segunda-feira, 19 de setembro de 2016

FEITIÇOS DE AMOR – CAPÍTULO VII







Na manhã de domingo, antes mesmo que todos se levantassem, acordei com o som da TV no quarto de Flora. Vesti meu roupão e fui até lá, pois queria saber o que tinha acontecido no dia anterior, quando eu estava fora, que poderia ter levado papai a sair de casa sem sequer despedir-se de mim. Encontrei Flora entretida com um filme de terror. Ela nem ergueu os olhos da telinha quando entrei e me esparramei na cama ao lado dela. Olhei o relógio na cabeceira: ainda eram seis e quinze da manhã, e as cortinas ainda estavam fechadas, mas uma luz pálida já atravessava as frestas quando a brisa da manhã, fresca e cheirando a chuva, soprava.

Na tela, uma estranha e medonha criatura perseguia um grupo de adolescentes em uma casa velha, no meio de uma floresta. Flora não gostava daquele tipo de filme, e estranhei que ela o estivesse assistindo. Aproveitei um intervalo para tocar no assunto:

-O que aconteceu ontem quando me ausentei?

Ela bocejou, espreguiçando-se:

-Uma cena de ciúmes, só porque após o jantar papai e Maya foram levar as coisas da mesa até a cozinha e demoraram um pouco a voltar, e mamãe foi atrás deles, e achou os dois de papo perto da pia. Ela fez uma cena tremenda de ciúmes, gritou, esbravejou, tia Maya disse que ia embora, mas Vó Duda a impediu, e então papai achou melhor que ele saísse para evitar novas cenas como aquela. Mas fique tranquila, eles não se separaram nem nada... é temporário, só enquanto a Tia Maya estiver aqui.

-Pois eu acho isso péssimo! Mamãe poderia demonstrar um pouco mais de amor próprio. Achei óbvio demais o modo como ela apareceu toda embonecada ontem. Deixou claro que estava com ciúmes, e deu poderes à Tia Maya. E não sei porque Tia Maya tem que ficar logo aqui, poderia ficar com a Tia Joana e o Tio Nestor. 

-Mas é Vó Duda quem insiste, pois quer que as duas façam as pazes. Ela disse isso ontem. As duas precisam se entender antes que vó Duda... você sabe.

Cortei-a de modo grosseiro:

-Morra. Por que todo mundo tem medo desta palavra? Por falar em morte, acho egoísta a maneira como mamãe está se comportando, brigando à toa na frente da vó, sabendo o quanto ela está doente. 
Poderiam ao menos fingir um pouco.

-Concordo... mas onde você estava ontem, durante todo aquele tempo?

-Lá na beira do rio, pensando na vida.
Ela riu:

-Nossa... você soa como quem tem trinta anos. Agora cale a boca, o filme começou.

Levantei-me da cama em um salto, e voltei para o meu quarto a tempo de ver o celular piscar. Uma mensagem de voz de papai:

-Oi, querida. Estou no Hotel Narciso, se quiser falar comigo. Não se preocupe, está tudo bem comigo e sua mãe, é que eu só quis evitar mais cenas na frente de Vó Duda. Ela ficou bem mal ontem. E por favor, não julgue sua mãe. Não nos julgue. Em breve tudo isso será apenas um pesadelo distante. Se precisar, venha aqui ou então me ligue. Beijos.

A última frase soara um tanto forçada. Se estivesse tudo bem entre eles, ele não teria ido para um hotel. Eu sabia que uma grande ameaça pairava sobre a nossa família, com a chegada de Tia Maya, a doença de vó Duda, os segredos revelados e a partida de Dora. Nada mais seria como antes, o que me assustava. Eu estava acostumada à nossa vida certinha e previsível, e apesar de dizer muitas vezes que gostaria de um pouco mais de ação, na verdade o que eu queria é segurança. Um dia, papai me dissera que segurança é uma palavra vazia de sentidos, pois nada na vida pode ser calculadamente previsto e determinado, pois a vida era sempre cheia de surpresas. Concordei com ele, mas achando que tais surpresas nunca diriam respeito à nossa família. 

