domingo, 23 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XIII





Não. Ela não seria capaz de fazer o que Anselmo estava lhe pedindo. Aterrorizada, Ofélia olhava a menina adormecida em seu colo, enquanto acompanhava emocionada o descer e subir daquele peito pequenino e ornado de rendinhas brancas. Não saberia mais viver sem a presença de Vivian. Precisava do som daquele sorriso pela casa, do som daqueles passos pequeninos correndo pelo pátio enquanto as duas brincavam no jardim. Precisava também daquele par de olhos que a fitavam do outro lado da sala, de pé junto à lareira. Precisava até mesmo daquele estranho brilho que eles emanavam e que causavam medo e fascínio ao mesmo tempo.

Mas ela não poderia fazer o que Anselmo estava pedindo a ela que fizesse. 

Se ele lhe pedisse que cortasse o próprio punho, ou que pusesse fogo na casa com ela dentro, Ofélia o faria; se ele tivesse pedido que ela se jogasse de cabeça pela janela, ou que ela se afogasse na piscina de água sujas que ficava nos fundos da casa, ela o teria feito de bom grado, e sem pestanejar; se ele tivesse  pedido a ela que se trancasse para sempre naquela casa, entre aquelas paredes, e ficasse lá até morrer de fome, ela o faria, se isso significasse ficar para sempre ao lado de seu marido e de sua filha. 

Mas aquilo, não. Ela não seria capaz. 

Ofélia colocou a menina adormecida no sofá da sala. Anselmo caminhou até ela:

-Nós não temos muito tempo, minha querida.

Ofélia desvencilhou-se daquele toque que tanto amava, caminhando até a janela, não tendo certeza de mais nada. Por um breve segundo, ela pensou que se ela se virasse de repente para olhá-lo, ele não mais estaria ali, e que tudo aquilo seria apenas fruto de sua imaginação. Como seria tão mais fácil se fosse daquela forma! Devagar, ela virou-se lentamente, e deparou com aquele par de olhos examinando sua alma. Anselmo era real. Ele estava lá, e pedia a ela que fizesse o inominável. Tudo em nome daquele amor e de sua permanência juntos. 

Anselmo caminhou até ela novamente, desta vez, segurando-a pelas mãos antes que ela pudesse fugir, obrigando-a a encará-lo:

-Ofélia, eu e Vivian precisamos de você. Nós temos que ficar juntos, mas só existe um jeito. Talvez você esteja tão amedrontada porque não se lembra mais de quem você realmente é, de quem nós realmente somos! 

Ofélia tinha medo de lembrar.

-Olhe para mim, minha amada! Sou eu, aquele por quem você disse ter esperado toda a sua vida! No fundo, você sabe! 

Ofélia olhou-o dentro dos olhos. O fascínio que ele exercia sobre ela era inebriante. Os olhos dele eram como lagos aonde ela mergulhava e afundava cada vez mais, e não tinha vontade de voltar à tona. 

-Você precisa desbloquear as suas lembranças... 

-Eu não posso, Anselmo. Eu... não quero!

Ela tentou fugir, mas ele a abraçou com força, fazendo com que deitasse a cabeça em seu peito. E ela se deixou ficar ali, aspirando o cheiro dele, sentindo o arfar do seu peito que subia e descia, mas não conseguia ouvir as batidas do seu coração. Achou aquilo estranho, mas o que não era estranho naquela história? 

-Ouça, Ofélia...

A voz dele soou dentro dela vinda do peito, como de uma caixa de som. Imagens começaram a se formar diante dos seus olhos fechados. Ofélia mais uma vez tentou fugir, mas Anselmo segurou-a firme. 

-Ouça e sinta, meu amor. 

Ela sentiu que entrava em um transe, e de repente, passava por um túnel negro raiado de cinza e roxo. Um tom azul surgiu em espiral, levando-a para o fundo, cada vez mais para o fundo. Ela fechou os olhos de medo, enquanto seus ouvidos zuniam cada vez mais alto. Ela teve vontade de gritar para que aquele som parasse, aquele zumbido hipnótico que a levava cada vez mais para o fundo de algo que não desejava ver. Quando pensou que não mais aguentaria, o silêncio atingiu-a feito uma parede, e Ofélia sentiu uma brisa fria em seu rosto. Abriu os olhos, mas não conseguia enxergar nada. A cor negra era aveludada e envolvente. Ela soltou um pequeno grito, e o som voltou para ela imediatamente, e Ofélia notou que estava dentro de uma caixa.

O pânico tomou conta dela enquanto ela erguia a mão, tentando abrir a caixa que a mantinha prisioneira. Felizmente, não precisou fazer qualquer esforço; a caixa se abriu sem nenhuma dificuldade. Ela olhou em volta: parecia estar no porão de algum castelo antigo. As paredes eram de pedra, e havia archotes iluminando o local. Através de uma pequena janela perto do teto, Ofélia vislumbrou a lua cheia em um céu azul-marinho. Uma coruja cantou lá fora. 

