quarta-feira, 18 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 6


 



Parte 6


Nem sei como, mas eu me apaixonei pelo Jonathan. Ele acaba de sair da minha casa após ficar conversando comigo na varanda durante quinze minutos, e todo o meu corpo está formigando. Ele não sabe nada de mim, e eu não sei nada dele. Ele só sabe que meu pai morreu, mas sequer sabe que eu estou totalmente só, que não tenho mãe, que fui emancipada. Só falamos de coisas banais, como o quanto está frio, que ele não gosta de futebol, como a maioria dos meninos, mas que adora livros e filmes (a minha TV ainda estava ligada quando ele entrou na sala, e passava um filme) e eu disse a ele que meu autora favorita é Ali Shaw, e ele me responde que nunca tinha ouvido falar dela, então eu entro e pego o livro “A Garota dos Pés de Vidro” na estante e dou para ele. 

Quinze minutos depois, ele vai embora, levando as caixas cheias de roupas, sapatos e livros do meu pai. Promete voltar para me devolver o livro assim que terminar de ler. Penso: tomara que ele leia bem rápido. Ficamos tão envolvidos, que sequer nos lembramos de trocar nossos telefones.

Meus tios me ligam para saber como eu estou, e minha tia percebe que minha voz está melhor, como ela mesma diz. Me convidam para jantar, mas eu não quero, nem mesmo depois que ela diz que meu tio pode passar para me buscar de carro. Quero apenas ficar em casa, pensando em Jonathan. 

Mas os dias passam, um, dois, três, quatro... dez, vinte. Ele não volta. Minhas aulas recomeçam na escola, e chegar na escola e ter os olhos de todos os meus colegas voltados para mim, é constrangedor. Eles todos querem saber como é ser órfã de pai e mãe. A essa altura, descobriram que fui emancipada, e alguns deles me dizem que sentem inveja. Respondo que daria tudo para não ser emancipada e ainda ter meu pai sendo responsável por mim. Eles baixam a cabeça, constrangidos. Penso no quanto as pessoas dizem coisas idiotas tentado ser gentis. 

Penso também que aquele seria meu último ano na escola, e fico feliz. Porque com certeza, eu não sei como lidar com os outros jovens, sou a esquisita, a “misfit”, a “weirdo.” Alguns me olham como se quisessem me conhecer melhor. Os meninos me olham com olhos famintos, mas jamais tentam se aproximar, pois meus cortes são impiedosos. Nenhum deles me interessa, e também não quero saber sobre vestidos, sapatos, maquiagem, times de futebol e bandas de hip-hop. Parece que ninguém lê, ninguém sabe quem são Ali Shaw, Richard Bach, Fernanda Young. Inútil tentar conversar com eles.

Tia Atena e tio Heitor vêm aqui às vezes, mas suas visitas são cada vez mais raras e curtas, porque não temos assuntos a conversar. Eu não sinto falta deles, e nem eles de mim. Após um mês e meio da morte de meu pai, as visitas deles praticamente terminam, e eu dou graças a Deus por isso. De vez em quando, mandamos mensagens que respondemos com emoticons. Mas sei que elas logo também vão parar, pois já usamos quase todos eles. 

Minha rotina: acordar, tomar café, ir à escola, fazer os deveres de casa, preparar minhas refeições, limpar a mina d’água de vez em quando, cuidar da hortinha, pagar as contas da casa, ir ao banco, fazer algumas compras pela internet (detesto ir ao mercado), assistir filmes, limpar a casa uma vez por semana. O jardineiro vem três vezes ao mês. Mal conversamos, ele entra, faz seu trabalho, eu o pago e ele vai embora. Nem sei se ele sabe que meu pai morreu. Também assisto muitos filmes e leio, leio, leio. Sinto falta do meu pai, mas como ele mesmo previu, estou superando. Já não dói mais. De vez em quando, converso com ele. Conto sobre algum filme ou livro, ou sobre alguma idiotice dos colegas de escola. Quando estou na mina é quando me sinto mais perto dele. Parece que sinto ele me ensinando a cuidar dela. Mergulho minhas mãos na água gelada de olhos fechados, e escuto o riso dele.

Quase três meses após a primeira vez que nos vimos, Jonathan reaparece. É uma manhã de sábado, e ainda estou sonolenta quando a campainha toca, sem que eu sequer imagine que poderia ser ele. Tento ignorar, mas ele insiste. Quando finalmente abro a porta, ainda de pijama, e deparo com aqueles olhos intensos, desperto completamente. Ele me estende o livro. Eu mando ele entrar, e vou vestir alguma coisa melhor; escolho um par de jeans e uma camiseta preta novos. 

Nos sentamos diante um do outro, ele na poltrona, eu no sofá, as pernas cruzadas. 

-E então? Gostou do livro?

Ele demora um pouco a responder:

-É muito legal. Sabe, imaginei o que poderia estar transformando as pessoas em gelo... e pensei muito em você, Valentina. Você e a personagem principal parecem ter muito em comum.