Mais ou menos às sete e trinta, escutei o movimento da casa começando: portas batendo e rangendo, barulhos de chuveiro, tilintar de xícaras e talheres na cozinha. Meu estômago roncou, me lembrando de que fazia quase um dia desde a última vez que eu comera. Tomei uma ducha e desci, a fim de resolver pelo menos aquele problema. 

Encontrei Tia Joana na cozinha, pondo a mesa, ajudada por Tio Nestor. Eles me olharam de maneira estranha quando entrei, e vi que Tio Nestor me cumprimentou entre os dentes, e Tia Joana mal me olhou. Sentei-me à mesa:

-Bom dia, gente.

Ambos responderam ao mesmo tempo, as vozes baixas. Tia Joana terminou de coar o café, e sentou-se na minha frente:

-Eleanor... preciso perguntar o que está acontecendo entre você e Dora. Sempre foram tão amigas!

Fingi inocência, e comecei a brincar coma  colher dentro da xícara:

-Não sei do que você está falando, tia. 

-Não se faça de boba. Sei que você está vivendo momentos difíceis, mas isso não é motivo para destratar minha filha. O que houve?

Eu pigarreei, tentando evitar aquela conversa – que com certeza, teria que acontecer. Olhei de rabo de olho, e vi Tio Nestor me olhando fixamente, com um ar entre zangado e magoado. Ele disse:

-Nunca vi vocês assim, tão afastadas, e tudo começou quando você ficou sabendo que Dora foi aceita no programa de TV. 

Eu não respondi. Nervosa, senti a garganta apertar e doer. Se falasse, choraria, então apertei a colher com força entre os dedos e evitei olhar para eles. Tia Joana falou:

-Eleanor... esta será a primeira vez que você e Dora ficarão separadas. Talvez seja isso? Você está com medo de perder sua amiga?

Concordei com a cabeça, sabendo que ela estava certa, mas havia algo mais que eu não queria admitir: a inveja e o ciúme. O medo de ficar sozinha naquela cidadezinha enquanto acompanhava a carreira de Dora pela TV e pelas revistas. O pavor de ver minha prima gordinha alcançar um sucesso que pertencia, ao meu ver, às pessoas bonitas e populares como eu. A frustração por não ter nenhum talento especial que me diferenciasse da maioria das pessoas. Eu queria ser especial como ela, saber cantar e tocar um instrumento, compor e escrever poemas. Mas apesar de já ter secretamente tentado, eu era um fracasso. Minha voz desafinava, e quando pegava num lápis ou me sentava ao computador, só saiam coisas ridículas e desconexas, sem sentido, ridículas mesmo. Eu me sentia ridícula diante de Dora, e por isso, fingia que eu era superior e fazia com que ela andasse sempre à minha sombra, manipulando-a de todas as formas e deixando-a sempre à mercê de minhas escolhas. E queria acreditar que era assim: eu era a prima e amiga legal que ajudava a outra amiga a sentir-se alguém, e sem mim, ela não seria nada. 

Gostava de pensar que a minha amizade era um presente que ela deveria valorizar e jamais desprezar ou contestar, sob o risco de perde-la. Tia Joana suspirou:

-Menina, vocês estão crescendo. A vida não pode ficar sendo sempre a mesma coisa, sabe? As pessoas mudam, as coisas mudam. Mas mesmo assim, tais mudanças podem ser muito boas! Tenho certeza de que a amizade de vocês pode ser para sempre. Acredite em mim, Dora está sofrendo com a sua atitude. Ela esperava mais apoio de sua parte. Ela esperava que você a elogiasse, dissesse que acredita nela e que a apoia. É isso que os amigos de verdade fazem.

Dizendo aquilo, ela começou a colocar os pães e o bolo sobre a mesa. 

Tia Maya apareceu à porta, usando uma camisola preta longa sob um penhoar rendado. Os cabelos pretos estavam presos em um coque meio-desmanchado, e ela estava sem maquiagem, embora deslumbrante. Espreguiçando-se e beijando Tia Joana no rosto, exclamou:

-Nossa! Que cheirinho bom! – e me olhando: - Bom dia, Eleanor. Bom dia a todos.