Olhou para si mesma: vestia roupas antigas, talvez medievais. Instintivamente, ela soube que era o ano de 1666.  Logo, Ofélia notou que estava dentro de um caixão, e sentou-se depressa, apavorada demais até mesmo para gritar. Jogou-se para fora do caixão, caindo no chão de pedra, mas surpreendeu-se por não sentir qualquer dor. Surpresa, ela percebeu que na verdade, nunca se sentira tão bem em toda a sua vida; sentia-se forte, e ao dar o primeiro passo, este foi tão leve que ela quase flutuou. Deu mais alguns passos pelo chão de pedra, e apesar de estar descalça, o frio não penetrou pelos seus pés. Ela passou a pular, e viu que não ficava ofegante, nem suava. 

À sua direita, Ofélia viu uma escadaria de toras de madeira que conduziam a uma porta pesada também de madeira, e ela pensou em subi-la. Simplesmente pensou em subi-la, e se viu flutuando escada acima. Ela sorriu, e o medo que sentia passou, pois viu que ele não tinha razão de ser: ela era a senhora daquele castelo. 

Agora, as memórias daquela vida voltavam rapidamente. Conforme Ofélia avançava, sentia-se cada vez mais segura sobre quem era naquela vida, e da influência ela sobre as pessoas que viviam naquele castelo. 

Ela empurrou a porta, e várias pessoas muito bonitas e bem vestidas que estavam reunidas em um enorme salão luxuosamente decorado e também iluminado por velas e archotes, onde conversavam, e dançavam, olharam para ela. Ofélia sentiu que os conhecia, e pouco  pouco, lembrou-se de todos os seus nomes. Reuniu-se a eles, como quem se une a velhos amigos que não vê há muito tempo. Ela estava feliz e tranquila. 

Um serviçal chegou com uma bandeja, na qual estavam copos dourados - seriam de ouro? Ela pegou um deles, dando um gole na bebida cor de vinho, que desceu pela sua garganta e fez com que seus sentidos se tornassem mais aguçados. De repente, Ofélia conseguia escutar uma coruja farfalhando as asas sobre uma árvore, e tudo o que tinha que fazer, era prestar atenção. As cores tornaram-se mais intensas, e Ofélia sentiu-se mais forte ainda. O líquido era quase pastoso, e tinha um sabor metálico. Não era delicioso, mas ao mesmo tempo, era a melhor coisa que já provara. 

Ela ouviu um grito, e olhou para trás. As pessoas também olharam, mas logo voltaram a conversar e rir. Ofélia viu uma jovem que era trazida até o centro do salão, levada por dois copeiros que a seguravam pelos braços. Apavorada, a menina relanceava os olhos para todos eles, tentando desvencilhar-se, mas os copeiros a mantinham presa sem dificuldades. Um deles puxou de uma grande faca , e enquanto o outro segurava o pescoço da moça, passou a lâmina sobre a pele de forma precisa, fazendo com que um jato de sangue espirasse e fosse imediatamente aparado por um terceiro criado, que o direcionou para dentro de uma jarra. 

Os convidados da festa se aproximaram daquela cena conversando normalmente, sem  qualquer sinal de surpresa ou exaltação, e quando a menina finalmente parou de se agitar e de gorgolejar, eles ergueram suas taças na direção da jarra, e foram servidos. Ofélia achou natural fazer o mesmo. 

Um vento forte começou a soprar, e Ofélia foi erguida no ar, saindo por uma das janelas do castelo e entrando novamente no túnel escuro, que a conduziu, daquela vez, a um belíssimo palácio. Ao passar pela fachada, ela leu a data na parede: 1879. Ofélia entrou pela parede, e encontrou as mesmas pessoas que estavam no castelo, em uma nova reunião. Ela juntou-se a eles, e notou que as roupas eram diferentes. Seu olhar dirigiu-se ao outro lado do salão, e ela soube de antemão o que iria encontrar: Anselmo a olhava. Ela compreendeu que fora ali que eles se conheceram. Ela olhou para dentro do copo que segurava, e viu o mesmo líquido grosso e vermelho. Imediatamente, ela soube, sem qualquer susto, que se tratava de sangue humano. 

O salão começou a rodar em volta dela. As paredes se moviam. Os rostos sorridentes se alternavam diante dela. Os sons de copos e brindes a deixavam tonta. Ela fechou novamente os olhos, insegura, e quando os abriu, estava em uma casa de fazenda. Ela sabia, porque conhecia bem o lugar. Em volta dela, as mesmas pessoas conversavam, mas as roupas eram diferentes, mais modernas - talvez tivessem sido usadas nos anos 20. Ofélia estava lá, entre eles. Ela mesma também estava ricamente vestida. Ela segurava Vivian pela mão. 

A mesma cena passada no castelo se repetiu. Uma menina foi trazida ao centro da sala, e igualmente sacrificada naquela festa, e seu sangue, servido entre os convidados. Ofélia viu a si mesma estendendo a sua taça. 

Mas antes daquelas três vidas, ela sentiu que houvera uma outra. Talvez, outras. E não tinham sido tão glamourosas. 



(continua... )




2 comentários:

  1. Bom dia!
    Amei o texto que aqui li!! Obrigada

    Beijo e uma excelente semana!

    ResponderExcluir
  2. Como sempre, é um gosto ler os seus textos. :))

    Do nosso amigo, Gil António:- Hoje » SOLTO SENTIMENTO

    Bjos
    Votos de um bom fim de tarde.

    ResponderExcluir

Obrigada por visitar-me. Adoraria saber sua opinião. Por favor, deixe seu comentário.

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...