com o chefe, um cinquentão bonito, ou com Marlon, um rapaz do escritório que namorava uma de suas colegas. Não era de pensar em atores de cinema ou de novelas, nem em cantores. Sonhar alto não era para ela.

O trem chegou à estação de Karen, e ela seguiu os outros passageiros para fora do vagão, caminhando automaticamente para a saída da estação junto com eles. Na calçada, os destinos se dividiram, e ela foi para o seu lado. 

Trabalhou a manhã toda, como sempre, concentrando-se no que estava fazendo e tentando obter bons resultados. No final da tarde, seu chefe cinquentão mandou chama-la, e ela foi até a sala dele, os joelhos bambeando, pensando nas fantasias que tivera com ele em suas noites solitárias. Será que ele tinha percebido alguma coisa? Seria possível que suas fantasias sexuais tivessem escapado através de seus olhares, e o chefe tivesse percebido? 

Ela bateu, e ele mandou que ela entrasse e se sentasse. 

Ele estava ao telefone, e ela teve que esperar ele terminar a ligação. Instintivamente, ela ajeitou o rabo de cavalo, escolhendo uma posição mais adequada – cruzou as pernas e tentou relaxar na cadeira, mas estava tensa. Ele a olhava enquanto falava ao telefone, como se a estivesse enxergando pela primeira vez, apesar dos mais de dez anos em que ela trabalhava ali. Finalmente, ele terminou a ligação.

Perguntou se ela queria um café, ela disse que não, e prontamente serviu a ele uma xícara do café de garrafa térmica. Ele bebeu tudo de um só gole, e olhou de novo para Karen; pensou no quanto ela era uma moça bonita. Bonita e misteriosa. Uma secretária competente. Porém, ele precisara fazer uma escolha, e tinha decidido por ela. A firma estava em dificuldades devido à crise financeira mundial. Ele não gostava nada do que estava para fazer, mas era parte do seu trabalho contratar e demitir funcionários. Do outro lado da mesa, a moça sorria para ele, sem saber de nada sobre o que estava para ouvir:
Ele pigarreou, corando um pouco, e ela baixou os olhos, corando muito. Finalmente, ele disse:

-Karen, você já está conosco há dez anos. Chegou como a moça do café, e hoje é uma competente secretária. Mas como você está a par, a firma está passando por algumas mudanças, pois temos que nos readaptar à crise financeira. Detesto dizer isso, mas a partir de hoje, teremos que demiti-la.

Ela abriu a boca, mas não conseguiu emitir nenhum som. O chefe deu um suspiro de alívio por ter conseguido dizer o que era preciso, e recostou-se na cadeira confortável, as mãos cruzadas em frente a ela, brincando com os polegares. 

Engoliu em seco, afrouxou a gravata. Ela balbuciou:

-Eu... quer dizer que eu estou sendo demitida?

-Sim, infelizmente, Karen. Mas tenho uma excelente carta de recomendação para você, que eu mesmo escrevi de meu próprio punho (empurrou na direção dela um envelope lacrado que estava sobre a mesa) e com certeza, incluiremos um salário extra em suas contas, além das indenizações de praxe. Você tem um bom dinheiro a receber, ficará bem por um bom tempo até encontrar um novo emprego, o que tenho certeza, com sua competência, não vai demorar muito. 

Karen sentiu sua visão ficando turva: aquele era seu primeiro e único emprego, e alguém o encontrara para ela. Não tinha ideia do que faria ao sair daquela sala, como procuraria outra colocação, como se apresentaria em uma entrevista de emprego. Era sozinha no mundo, pagava aluguel e não tinha ajuda de ninguém. De repente, a sala começou a girar em volta dela, e ela viu quando o rosto do chefe, de testa franzida, aproximou-se do dela, e então tudo escureceu.
Quando despertou, estava deitada na enfermaria. Um cheiro forte de éter a fez abrir os olhos, afastando o rosto. Sônia, a enfermeira, a olhava com preocupação e pena ao mesmo tempo:

-Você está bem, Karen? Teve um desmaio.

Ela esfregou os olhos, sentando-se na maca:

-Sim, eu estou bem. É que eu... acabo de ser demitida. E não tenho a menor ideia do que vou fazer para conseguir outro emprego. 

Sônia concordou com a cabeça, acariciando-a nos ombros:

-Sinto muitíssimo, Karen! Gostaria que soubesse que, caso precise de alguma coisa, pode contar comigo. 

Karen a encarou, tentando imaginar o que alguém como Sônia poderia fazer por ela: era divorciada, tinha três filhos pequenos, vivia com muitas dificuldades. Mesmo assim, tentou sorrir e agradeceu, deixando a sala.

 Passou pelo escritório sem olhar para ninguém, mas sentindo todos os olhos pregados em suas costas, e também o peso do silêncio que acompanhou sua saída. Ela não se despediu de ninguém, nem ninguém tentou despedir-se dela; não porque não sentissem muito por ela, mas porque temiam sua reação. Apesar de dez anos trabalhando no escritório, Karen era uma incógnita para todos, e qualquer tentativa de aproximação tinha sempre sido repelida com polida frieza. 
Não houve necessidade de esvaziar sua escrivaninha, e ela deixou a caixa de papelão vazia sobre ela. Não havia fotos ou objetos pessoais que ela quisesse carregar. Sua escrivaninha tinha apenas coisas do escritório: lápis, canetas, borrachas, papel de impressora, relatórios. Tudo pertencia ao escritório. 

Na rua, enquanto caminhava de volta ao seu pequeno apartamento Karen percebeu que sua história naquele escritório nem sequer tinha sido escrita. Não deixava nem levava saudades. Não fizera amigos. Não tinha sido nunca a funcionária do mês (ela não sabia, mas o chefe acreditava que ela não gostaria de tanta atenção). Tinha convivido entre aquelas pessoas como se fosse um fantasma. 

Pensando bem, nem sequer sentiria falta daquele lugar.
Faltavam-lhe laços. Karen não tinha laços com nada, com ninguém. Era uma alma solta no céu do mundo, uma criatura volátil, pairando sobre as coisas sem jamais encontrar um lugar onde desejasse pousar. 

Começou a chover, uma chuva rápida e alegre de primavera, que logo passou e deixou algumas poças no chão, cheias de pedaços céu azul. Karen caminhava afundando os saltos dos sapatos nelas, displicentemente, espirrando água em si mesma e nas pessoas que passavam por ela. 

(continua...)



2 comentários:

  1. Um momento tenso que a jovem tem que lutar pela sobrevivência.
    A vida é dura. Muito bom.

    Bjs!

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