Eu não respondi, mas fiquei olhando para ela de rabo de olho. Meus sentimentos a respeito de Tia Maya eram confusos, e eu não sabia como reagir a ela. Tio Nestor serviu-se de um gole de café que ele colocou em um copinho que estava sobre a pia, e pegando uma fatia de bolo, começou a comer de pé, junto à pia, e de boca cheia, disse:

-Vou indo. Bom dia pra quem fica. Tenho que abrir a loja.

Eu disse:

-Mas hoje é domingo!

Ele concordou:

-Eu sei. Mas um fornecedor fará uma entrega hoje cedo e tenho que estar lá. Mas volto para o almoço, que hoje vai ser lá em casa, Ok, Maya? Em homenagem à sua chegada.

Ela concordou, sorrindo:

-OK! Obrigada, Nestor! Vocês estão sendo uns anjos para mim. Espero conseguir dobrar Agnes... queria tanto que ela me aceitasse!

Achei a voz dela um tanto afetada. Tio Nestor saiu.  Naquele momento, mamãe entrou, já vestida e – surpresa – maquiada.

-Bom dia, gente.

Ela sentou-se e começou a tomar o café, servindo-se de uma grossa fatia de bolo. Logo, Vó Duda entrou na cozinha, usando um vestido cinza com pala bordada de preto. Eu adorava aquele bordado, feito à mão por ela mesma. Eram umas rosas de formato intrincado, que pareciam mover-se ao sabor do vento. Só ela conseguia dar movimento a um simples bordado. Flora chegou em seguida, beijando a todos – inclusive Tia Maya. Estávamos todos comendo em silêncio, quando a porta dos fundos abriu e papai entrou:

-Bom dia!

Ele também sentou-se à mesa conosco. Mamãe corou ao vê-lo, e eu notei que ele evitava olhar para Tia Maya – talvez com medo de começar outra cena. Vó Duda, com sua impecável e habitual sinceridade, cortou o silêncio:

-Bem... afinal, a família está reunida novamente. E espero que desta vez, sem nenhuma palhaçada como a de ontem (ela fuzilou minha mãe com os olhos, e mamãe corou novamente). Agora acho que já passou da hora de colocarmos os pingos nos ‘is.’ Eu não tenho mais tempo e nem energia para desperdiçar.

Ficamos todos pouco à vontade, esperando ela continuar. Vó Duda saboreou nosso silêncio, tomando seu café, e depois emendou:

-Hoje eu quero deixar uma coisa bem clara entre os membros desta família: quero que vocês possam se entender. E você, Berto, vai tratar de ficar em sua casa junto à sua esposa e filhos, onde é o seu lugar. 

Papai interrompeu-a:

-Mas vó Duda, eu acho melhor...

-Cale a boca. O melhor para uma família é que seus membros se entendam e permaneçam unidos.
Naquele momento, notei a falta de Dora. Mas não me atrevi a interromper vó Duda a fim de perguntar sobre ela. Vó Duda continuou:

-Maya, você foi a mais injustiçada de todos. Eu a mandei para longe, quando deveria ter insistido que você ficasse e lutasse pelo que era seu. Ao invés disso, apoiei os caprichos de Agnes, achando que assim estaria protegendo você dos arroubos dela. Eu peço desculpas. Seu lugar é entre os membros desta família à qual você pertence, e é amada por todos nós, inclusive por Agnes. Porém, as coisas agora estão assim: Agnes e Berto estão casados, e tem duas lindas filhas, e é assim que as coisas devem permanecer. Respeite este arranjo.

Tia Maya baixou os olhos, mas não disse nada. Mamãe pigarreou, desconfortável, mas também ficou calada.

-Quanto a você, Agnes... você errou muito, e continua errando. Trate bem à sua prima, que na verdade, deveria ser considerada como uma irmã. Os erros do passado já estão no passado, e não podem ser mudados, mas podem ser perdoados. Perdoe Maya, pois ela tem muito mais a perdoar de você do que você dela. 