Me surpreendo, interessada. Finalmente, alguém para realmente conversar! Me mexo na almofada, pronta para assumir uma posição confortável para que eu possa ficar sentada por horas.

-Mesmo? O que?

- Então... quando eu a vi pela primeira vez... não fique chateada, com isso, mas... pensei que você era uma pessoa fria. Até mesmo seu choro era contido, como se chorar fosse um sinal de fraqueza. Senti raiva no seu choro. Acho que você deveria ter cuidado com esse gelo nos seus pés.

Me sinto corar, e não respondo. Olho para a ponta dos meus pés descalços, me concentrando no esmalte vermelho das unhas. Ele está certo. Aprendi que chorar é sinal de fraqueza. Raramente choro. Olho para ele:

-Ok, ponto pra você. Agora me fale um pouco de você.

Ele parece confuso por um momento, como se estivesse escolhendo que tipo de informação quer me passar. Foi devagar:

- Hum... eu tenho vinte e um anos, trabalho e moro na instituição – fui criado lá – sou órfão, nunca conheci meus pais. Não fui para a faculdade porque não tenho grana. Aliás, eu não tenho nada. E mesmo assim, tenho tudo. Porque eu sou livre. Materialmente, tudo o que eu tenho, está em um quarto que mede 3 X 3. 

Fico chocada com a sinceridade dele. 

-Uau! 

-Uau! – ele repetiu. 

Nós rimos. Ele continua:

-Eu... namoro uma garota. O nome dela é Priscila, e ela também foi criada na instituição. Quando ela chegou lá, eu tinha cinco anos, e praticamente crescemos juntos.

Meu coração murcha, e eu engulo em seco. Tento não demonstrar a minha decepção, mas sinto que ele a percebe. Suspiro e dou um sorriso nada espontâneo:

-Bem, esta é a sua vida. Ela... a Priscila... você gosta muito dela?

Ele concorda com a cabeça:

-Muito. Mas... ah, deixa pra lá.

- Não, fala! Mas...?

Os olhos dele são tão bonitos, e se derramam tanto em cima de mim, que antes que ele diga alguma coisa, eu sei o que estava na cabeça dele: ele gosta de mim.

-Eu não consigo parar de pensar em você. 

-Ah, então foi por isso que demorou tanto a aparecer?

Falo aquilo em tom de brincadeira, mas ele concorda:

-Foi sim. Eu nunca questionei o que eu sinto pela Pri. Até ver você. Tive a impressão de que já nos conhecíamos antes. Sei lá. Foi.... esquisito.

- Uau... isso é muito estimulante. Saber que me conhecer foi esquisito pra você.

Ele ri, e eu também. Comento:

- Mas você tem uma namorada.

-Eu tenho uma namorada. E não costumo ser infiel, aliás, eu jamais fui infiel com ela.

Mudo o tom da conversa:

-Sabe... depois que meu pai morreu, descobri que ele e minha mãe se conheceram quando ele ainda era casado com outra mulher. Ela era meio-surtada, e quando ela descobriu sobre os dois, cometeu suicídio. Quando minha mãe ficou doente, ele teve um caso com outra mulher, bem durante a doença dela, quando ela mais precisou dele. O suicídio da primeira mulher de meu pai, de alguma forma, impediu que meus pais fossem realmente felizes. Eles brigavam muito, e embora se amassem, o que aconteceu sempre pairou sobre a vida deles.

Ele me ouve em silêncio, os olhos presos nos meus. Depois que eu falo, ele permanece quieto, mas os lábios dele se entreabrem, e ele fica vermelho. Está chocado com a minha história. Como ele é lindo! Eu continuo:

-Jamais serei como a minha mãe. Nunca vou construir a minha vida em cima da ruína de alguém. 

Naquele instante, ele se ergue feito uma bala e sai pela porta, batendo-a atrás de si. Eu não me levanto para segui-lo. 

Horas depois, enquanto eu termino de lavar a louça de um almoço que eu não consigo comer, a campainha toca de novo. Abro a porta, já sabendo que é ele, mas sem saber o que ele me diria:

- Eu terminei com a Pri. 

Dizendo aquilo, ele me beija. E quando ele me beija, todas as pontas da minha vida se ligam. Tenho uma sensação de força, alegria, uma certeza de que dali em diante, as coisas vão melhorar muito para mim, e que eu finalmente saberei o que realmente significa ser feliz.

E esse foi o dia em que Jonathan me beijou pela primeira vez.

(CONTINUA)





Um comentário:

  1. Olá Ana :)
    E cá estou eu a seguir esta bela "estória"
    Bonito este 1 beijo, quem sabe a porta para novos caminhos onde as pontas da vida se vão ligar. De certeza de que dali em diante, as coisas vão melhorar e ela vai conseguir ser feliz.
    Abraço e brisas doces **

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