segunda-feira, 20 de maio de 2019

INOCÊNCIA - Parte I Capítulo XX








O CONFRONTO

Antes que eu respondesse, mamãe entrou e sentou-se na beirada da cama. Encolhi as pernas, pois pensei que se ela me tocasse, adivinharia o que tinha acontecido, e como. Me olhando de soslaio, minha mãe respirou fundo, como se estivesse pensando em uma maneira de me abordar:

-Onde você esteve?

Tentei sorrir, sentindo o rosto pegar fogo:

-No trabalho, ora!

Ela sacudiu a cabeça:

-Seu chefe ligou. Queria desejar-nos os pêsames pela morte de minha mãe. Achei estranho, já que ela morreu há muitos anos. O que está acontecendo, Yara?”

Abri a boca a fim de elaborar uma resposta, mas a minha cabeça ficou vazia de repente, e eu não consegui dizer nada, a não ser balbuciar palavras desconexas. Minha mãe correu os olhos sobre mim; notou meu rímel borrado, o penteado incomum e sofisticado, as unhas pintadas de vermelho – cor que eu jamais usava. Talvez ela tivesse notado também o cheiro de colônia masculina que tinha sido esfregada a tarde toda sobre  a minha pele. As mães sabem. Não me perguntem como, mas elas sempre sabem.

Ela pareceu sem graça por algum tempo, enquanto balançava a cabeça quase imperceptivelmente, e um sorriso dolorido quase se desenhou nos cantos de seus lábios:

-Você cresceu… eu… eu só espero que tenha sido com o Fernando.

Arregalei os olhos e a boca. Ela saiu do quarto, fechando a porta bem devagar.

Naquela mesma noite, telefonei para Fernando dizendo que eu pensara bem, e que achava melhor desmancharmos o namoro. Minha mãe ficou furiosa quando soube, no dia seguinte de manhã. Disse sentir-se enganada, e quis saber com quem eu estivera no dia anterior, e eu apenas neguei tudo, e disse que provavelmente meu chefe tinha cometido um engano terrível.

Fernando ficou muito magoado, e depois, furioso, desligando o telefone na minha cara. Nunca mais eu o vi. Lamentei tê-lo magoado, mas o que mais eu poderia fazer? Em breve, me casaria com Duílio. Pelo menos, era naquilo que eu me forçava a acreditar.

No final de semana, ao visitar Berta, ela me perguntou o que andava acontecendo, dizendo que mamãe pedira a ela que conversasse comigo. Fiquei zangada e decepcionada por minha mãe ter partilhado um segredo meu com minha irmã sem a minha autorização, mas Berta me disse que era melhor do que se ela tivesse contado tudo a papai. Tive que concordar com ela. A nossa conversa foi curta, pois logo chegou uma amiga nova de Berta, sobrinha de Lourdes, que eu simplesmente detestava. O seu nome era Luísa. Durante a nossa conversa, apenas confessei a ela que já não era mais virgem, e que tinha sido maravilhoso, mas que ainda não podia dar mais nenhum detalhe. Berta escandalizou-se; afinal, tinha se casado virgem. Aquelas coisas ainda eram muito importante no final dos anos setenta. Ela insistiu, pedindo mais detalhes, mas a chegada de Luísa salvou-me.

Luísa era uma mulher grudenta e falsa, que cobria Berta de elogios e tentava a todo custo conseguir um pouquinho do ar carbônico que ela exalava. Eu dizia a ela que tomasse cuidado com Luísa, mas Berta achava que eu estava com ciúmes. Acho que Luísa era a fornecedora de elogios mais próxima de Berta, agora que estava casada e os cuidados com os gêmeos tomavam quase todo o seu tempo. Além de tudo, Luíza não gostava de mim, ficando de cara amarrada toda vez que eu me aproximava de minha irmã. Depois que as duas se conheceram, eu e Berta passamos a discutir muito e tivemos algumas brigas, e eu poderia jurar que eram por influência de Luísa e de seus ciúmes. Ela era possessiva e não gostava de dividir a atenção de Berta com ninguém. Antes de ir embora, cumprimentei Luísa friamente e pedi a Berta que não comentasse com ela a minha vida particular.

