sábado, 12 de agosto de 2017

JARDIM DAS DESILUSÕES – Capítulo IV






Dois dias depois, Nando veio me dizer que Maria estava voltando. Ela tinha decidido ficar com a criança, e os dois planejavam morar juntos. Terminariam os seus cursos em Paris e iriam embora para o Brasil. Ele queria que o filho dele fosse brasileiro. Giulia ficou surpresa ao saber que Nando ia ser pai. Enquanto ele contava para a ela a novidade, não cabendo em si de alegria, ela me olhou por cima do ombro dele. Saí de cena, e fui dar uma volta à pé. Sentia que estava sobrando naquela história; aliás, eu sempre me sentia sobrando, e ter ido morar em Paris por algum tempo também tinha sido uma fuga da vida que eu tinha – na qual eu me sentia sobrando. 

Nunca fizera amizades duradouras. Não conseguia me adaptar às pessoas e aos seus humores. Minha mãe me dizia que eu era exigente demais, sensível demais, e que acabaria sozinha. E sozinha eu era, pois nem mesmo tivera algum namorado durante mais de dois meses, e nunca tinha me apaixonado de verdade por ninguém – a não ser pelo Nando, que não era e nem nunca seria meu. 

Certa vez, Giulia me disse que nós não tínhamos sido feitos um para o outro. Éramos como a água e o óleo, que jamais se misturariam, pois nossas personalidades eram totalmente diferentes; enquanto eu era quieta, calada e quase melancólica, Nando era o retrato da alegria esfuziante. Cheio de amigos, a vida de qualquer festa, aventureiro, ligado à beleza. Quando ela disse a última frase, percebeu a besteira que tinha dito, pois me senti mais feia ainda, e ela notou, pedindo desculpas. Encolhi os ombros: ela estava certa. Porém, também estava certo quem disse que os opostos se atraem – mesmo que a atração não seja mútua. 

Finalmente, chegou o grande dia da volta de Maria. Giulia tinha preparado uma comidinha especial para recebê-la, e convidara as amigas que moravam junto com ela. Maria dividia o apartamento com quatro modelos, todas elas perfeitas, lindas, altas e magras. Nunca me senti tão feia!

Estávamos todos reunidos na sala, conversando e esperando por ela, embora eu desejasse estar em qualquer outro lugar do mundo, nem que fosse no Iraque. Mas Giulia me pediu que fosse razoável, e me comportasse como adulta ao invés de uma criança mimada e voluntariosa. Nando já tinha ‘dona’, ela frisou. E eu sabia muito bem disso. Saber perder, segundo ela, também era uma virtude. E arrematou dizendo que eu era ainda muito jovem, e que eu acabaria me apaixonando de novo. 

Nando foi buscar a namorada na estação, onde ela chegaria depois de tomar um trem próximo ao aeroporto. Ficamos só nós, as mulheres, e me senti excluída da conversa, como sempre. Giulia tentava me enturmar, mas eu realmente não via nenhum interesse comum entre mim e aquelas avestruzes de passarela. Eu ia até a cozinha, trazendo bandejas de canapés, bebidas  e copos limpos. Cheguei a pensar que elas achavam que eu era a empregada da casa, ou uma garçonete. 

Mais de uma hora já tinha se passado desde que Nando saíra. As meninas começaram a olhar seus reloginhos de pulso ou seus IPhones, olhando pela janela com impaciência, e depois de duas horas, com preocupação. Eu disse que era normal que voos atrasassem, mas depois de três horas, até eu fiquei preocupada. 
Resolvi ligar a TV para que as convidadas se distraíssem. E foi então que o horror nos pegou de surpresa: a imagem na tela mostrava um ataque terrorista recente em um dos trens do metrô.

Lulu, uma das amigas de Maria, imediatamente pegou o telefone e começou a ligar para a amiga, mas ninguém atendeu. Giulia tentou falar com Nando. Enquanto isso, uma das outras meninas tentava contato com a polícia local e com a estação de metrô para saber se Maria estava no trem. Após várias tentativas, Nando atendeu o telefone. Giulia fez sinal para que nos calássemos enquanto ela falava com ele. Ficamos todas prestando atenção. Tentando adivinhar o teor da conversa:

-Em que hospital? ... Ela está bem?... E você?... Calma, Nando... estamos indo encontrar você.

Maria estivera naquele trem.  

Estava hospitalizada e muito ferida. Nando tinha sido informado de que ela sofrera uma perfuração no abdômem. Ela tinha perdido o bebê, e corria risco de morte. O horror daquilo tudo me atingiu, muito mais forte do que a qualquer um. Porque eu não sabia lidar com o horror de perceber que eu desejava a morte dela. 

