segunda-feira, 27 de maio de 2019

INOCÊNCIA - PARTE I, CAPÍTULO XXI






LOUCURA

Na noite em que celebramos o nosso noivado – um jantar na nossa própria casa, com a presença de meus pais e de Berta e seu marido – minha mãe fazia um enorme esforço para mostrar-se feliz, mas quando eu a segui até a cozinha, encontrei-a sentada no chão junto ao fogão, chorando muito. A cena, ao invés de me deixar comovida, me aborreceu e escandalizou. Tentei controlar as minhas palavras, mas acabei perdendo a cabeça: 

-Parece que você não está muito feliz, mamãe. Seria porque sua filha mais nova vai casar-se ou porque ela está para fazê-lo com o seu amante?

Minha mãe ergueu-se do chão com um salto, e postando-se diante de mim, pela primeira e única vez, ela me bateu no rosto duas vezes. A fúria nos olhos dela mexeu mais comigo do que os tapas em si. Ela era a minha mãe, e poderia ter me batido por qualquer motivo, e eu a teria perdoado, mas não por estar com inveja de mim. Aquilo, eu jamais poderia perdoar. Devolvi o tapa, o que a deixou perplexa e totalmente sem ação, e então, juntando todas as minhas forças para não chorar enquanto falava, deixei que as palavras que estavam engasgadas há anos saíssem bem devagar, em voz  
baixa e controlada:

-Não se pode ter tudo, mãe. Você já tem o papai. Você teve a nós. Tem esta casa. Não é o suficiente? Quer ter também o melhor amigo de papai na sua cama?

Parei para tomar fôlego, e continuei: 

-Ele será meu marido! E não há nada que você posa fazer para impedir. Não vê que já está velha e que logo estará feia? Posso dar a ele toda a minha juventude! Posso dar a ele filhos. E você, o que tem para dar? Seus anos de velhice e depressão?

Minha mãe deixou que as lágrimas caíssem livremente, e sua respiração estava difícil. Achei que fosse me bater novamente, mas ao invés disso, ela virou-se de costas para mim, abrindo a geladeira e pegando a sobremesa e colocando-a nas minhas mãos: 

- Leve isto para a mesa, por favor.

Eu não estava preparada para aquela reação. Ainda fiquei de pé ali na cozinha, olhando as costas dela, que estavam envergadas, e sua respiração entrecortada. Minha mãe estava apoiada com as duas mãos sobre o mármore da pia, e vi que não tinha feito as unhas. Ela, que sempre tomara muito cuidado com a aparência pessoal, parecia ter envelhecido muitos anos. Estava magra, os cabelos brancos apareciam nas raízes, as unhas não estavam feitas, e ela usava um de seus vestidos antigos. Há muito tempo não comprava nada novo para si mesma. Percebi que ela passara todos aqueles anos amargurada com a doença de papai, e que realmente dedicara-se a salvá-lo e a dar-lhe conforto. Pensei no peso que ela deveria estar carregando, e no quanto estaria se sentindo triste. Achei-me cruel demais; quem sabe, ela tivesse mesmo precisado de uma válvula de escape? Nunca nenhum de nós perguntou-lhe se ela estava bem; nunca ninguém perguntou a ela se queria que a substituíssemos no hospital por uma noite. Nunca. Talvez Duílio tenha sido o único a realmente olhar para ela, e enxergá-la. Dei um passo adiante, na direção dela. Eu queria abraçá-la e pedir perdão. Eu queria apenas que tudo voltasse a ser como era antes, como sempre tinha sido antes. Eu queria a minha mãe de volta; coloquei a travessa sobre a mesa da cozinha, e esperei, tentando tomar coragem para fazer o que desejava.

Murmurei, enquanto erguia a mão em direção aos ombros dela: 

-Mãe, eu...

Mas ela me interrompeu, e sem me olhar, gritou alto: 

-Vá! Vá agora!

Meu coração deu um salto, e depois parou dentro do peito. Sai da sala e tranquei-me no banheiro para chorar. Quando cheguei à sala de jantar, a sobremesa estava na mesa, e todos estavam calados. Minha mãe não estava lá; tinha ido descansar, pois tivera uma súbita dor de cabeça. Do outro lado da mesa, Berta me fuzilou com os olhos. Uma questão surgiu em minha cabeça: será que ela sabia? Da maneira como Berta me olhou, compreendi imediatamente que sim, ela sabia. Todos ali sabiam, de alguma forma. Eu tinha sido a última a saber.

Duílio, constrangido, olhava para o prato diante dele. Meu pai respirou fundo, e pegando sua tigela, serviu-se da ambrosia. O resto da noite foi um festival de silêncios entrecortados por comentários forçados feitos por Sebastian e por Tia Aurora. Às vezes, só por gentileza, alguém os respondia. Parecia que o mundo todo estava conspirando contra a minha felicidade, contra mim e contra Duílio. Todos eram frios conosco, até mesmo papai, que eu tanto amava. Flora entrava para substituir alguma travessa e nem sequer me olhava.