No final de semana, Duílio nos visitou. Ao me ver, senti que ele corou, ficando muito sem graça, e enquanto conversava com meus pais, evitava a todo custo me olhar. Fiquei achando que a atitude dele logo o entregaria, pois estava constrangido, gaguejando e corando sob qualquer pretexto. Distraído, Duílio não conseguia manter-se dentro da conversa, e o jantar foi um evento constrangedor para todos. Quando ele finalmente desculpou-se e ocupou o quarto de hóspedes, mamãe comentou com meu pai:

-Qual o problema com ele?

Meu pai, que estava sentado em sua poltrona no escritório, após terminar seu drink, deu uma baforada em seu cachimbo e olhou-a com ar indiferente, dizendo: “Acho que mulheres… nada da nossa conta.” Vi que minha mãe franziu as sobrancelhas, e saiu do cômodo pisando duro. Reconheci naquele gesto uma cena de ciúme, e me lembrei de quando dançara com Duílio no casamento de Berta, e do olhar irritado de minha mãe naquela noite.

Naquele momento, a minha ficha caiu: minha mãe era a outra mulher de Duílio! Só poderia ser ela a outra mulher! Todos aqueles cursos em horários variados, que a mantinham fora de casa durante horas no meio da tarde, irritabilidade constante, as crises depressivas. Minha mãe estava tendo um caso com o sócio de meu pai! E será que meu pai sabia de tudo? Eu notara que o clima entre os dois esfriara bastante nos últimos meses. Os dois só se falavam quando estritamente necessário. Como eu podia não ter percebido os sinais?

Diante daqueles pensamentos, que eu tentava empurrar para algum lugar seguro no meu subconsciente, onde eu jamais voltaria a acessá-los, as coisas iam ficando cada vez mais claras apesar de tudo, e a verdade se desenhava. Duílio me falara de uma mulher muito mais velha que eu, e que a situação entre os dois era complicada demais; além de sentir-se dividido entre nós duas, havia o fato de que tal mulher era comprometida com outro homem. Essa mulher só podia ser a minha mãe. Aquele pensamento era tão terrível, que eu me recusava a lidar com ele. Depois que o tive, tentei não mais trazê-lo à tona, mas também nunca mais consegui amar minha mãe, mesmo sabendo que tudo poderia não passar de uma fantasia da minha parte. A presença dela me irritava. Passei a tratá-la com frieza. Não conseguia me aproximar dela, ou sequer mantínhamos uma conversa longa sem que uma das duas acabasse agredindo a outra. Um enorme poço cavou-se entre nós duas, e a situação causava pânico e desconforto. Eu só me perguntava se minha mãe sabia que eu era a outra.

Mas Duílio não era um homem para se perder. Ele era lindo, gentil, cavaleiro, doce, esbanjador, galanteador, apaixonado, forte, excelente amante, daqueles que fazem uma mulher perder completamente o senso e gritar a plenos pulmões de tanto prazer, não importa quem esteja no quarto ao lado. E eu não via perdê-lo como sendo uma alternativa, uma possibilidade. Eu não sabia que poderia aguentar absolutamente tudo para tê-lo ao meu lado, até mesmo dividi-lo com minha própria mãe, e fingia que ele precisava de mais tempo para resolver tudo de forma cavalheiresca.

Acho que Duílio era um excelente advogado justamente porque sua aparência digna era capaz de convencer qualquer jurado e qualquer juiz de qualquer coisa; ele tinha o dom da verdade, de usar a verdade e distorcê-la e dobrá-la até o limite e transformá-la naquilo que ele quisesse. Duílio não mentia: ele fortalecia, nos outros, as suas próprias verdades. Ele escrevia uma nova história a cada momento, de forma que sempre, tudo o que dizia, era exatamente a coisa certa. E ao final de cada história, seu interlocutor, antes irado ou decepcionado, dizia a si mesmo, 

-Como posso ter pensado daquela forma? Como posso ter sido tão injusto com esta pessoa tão digna, tão forte e tão boa?

Eu e Duílio continuamos nos vendo às escondidas por mais de um ano. Eu jamais tinha coragem de confrontá-lo quanto à sua ‘outra mulher,’ com quem ele jurava ter terminado tudo, mas eu sabia que não era verdade. Eu não queria espantá-lo de vez para longe de mim, e apesar da minha aparente maturidade, não passava de uma menininha assustada que não tomava uma atitude porque não saberia lidar com suas possíveis consequências.