Ao chegarmos no hospital, encontramos Nando sentado em uma cadeira na sala de espera, as mãos segurando a cabeça, os cotovelos apoiados nos joelhos. Tinha os olhos vermelhos, e tremia. Quando nos viu, ele se levantou e veio correndo em nossa direção, recebendo um abraço coletivo. Uma das meninas perguntou-lhe se tinha mais notícias, e ele disse que Maria estava sendo operada:

-E muito grave, o médico disse que ela pode... ela pode...

Ele começou a chorar convulsivamente, e senti muita pena dele. 
Ficamos lá durante horas, nos revezando entre a cafeteria e a sala de espera. Sentei-me perto de Nando a maior parte do tempo. Levava-lhe café, água e mais tarde, um sanduíche, que ele não quis comer. A cirurgia durou a noite toda. Foi angustiante e muito cansativo. De manhã, o médico, com aparência muito cansada, chamou por Nando, e os dois ficaram conversando durante algum tempo. Eu não conseguia entender muito bem o que diziam, mas sabia que a situação não era das melhores. Eu olhava para Nando, e via que ele se encolhia cada vez mais, e ficava cada vez mais pálido. Finalmente, o médico se foi e ele veio até nós, que o cercamos, querendo saber mais notícias.

Engoli em seco, tentando espantar o pensamento de que eu desejava ouvir que não tinha mais jeito para Maria, que ela não se recuperaria. Eu fazia de tudo para espantar aquele pensamento maldoso, mas ele ficava no fundo da minha cabeça, me cutucando feito um arame farpado. Às vezes eu deparava com Giulia me olhando, e sabia que eu estava sendo cristalina demais, e então, tentava fazer uma cara mais constrangida.

Nando disse, passando a mão sobre o rosto cansado:

-A operação correu bem, mas apareceu mais uma complicação. Ela teve uma hemorragia interna. Eles conseguiram estancar, mas ela perdeu muito sangue e corre risco de infecção, já que... o abdômen dela foi transpassado por um pedaço de ferro. 

Todas cobrimos a boca, tentando conter o horror. Ele continuou:

-Tudo depende das próximas horas. Se ela reagir...

Uma das meninas perguntou se ela estava acordada, e ele respondeu:

-Não. Está em coma induzido. Eu queria ficar com ela, mas ninguém pode entrar...

Giulia falou:

-Vamos para casa, estamos cansados e não há nada que possamos fazer aqui. Nando, você avisou os pais dela?

-Sim... eles devem chegar ainda hoje. Talvez no final do dia.

-Então vamos dormir, descansar... precisamos estar bem para recebê-los. Vai ser muito difícil para eles, e precisarão do nosso apoio.

Todas balançamos as cabeças, concordando com ela. Nando disse:

-Vou ficar aqui.

Giulia insistiu:

-Nada disso. Não há nada que você possa fazer por ela agora, Nando. Você precisa descansar, tomar um banho e comer alguma coisa.

Ela puxou-o devagar pelo braço, conduzindo-o para fora do hospital. Eu fui caminhando atrás deles, me sentindo inútil. Não podia ajudar o Nando. Não podia – nem desejava – ajudar Maria. Eu estava espantada com a descoberta daquele meu lado ruim, egoísta e maldoso. Queria negá-lo, sufocá-lo e escondê-lo de todos. Não conseguia entender o que estava acontecendo comigo!

Chegamos em casa, e após comermos alguma coisa, as amigas de Maria foram embora, com a promessa de que mandaríamos notícias assim que soubéssemos de alguma coisa. Giulia colocou Nando dentro do banheiro com o chuveiro ligado. Do lado de fora, no corredor, ouvi quando ele chorou. Eu não podia competir com aquele amor.

Giulia me pegou no flagra, encostada à porta do banheiro, e me puxou para o meu quarto dela. Parecia zangada:

- Não é hora para isso, Cristina! Deixe ele em paz. Se não pode consolá-lo, não tente seduzi-lo. Seria inadequado e cruel. 

Dizendo aquilo, ela saiu, fechando a porta. 

Dormi o dia todo, um sono de pedra. Quando acordei e olhei em volta, lá fora já escurecia. Minha cabeça deu uma forte latejada assim que me levantei, e respirei fundo, pegando uma aspirina na gaveta da mesinha. Escutei vozes na sala ao passar pelo corredor. Fui até o banheiro e escovei os dentes, e depois engoli a aspirina. Me sentia faminta. Na sala, vi que Giulia estava ao telefone. Entrei na cozinha e comecei a preparar um macarrão para jantarmos, e quando ela desligou, veio para perto de mim, sentando-se à mesa. Perguntei:

-Alguma novidade?

-Nada ainda. Ela continua em coma induzido. Os pais chegaram e Nando foi com eles até o hospital.

-Os pais dela estiveram aqui?

-Sim.

-Por que não me acordou?

-Para quê, na verdade? Eles nem a conhecem. Você sequer gosta da filha deles.
A voz zangada de Giulia quase me cortou a pele:

-Hey, eu não tenho culpa do que aconteceu! Por que está me tratando como se eu tivesse?

