domingo, 15 de janeiro de 2017

O ELEFANTE BRANCO – PARTE I








Quando o táxi parou em frente ao endereço que Alana tinha entregado ao motorista, ela respirou fundo ao olhar pela janela, antes de sair. O que ela viu, foi uma casa de dois andares que algum dia fora branca, e que agora estava velha e decrépita, ao fundo de um terreno coberto de mato que chegava à altura da cintura de uma pessoa alta. Uma das venezianas da janela da frente estava dependurada, como um olho defeituoso em um rosto. 

Entretanto, o terreno era bem grande, e se bem cuidado, poderia transformar-se em um belo jardim. Alana não se atreveu a olhar para o rosto de Iris, pois ouvira a profunda bufada de insatisfação que a filha dera antes mesmo de ambas saírem do taxi e do motorista abrir o porta-malas, retirando suas bagagens. E logo que foi pago, o homenzinho se foi sem se despedir ou agradecer, uma guimba de cigarro apagada no canto da boca, deixando mãe e filha paradas na calçada em frente à casa.

Iris olhou em volta: estavam em uma estrada deserta, de paralelepípedos, ornada de árvores altas em ambos os lados. Não havia outras casas por perto, pelo menos, até aonde a vista pudesse alcançar. Alana tentava conter seu desapontamento, assumindo um ar falso de animação, escondendo sua decepção e seu medo por trás de um sorriso forçado. Ela pegou uma das malas, e passando um braço em volta do ombro da filha, disse, o tom de voz tentando soar animado:

-Chegamos, finalmente! Após quase cinco horas de voo, acho que valeu a pena! Vamos entrar.

Mas Iris permaneceu com os pés grudados na calçada, olhando para dentro, onde avistou um homem velho, de pé, olhando para elas com cara de poucos amigos. Alana seguiu seu olhar, e após pensar por alguns segundos, tranquilizou-a:
-Deve ser Rubens, o caseiro. O advogado tinha me falado sobre ele. Mora aqui há muitos anos. 

Dizendo aquilo, ela puxou a filha pela mão, e ambas chegaram até o portão, carregando suas malas. O homem velho coçou a longa barba grisalha, e aproximou-se, olhando as duas dos pés às cabeças. 

-O que querem?

Apesar do tom nada amigável, Alana tentou sorrir:

-Sou Alana. Esta é minha filha Iris. Eu... eu sou, ou melhor, era, sobrinha da falecida Bárbara.

Ele não se moveu, e passou a olhar para Iris com o mesmo olhar desconfiado. Finalmente, após segundos tensos, como se estivesse deliberando sobre o que fazer, ele puxou um grande molho de chaves do bolso da calça e abriu o portão. Alana ia dizer que ela tinha seu próprio molho de chaves, mas calou-se. Achou que ele as ajudaria com as malas, mas ele virou-se de costas e começou a andar em direção à casa, seguido de perto pelas duas mulheres apreensivas, cada uma carregando duas malas pesadas. Alana tentou soar amigável:

-Você deve ser Rubens, o caseiro.

Ele não respondeu, até que chegaram à porta, atravessando o matagal que deixava Iris insegura – ela morria de medo de aranhas. Ao chegarem à porta, o homem velho virou-se para elas, e Alana percebeu que ele tinha uma longa e profunda cicatriz na face esquerda, que começava na testa e passava por dentro da barba espessa, indo morrer bem no meio do pescoço. Sua aparência era séria, sisuda e muito, mas muito hostil. 

-Então vocês herdaram a casa da velha... bem, entrem e façam bom uso dela!
Aquelas palavras desrespeitosas irritaram as duas, que se entreolharam boquiabertas; Alana reagiu:

-Você não vai abrir a porta para nós? Não vai nos ajudar com as malas?

A contragosto, e após um longo suspiro de impaciência, ele se voltou, e sem olhar para elas, pegou as chaves novamente, escolhendo uma delas, e abrindo a porta, que rangeu alto após ele empurrá-la. 

A casa estava às escuras, pois as janelas estavam cerradas. Alana entrou, aspirando o cheiro de mofo e de coisas velhas. Tateou a parede em busca do interruptor, e ao acha-lo e fazê-lo clicar duas ou três vezes, compreendeu que não havia eletricidade. Rubens entrou atrás delas, colocando as malas no chão. Iris andou até uma das janelas, e após soca-la um pouco, conseguiu abri-la. Virando-se para o caseiro, Iris ironizou:

-Se nós pudermos ajudar o senhor em alguma coisa, é só falar. 