Meu relacionamento com minha mãe era uma verdadeira geleira; mal nos falávamos, e eu sabia que aquilo a fazia sofrer, tanto quanto eu estava sofrendo, ou mais ainda. Mas mesmo depois que eu cortei relações com ela, ainda enganava a mim mesma, dizendo que o fizera porque ela tinha traído meu pai, quando a verdade era bem outra.

Enquanto isso, Marcelo e Cândida se casaram – um grande evento em Rio da Prata. Por mais que Cândida estivesse luxuosamente vestida, penteada e maquiada, e apesar das joias caríssimas que usava, eu olhava para ela e só conseguia enxergar uma jovem extremamente apagada, que não fazia por merecer o lugar ao lado daquele belo homem que Marcelo se tornara. Ela não era a mulher da vida do meu primo. Será que ninguém mais enxergava aquilo, será que a própria Cândida não percebia que ele não a amava? Durante a cerimônia, eu ansiava que Cristina entrasse na igreja de repente e acabasse com toda aquela farsa, o que não aconteceu. Tia Aurora andava para lá e para cá, ajeitando o véu da noiva, segurando os “Pombinhos” pelas mãos durante a festa, para que ficassem sempre juntos para as fotografias, distribuindo lembrancinhas, sorrisos a todos e elogios à sua “Querida nora.” Enquanto isso, eu via Marcelo engolindo em seco e olhando em volta como se procurasse algum lugar por onde escapar dali.

Meu pobre primo.

Ainda comentei com Joana: 

-Ele não parece feliz!

Ela me olhou séria, e respondeu com um tom de crueldade na voz: 

-Você acha que ele teria sido mais feliz se tivesse se casado com a filha da sua empregada negra? 

Depois daquilo, eu me afastei dela, magoada. Nossas conversas depois daquele dia foram todas monossilábicas e frias. Apenas nos cumprimentávamos, pois não havia outro jeito.

É claro que Flora e Eugênio não tinham sido convidados para a festa. Compareceram à cerimônia na igreja, pois meus pais insistiram com Tia Aurora para que não os deixassem de fora, e após muito custo, ela acabou concordando, convencida pelo próprio argumento de que se não os convidasse, daria espaço para especulações sobre o passado do filho.

Nossa casa tornou-se um lugar silencioso e escuro, bem diferente do que costumava ser. Mamãe passava horas trancada no quarto sob o efeito de sedativos; Flora e Eugênio só entravam na casa para limpar ou servir as refeições, sempre se dirigindo a nós com cerimônia e distância. Meu pai ficava sempre em seu escritório, e só nos reuníamos para almoçar e jantar – quase sempre, em silêncio. Eu amava muito meu pai, e vê-lo tão triste me magoava. E na minha cabeça, a minha mãe era culpada por tudo aquilo. Mas havia coisas das quais eu não sabia, e que viria a descobrir da pior forma possível.

Um ano mais tarde, fiquei sabendo que a doença de papai voltara há meses, mas ele não queria que ninguém soubesse, e não havia mais como tratá-lo ou como adiar o seu inevitável fim. Jamais me esquecerei do dia em que entrei em seu escritório e o encontrei se contorcendo de dor. Ele não percebeu minha presença. Assustada, corri até ele e tentei ajudá-lo, mas ele me afastou, dizendo que era apenas uma dor na coluna. Mas ao dizer aquilo, meu pai fez uma careta de dor e tombou no chão. Tentei segurá-lo, mas tudo o que consegui, foi amortecer sua queda. Gritei por socorro, e Flora e Eugênio entraram correndo, seguidos de minha mãe.

Nunca me senti tão sozinha quanto naquele dia. A ambulância chegou, levando-o embora. Minha mãe foi junto com ele, e não voltaria para casa durante meses, ficando hospedada em um hotel próximo ao hospital. Eu estava com 22 anos de idade então. Meu pai ainda viveria por mais três anos, indo e voltando de hospitais. Apesar de sua decisão de não se tratar, ele foi obrigado, por minha mãe, a tentar mais uma vez. E eu me reaproximei dela naquela época, pois via o quanto ela sofria e definhava ao lado dele, não permitindo que ele desistisse.