-Por que você está agindo como se o mundo girasse à sua volta, Cris! Nem se importa comigo, que sou amiga de Maria! Não me perguntou nenhuma vez como eu me sinto, ou como o Nando se sente! E eu vi o ar de riso que você tentou disfarçar quando recebeu a notícia!

Fiquei boquiaberta, sem saber o que dizer. Jamais poderia imaginar que ela tinha percebido. Após alguns segundos, eu abri a boca e comecei a falar:

-Escute, eu sinto muito, tá legal? Mas não posso fingir que eu adoro a Maria, ela nem sequer me tratava bem!

-Tratava?! Pare de se referir a ela no passado! Maria está viva! 

-Eu sei! 

Comecei a chorar, porque não sabia mais o que fazer ou o que dizer, já que ela estava certa. Joguei o macarrão na água fervendo, e cruzei os braços, ficando de costas para ela. Eu estava sendo julgada, e severamente julgada! E de nada adiantava rebater o que Giulia dizia, pois eu sabia que estaria mentindo para ela e para mim mesma. Resolvi dizer a verdade, com toda franqueza possível:

-Giulia, você sabe o quanto eu estou apaixonada pelo Nando! Eu o amo! Acha que está sendo fácil para mim, ver o quanto ele está sofrendo por ela? Acha que é fácil ficar consolando o Nando, e torcendo para que a Maria se recupere? Eu... no fundo, eu não quero o mal dela, juro... quero que ela fique boa... mas não amar o Nando não é algo que eu possa decidir fazer. É mais forte do que eu, entende? Eu o amo, e pronto! Você pode me dizer o que eu faço para arrancar esse sentimento de dentro de mim? Agora sou eu que peço: Você pode, por favor, me ajudar?

Ela me olhou, enquanto eu desmoronava na frente dela, os olhos percorrendo meu rosto. De repente, ela se levantou da cadeira e veio me abraçar.

-Desculpe, amiga... desculpe... eu... acho que estamos todos muito nervosos. 

Eu soluçava e tremia nos braços dela.

-Eu só estava preocupada com a Maria. Desculpe por não ter visto o seu lado nessa história toda, Cristina... quem sou eu para julgá-la?

Naquele momento, com o canto do olho, percebi que havia alguém de pé atrás de nós, na entrada da cozinha. Era Nando. Há quanto tempo ele estava ali? O que tinha escutado? Ficamos ambas muito surpresas e sem graça, especialmente pelo silêncio que se seguiu, e que deixava claro que ele tinha escutado o bastante. Fui escorrer o macarrão, pois precisava fazer alguma coisa, ficar de costas para ele, que não podia perceber o que se passava comigo. Giulia enxugou os olhos e fungou:

-Como está ela? Como foi tudo? E os pais...

Nando demorou um pouco a responder, e disse devagar:

-Ela está na mesma. Os pais vão ficar em um hotel. Próximo ao hospital. Eles estão arrasados... 

-Sente-se, eu e Cris estamos preparando o jantar.

Eu permaneci de costas para Nando, incapaz de encará-lo. Ouvi quando ele arrastou a cadeira, e então, Giulia disse: “O que?” E saiu da cozinha, deixando-nos à sós. Achei que ele tinha pedido a ela, por gestos, que saísse. Eu estava colocando o molho do macarrão no fogo. Enquanto ele esquentava, eu derramava o conteúdo do escorredor em uma terrina. Procurei pelo queijo ralado na geladeira. O tempo todo, eu estava consciente da presença dele, de seus olhos grudados às minhas costas. Quase derrubei no chão o molho que eu estava jogando sobre o macarrão quando ouvi a voz dele.

-Cris... olhe para mim!

Larguei tudo sobre o mármore da pia. Não tinha coragem de encará-lo. Nando insistiu:

-Olhe para mim, por favor. 

Eu me virei devagar, os olhos presos no tampo da mesa, onde ele descansava uma das mãos. Eu me apoiava na pia com medo de cair. Ele se ergueu da cadeira e veio andando em minha direção; segurou meu queixo, erguendo minha cabeça e me obrigando a olhar para ele. Eu mal conseguia ver o rosto dele, pois minha visão estava turva pelas lágrimas. Mas ele as secou com suas mãos, e então algo inusitado aconteceu: ele me abraçou e beijou com força, com urgência e sofreguidão. 

Meu corpo se ajustava ao dele, e faíscas percorriam o meu cérebro. Eu não sabia se deveria estar alegre ou envergonhada, mas de repente, a culpa começou a tomar conta de mim. A namorada daquele cara estava em uma cama de hospital, e poderia morrer. Mas tudo o que eu conseguia fazer era  corresponder àquele beijo com a mesma urgência, a mesma paixão. Senti que ele estava pronto para mim. Arrastei-o até o meu quarto, e o macarrão ficou esfriando sobre a pia. 





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