Todos achamos que ela já tinha terminado, mas após alguns minutos de silêncio, Vó Duda voltou a falar:

-Quanto a vocês, Joana e Nestor, vocês estão responsáveis por esta família depois que eu me for, já que parecem ser os mais sensatos por aqui. sua missão é manter a todos unidos, sempre. (e olhando para mim):

-E você, mocinha, não cometa os mesmos erros que estou tentando consertar: fique feliz pelo sucesso de sua prima e amiga, dando a ela o apoio de que necessita. 

Eu me encolhi na cadeira, sentindo vergonha. Olhando para Flora, Vó Duda exclamou:

-E você, minha pequena flor, é o mais lindo fruto desta família. Agora, vamos todos tratar de seguir com a vida e deixar para trás o que houve ontem. 

Após terminar de falar, o semblante de minha avó assumiu um ar cansado e triste. Pareceu a mim que ela tinha colocado uma grande parte de sua energia – a que lhe restava – na elaboração daquele discurso. Depois do café, ela foi deitar-se novamente. 

De fato, parece que depois daquela manhã as coisas começaram a melhorar entre todos. Ninguém podia negar a força da influência de vó Duda. Finalmente, pude perguntar por Dora, no que Tia Joana respondeu:

-Ela está em casa, com o seu pianista...

Quase caí da cadeira:

-Fred está lá?

-Você já o conhece?

Contive meu entusiasmo, enquanto estava sob os olhares de todos:

-Sim, de vista, pois eu indiquei o caminho para ele ontem à noitinha. 

Flora logo percebeu meu interesse:

-Pelo jeito, deve ser um tremendo gato.

Arregalei os olhos:

-É bonitinho sim...

Todos riram. O ambiente se descontraiu, e o café da manhã terminou sem maiores perturbações.
Mais tarde, fomos todos almoçar em casa de Tia Joana e Tio Nestor. Eu passei algum tempo escolhendo uma roupa legal, pois fiquei sabendo que Fred estaria lá – convidado de Dora para o almoço. O fato de minha prima não ter me falado que estava pensando em contratar um pianista para tocar com ela não me afetava mais. Eu só pensava em rever Fred. 

Acabei escolhendo um vestido estampado com flores miúdas, coberto por uma renda preta. Calcei um par de sandálias baixas, escovei os cabelos tentando fazê-los brilhar o máximo possível, passei um pouquinho de blush, delineador sob os olhos e um batom incolor. Achei que meu visual despojado agradaria um músico como ele. Flora, usando sua velha jardineira jeans, surpreendeu-se ao me ver no corredor:

--Nossa... então a coisa é séria.

Eu ri, mas não respondi. Eu não tinha a mania de responder as perguntas retóricas das pessoas. 

Quando chegamos lá, as mulheres foram para a cozinha, papai e Tio Nestor foram olhar algumas coisas na oficina e Vó Duda sentou-se na poltrona, junto à janela, onde uma brisa refrescante soprava. Eu, Flora , Dora e Fred fomos até o quarto de Flora, a fim de escutar o arranjo que Fred tinha feito para uma das músicas de Flora. A letra tinha sido escrita por ela, e o arranjo estava perfeito. Ele a acompanhou, tocando violão. Contou-nos que tocava piano, violão e baixo. 

Enquanto a música era executada – a voz perfeita de Dora parecia ter sido feita para o arranjo de Fred – eu não conseguia tirar os olhos dele. Tentei disfarçar, mas eu estava simplesmente apaixonada. Olhava os dedos dele que percorriam as cordas do violão com maestria, os cabelos ondulados que às vezes caiam sobre a testa, dando-lhe ainda mais charme, a boca perfeita se abrindo em um sorriso e deixando revelar os dentes tão brancos. Eu queria beijar aquela boca!
Finalmente, fomos chamados para almoçar, e o encanto que eu sentia foi quebrado por alguns instantes.

Eu nunca ficara tão fragilizada perto de um rapaz antes. Sempre sabia o que dizer e dominava a situação com graça, mas Fred me deixava tímida, sem-jeito. Eu derrubei o copo de suco, espetei a boca com o garfo, e ao espetar uma coxa de frango, vi-a escorregar para fora do prato e aterrissar sobre a toalha de linho branco de Tia Joana. 