E de repente, no pior momento da minha vida, um sonho realizou-se; Duílio me disse que antes que meu pai se fosse, gostaria de contar a ele tudo sobre nós dois, e casar-se comigo. Alegou que não poderia deixar que seu melhor amigo fosse embora sem lhe contar toda a verdade. Afinal, devia isso a ele, que o acolhera na firma em um momento muito difícil de sua vida, e dera-lhe todo o apoio, tanto como sócio quanto como amigo. Queria casar-se comigo com as bênçãos de meu pai.

E foi em uma das remissões de meu pai que Duílio contou a ele que nós nos amávamos há anos, e que ele queria casar-se comigo com a bênção dele. Meu pai, que naquele momento estava sentado no sofá da sala, as pernas cobertas por uma manta axadrezada, olhou-nos sem qualquer surpresa ou ressentimento, e balançou a cabeça, concordando: 

-Eu acho que você fez a escolha certa, meu amigo.

Minha mãe, lívida e pálida, levantou-se do sofá e saiu da sala. Entendi que meu pai estava vingado pela traição dela.

É claro; quando Tia Aurora soube, ela alegou que aquilo seria um escândalo; 

-Onde já se viu - disse ela  - uma menina casar-se com um homem mais de vinte anos mais velho que ela? O que todos iriam dizer?

Mas meu pai foi firme em seu apoio a nós. Berta também não ficou feliz por nós, e tivemos uma grande discussão que fez com que ficássemos sem nos falar por mais de um mês. Mais tarde, a conselho de meu cunhado, ela me procurou e pediu-me desculpas. Joana não manifestou qualquer opinião a respeito, e nem poderia, já que não nos falávamos. Flora me olhou longamente, e após chorar um pouco, me desejou felicidades. Finalmente, ela quebrou seu gelo de anos, e me abraçou, chamando-a de “Minha garotinha.”

Fiquei conhecendo meus sogros, já bastante idosos, e os dois não poderiam ter sido mais frios e cruéis. Em sua grande mansão, me receberam em silêncio, fazendo questão de demonstrar que não concordavam nem um pouco com a escolha do filho. Saí de lá arrasada após um jantar que demorou tempo demais, o mais longo de minha vida. Se não fosse pela força que Duílio me passou, eu teria me quebrado ao meio diante daqueles dois. Foram polidos, porém frios, incisivos em suas indiretas e ofensas pessoais, destilando veneno da maneira mais torpe e dolorosa: educadamente. Pensei que, como eram velhos, logo morreriam, e eu não teria de conviver muito com eles.

(continua...)





5 comentários:

  1. Oi Ana, esta cada vez mais emocionante, sera que ela vai quebrar a cara?
    Muitos beijos,Vi

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  2. I agree, the suspense is building...it is so exciting!😊😊

    Hugs xxx

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  3. Ana minha querida! Que história! Da um filme. Situações assim com certeza já aconteceram em famílias. Emocionante! parabéns pela criatividade. Abraços

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  4. "Portugal is the Biggest Racist country that i have ever lived in. I feared for my life there and i consider myself lucky that my family got out alive! I have never lived in such poverty (Sopas dos Pobres everyday) 40% unemployment rate and 60% of the population earn less than $932 USD per month, and that's considered Middle Class here! Within the European Union it is the worst of the worst place to live.

    The bottom line is the bulk of the People in our poor country exist in a brainless comma that is fed by Ignorance, anti-Spanish hate, and severe Racism of pretty much everybody that isn't Portuguese! And, Portugal started the Global Slave Trade in 1441 so it is definitely NOT a safe place for Blacks!!
    I found important websites that explain the Severe multi-generational Racism and Hate that exist in Portugal today, and i highly encourage all to read them and spread the word in order to avoid innocent, and desperate people from living or visiting there. Get educated on the Truths about Racist Portugal now."

    Here are only a few, of the many, online sources available detailing HOW Portugal is a severe racist/xenophobic country, and the steps they take to HIDE this fact from everybody else on earth:

    1) http://www.theroot.com/articles/history/2016/02/a_white_journalist_discovers_the_lie_of_portugal_s_colonial_past/
    2) https://portugalwasabadcolonizer.neocities.org/
    3) https://www.wordsinthebucket.com/racism-in-portugal-against-african-descendants
    4) https://www.theguardian.com/cities/2019/jan/31/lisbons-bad-week-police-brutality-reveals-portugals-urban-reality
    5)https://www.bbc.com/news/world-europe-44965631

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