O jantar foi um verdadeiro fiasco. Quando todos se foram, pedi a Duílio que passasse a noite, mas ele achou melhor ir embora e ficar em um hotel. Seria constrangedor demais permanecer ali, já que tinha a impressão de que a família não aprovara nosso noivado. Em nenhum momento ele mencionou minha mãe ou seu possível caso com ela. Agia como se nada tivesse acontecido entre eles. E eu, que não podia sequer cogitar a hipótese de perdê-lo, fingia não saber de nada também. Ele logo seria meu, e o tempo consertaria tudo e curaria todas as feridas. Enquanto estivéssemos todos fingindo, nada de mal poderia acontecer.

Eu estava apenas indo contra as convenções e pegando com as mãos aquilo que eu queria.

Mas não consegui ir adiante.

Alguns dias após o meu noivado, ao ver minha mãe cuidando de meu pai, que tivera uma recaída, com tanto amor e dedicação, cheguei à conclusão que homem nenhum do mundo poderia destruir o relacionamento entre uma mãe e sua filha, ou entre toda uma família. Minha mãe, combalida e pálida, alimentava meu pai com uma colher e um prato de sopa. Eu estava passando pelo quarto deles quando vi a cena pela porta entreaberta. Ele dizia que estava satisfeito, e ela, brincando com ele, fazia com que ele conseguisse comer apenas mais uma colher. Aquilo era amor. Não poderia ser outra coisa. De repente, comecei a sentir um medo enorme de ter que, um dia, fazer aquilo por Duílio, e a constatação de que talvez eu não conseguisse, fez com que um sino soasse dentro da minha cabeça. Eu estava apaixonada por ele, e ele por mim. Mas compreendi que eu não o amava de verdade. Compreendi que, sendo tantos anos mais nova que ele, certamente entregaria a ele os melhores anos da minha juventude. E o que ele poderia me dar de volta? Um homem que é capaz de amar, ao mesmo tempo, uma mãe e sua filha, colocando-se no meio de uma família onde o protagonista daquela traição é seu melhor amigo, mereceria aquele tipo de dedicação?

Aquele pensamento tomou conta de minha cabeça durante dias. Duílio estava em viagem de negócios então, e me peguei constatando que nem sequer sentia tanta falta dele assim. Era como se Duílio fosse um brinquedo que eu, uma criança mimada, desejasse muito, mas que ao consegui-lo, perdesse o interesse.

Naquela noite, eu conversei com meus pais e disse que ia desmanchar o noivado. Disse a eles que nada poderia ser maior do que o meu amor por eles. Nós nos abraçamos e choramos. Minha mãe perguntou se era aquilo mesmo que eu queria, e que para ela, tudo o que importava, era que eu fosse feliz. Já à sós na cozinha, quando papai já dormia, ela me confessou que tinha se apaixonado muito por Duílio, mas que nunca tivera nada com ele, a não ser alguns beijos e abraços, e longas conversas estressantes. Disse que eu precisava saber daquilo, pois talvez a informação me fizesse mudar de ideia e casar-me com ele. Disse também que ela nunca deixara de amar meu pai, e que desde o início, jamais escondera nada dele. Meu pai guardara aquele segredo por anos e anos, pois não queria destruir a família. Além disso, amava mamãe e não queria perdê-la. No fundo, ele sabia que não viveria mais muito tempo, e queria que ela tivesse a chance de ser feliz com outra pessoa, e Duílio era um bom homem.

Da última parte, eu duvidava. E mais tarde, saberia que eu estava certa: Duílio não era um bom homem, nem um amigo verdadeiro. Depois que desmanchei o noivado com ele, fiquei sabendo que ele não tinha qualquer escrúpulo ou respeito pelas mulheres.

Quem me contou? Cristina. Deixo agora esta narrativa nas mãos dela.


FIM DA PRIMEIRA PARTE, NARRADA POR YARA.

NA PARTE II, NARRADA POR CRISTINA, SABEREMOS O QUE ACONTECEU COM ELA E A CONCLUSÃO DA HISTÓRIA.


8 comentários:

  1. Postagem longa, querida Ana! Sim, é muito difícil destruir o seio de uma família, quando bem formada.
    Beijo

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  2. Oi Ana, ainda bem que ela viu antes, as vezes o desejo cega.
    Muitos beijos,vi

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  3. Olá Ana,
    A inveja é ardilosa e tem poder de destruição sim. Gostei da intensidde do conto e do seu talento.

    Feliz findi!

    Abração!

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  4. Uma história muito bem narrada e que queria em nós impacto. Acho que ela fez bem em ter terminado o noivado.
    Vejamos a continuação.

    Beijos, Ana!

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  5. Um conto muito interessante, com situações próprias da natureza humana...
    Aguardo a conclusão.
    ~~~

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  6. Retificando no meu comentário acima e com direito a reguada.

    "... e que CRIA, do verbo criar em nós impacto".

    Desculpa, tá?

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  7. Olá! Boa Bom dia!!

    Neste mundo virtual encontramos de tudo, mas o seu blog é maravilhoso, vale a pena seguir e já estou ficando, com certeza voltarei mais vezes.
    Criamos um blog para nossa escola- RAIMUNDO HONÓRIO, recém-nascido, mas será um prazer ter você seguindo e nos impulsionando com este trabalho virtual que estamos organizando no nosso cantinho que também é de todos!
    Tenha um fim de semana feliz e abençoado. Abraços da família RH.

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