Ele ergueu as sobrancelhas, e cruzou os braços, concordando com a cabeça ao pegar a ironia de Iris no ar. Alana abriu mais uma janela, e depois bateu as palmas das mãos, a fim de limpá-las da poeira:

-Minha tia faleceu há apenas um mês e meio, e a casa já está neste estado?
Rubens concordou, resmungando:

-Ela sempre esteve assim. 

Desolada, Alana olhou em volta; o que viu foi ainda mais desanimador: havia um carpete velho, sujo e rasgado bem no meio da sala, que era enorme e quase sem mobílias. As únicas peças de mobília disponíveis – uma mesa com seis cadeiras desbotadas, um sofá cujo estofamento saía pelas almofadas e duas poltronas em estado lastimável – provavelmente não poderiam ser utilizadas. O lustre de cristal que pendia do teto de pé direito alto, juntamente com camadas de tinta branca e azul, estava opaco e faltando peças. Tudo estava coberto por grossas camadas de poeira, folhas secas e muita sujeira. 

Iris encaminhou-se para os fundos da casa, onde encontrou uma cozinha grande, de azulejos em estilo português, muito sujos. A pia antiga era profunda e enorme, e a torneira estava enferrujada. Os armários sem portas deixavam-na ver algumas louças e copos empilhados, que pareciam ter vivido seus tempos de glória, mas que agora encontravam-se imundas. O piso, de cimento queimado, parecia estar em bom estado – pelo menos, alguma coisa estava inteira naquela casa, ela pensou – mas a porta que provavelmente dava para o quintal dos fundos, estava empenada. 

Cortinas pendiam das grandes janelas, as bainhas rasgadas, os tecidos desbotados e poeirentos. As escadas de madeira, cujo corrimão trabalhado e muito bonito parecia estar inteiro, embora cheio de teias de aranha que deram arrepios em Iris, eram acarpetadas por uma coisa suja, vermelha e puída, e as mulheres não estavam nem um pouco ansiosas para conhecerem o andar de cima. 
Alana olhou para trás, e viu que Rubens ainda estava plantado junto à porta da casa. Perguntou-lhe:

-A eletricidade está desligada, ou a lâmpada queimou?

-A luz foi cortada há alguns anos. Sabe como é, medidas de economia. Mas os impostos foram pagos.

-Eu sei, o advogado de minha tia disse que estão pagos por cinco anos. Bem, amanhã terei que ir até a cidade para pagar a conta de luz... você tem um carro?

Ele concordou com a cabeça.

-Sim, há um jipe na casa, que pertencia ao seu tio. Não sei se vai funcionar...

Alana estava ficando aborrecida com a falta de cooperação vinda de Rubens, mas conteve-se; ao invés de perder a paciência, disse:

-Você poderia checar, por favor? Entende alguma coisa de mecânica?

Ele resmungou:

-Não; eu sou caseiro.

Alana finalmente perdeu a paciência:

-Escute aqui, Rubens, não sei por que minha tia manteve você aqui cuidando dela todos esses anos, pois pelo que eu estou vendo, você não cuidou de nada. Quem sabe, dependendo de seu comportamento, você não possa se transformar rapidamente em um ex-caseiro? Eu não sou tão paciente quanto ela.

Ele ficou olhando para Alana durante algum tempo, antes de dar uma gargalhada zombeteira que fez a mulher corar até a raiz dos cabelos: 

-Sua tia estava cega, “senhora!” Não enxergava um palmo diante do nariz. E foi por isso que eu continuei trabalhando aqui durante todos esses anos. E não se preocupe, agora que ela se foi, eu vou me aposentar e dar o fora dessa casa maldita o mais cedo possível. Talvez amanhã mesmo. E sinto muito dizer-lhes isso, mas não vai ser nada fácil para as madames encontrarem alguém por aqui que aceite o meu lugar. Essa casa é amaldiçoada. As pessoas da vila nunca vem aqui. 

Iris teve um calafrio:

-Mãe, nós vamos morar aqui sozinhas? Não podemos simplesmente voltar?
Impaciente, Alana disse, ironizando a fim de controlar a impaciência:

-É claro, Iris. Esta é a única casa que nós temos no momento! A não ser que você tenha alguma ideia melhor.

Iris começou a chorar, e correu para a varanda. Rubens, pela primeira vez, pareceu ter algum sentimento humano, ao dizer a Alana, mostrando um mínimo de arrependimento pela sua grosseria:

-Por que não dormem na edícula? Pelo menos, está limpa. Foi lá que sua tia viveu seus últimos anos. 

-Há uma edícula?

-Sim. No quintal dos fundos. Não é visível da rua. O único problema, é que eu ocupo o quarto junto à cozinha.

-Não tem problema. Pode continuar lá se quiser.

Rubens ajudou-as a levar as malas para a edícula.

 A casa era velha, mas estava limpa, inteira e bem cuidada. Tinha dois quartos pequenos, uma saleta e uma cozinha grande. Alana concluiu que as casas antigas tinham cozinhas grandes. O banheiro era antigo, mas tinha uma banheira limpa e com água quente, e também havia eletricidade. Rubens explicou que Bárbara, por questão de economia, mudara-se para a edícula após a morte do marido.

-E como foi que meu tio morreu?

Rubens, que mostrava-se um pouco mais acessível, respondeu;

-Ele foi assassinado. Apareceu cheio de balas no sopé daquela escadaria, dentro de casa. Dizem que foram credores... seu tio estava envolvido em algumas atividades... digamos... nada ortodoxas.

Alana teve um arrepio.

Iris observou:

-Você fala bonito para um caseiro!

Rubens encarou-a:

-Sua tia me obrigava a ler alguns livros para ela em voz alta, e quando havia palavras que eu não compreendia, ela me explicava os significados. Bem, precisam de mim para mais alguma coisa?

E quando elas disseram que não, Rubens foi para o seu quarto, que ficava junto à cozinha da edícula. Quando ele fechou a porta, Iris murmurou:

-Eu não gosto dele, mãe. Não gosto de nada nessa casa, ou nesse lugar.

-Nem eu, filha, mas isso não ajuda. Felizmente, você terminou a escola, e poderá tirar um ano sabático até as coisas se ajeitarem. 

Durante a noite, com as luzes apagadas, não se via absolutamente nada do lado de fora. Tudo era um breu imenso e tenebroso. Apenas a luz do luar mostrava os contornos do casarão e dos galhos secos das árvores. Alana pensou, ao deitar-se para dormir, que teriam que vender a casa rápido, mas não via como encontrar um comprador para uma casa naquele estado lastimável. Poderiam começar com uma boa limpeza. Poderiam começar varrendo, espanando e tirando as teias de aranha, e livrando-se daqueles móveis quebrados. Talvez pudessem dar uma pintura de limpeza para melhorar a aparência.

Teriam que começar de alguma forma.

Alana deu boa noite à filha e foi para o seu próprio quarto – um cômodo pequeno e feio, onde a pintura estava desbotada e as cobertas, sujas e puídas. Antes de deitar-se, ela trocou os lençóis e varreu o cômodo a procura de insetos peçonhentos que pudessem estar escondidos por ali.  Deixou que a filha ficasse com o quarto maior, que pertencera à tia Bárbara, e que ainda estava limpo. 
Alana deitou-se na cama estranha e no quarto estranho, sentindo-se vazia de perspectivas. Tentava esconder seu medo de Iris, mas nem sempre era fácil, pois a menina era muito sensível.  Desde que o pai desaparecera sem nunca mais dar notícias, Iris tornou-se uma menina calada e triste. Elas sempre tinham esperanças de que a polícia traria alguma notícia, mas meses depois do desaparecimento de Mário, Alana achou que era hora de sacudir a poeira e cuidar da vida. 

Alana fechou os olhos, tentando fingir que estava tudo bem.  Antes de dormir, ela ainda viu o rosto sorridente de Mário, e escutou sua voz, dizendo: “Volto já.” Era assim todas as noites, antes de adormecer.

Do seu pequeno quarto, Iris pensou nos amigos que deixara em sua cidade. Pensou na escola, na universidade que talvez nunca conseguisse cursar. Pensou nos seus sonhos abortados. Pensou no pai, e no que elas podiam ter feito de errado para que ele sumisse daquela forma. Iris pensou na vida que tinha antes, perfeita e feliz, e na que tinha então.  E chorou baixinho até dormir.



(continua...)






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