Fred foi o alvo das atenções, respondendo às perguntas de todos com simpatia. Vi que Vó Duda também se deixara apaixonar pelos encantos dele. Depois do almoço, ele a ajudou a sentar-se no sofá, e pegando o violão, tocou para ela uma antiga canção, tão antiga, que surpreendeu a todos o fato de ele conhece-la. Flora me olhava de soslaio, e erguia a sobrancelha, piscando quando ninguém estava vendo. 

Era impossível não se apaixonar por ele. Eu estava bebendo de sua presença, e me deixando embriagar rapidamente, enquanto ele era tão gentil comigo quanto o era para com todos. Nem me passava pela cabeça que ele não se apaixonaria por mim, pois eu sempre tivera todos os garotos aso meus pés. Achei melhor começar a jogar o meu charme, e de tardinha, quando alguns assistiam TV, outros conversavam no jardim e vó Duda dormia no sofá, aproximei-me dele. Estava sentado na varanda, dedilhando o violão de minha prima. Dora tinha ido ajudar Tia Joana na cozinha.

-Oi, Fred.

Ele abriu um sorriso ao me ver.

-Oi, Eleanor. Sente-se aqui ao meu lado!

Obedeci bem depressa, cheia de entusiasmo, e fiz questão de roçar meu joelho no dele rapidamente. 

-O que você está tocando?

-Nada... é só uma ideia que tive para uma música.

-Dora deu sorte em poder contar com você, pois você toca muito bem!

-Obrigada, Eleanor.

Meu nome sendo dito por ele era a música mais bonita. Joguei meus cabelos para o lado, deixando que caíssem sobre um dos ombros, sabendo que meu perfume exalaria até ele. De fato, ele respirou mais fundo:

-Adoro este perfume. É Nina, não é?

Sorri, concordando com a cabeça:

-Sim, é meu favorito também.

De repente, ele pareceu melancólico, e encostou o violão contra a parede.

-O que foi?

Ele baixou os olhos, cruzando as mãos entre os joelhos entreabertos:

-Este perfume me faz lembrar de alguém.

Uma pessoa que foi muito especial para mim.

Fiquei com ciúmes; afinal, estaria ele apaixonado por alguém?

-Alguém que fez ou faz parte de sua vida?

-Alguém que fez parte... estamos separados há um ano. 

-E ficaram juntos por quanto tempo?

-Por cinco anos, desde que eu tinha 15. 

Fiz as contas rapidamente: Fred tinha vinte anos de idade. Cada coisinha que eu conseguia descobrir sobre ele ficava rolando dentro da minha cabeça de um lado para o outro, como uma bala de sabor muito doce: “Ele sabe tocar violão e baixo além de piano.... está se preparando para fazer faculdade de Direito no ano que vem... não tem irmãos nem irmãs... no momento, tem uma banda de rock, e eles tocam em alguns bares e restaurantes nas noites de quinta e sexta... e ele teve alguém importante em sua vida... e tem vinte anos...”

E ele é lindo. E cheira bem. E é a pessoa mais sexy que eu já vi. E tem uma voz de veludo azul, com toques de vermelho nos cantinhos. E seu hálito cheira a hortelã e chá de erva cidreira. E ele está sentado bem junto de mim, e se eu quiser, posso estender a mão e tocar em seu rosto. Vejo os pelos dos braços dele se arrepiarem ao falar do seu ex-amor. Me atrevi a perguntar:

-O que aconteceu? Vocês brigaram?

-Não. Ela morreu. Ficou doente, sabe... durante um ano e meio. Sempre pensei que ela sairia daquela, afinal, essas coisas só acontecem com os outros. 

Imediatamente, entendi o carinho que ele tivera por minha avó desde o início, e me envergonhei de 
trazer à tona memórias tão doloridas.

-Me desculpe, eu não sabia... desculpe... nossa, como sou sem-jeito!

Ele sorriu tristemente:

-Não se preocupe, gosto de falar sobre Helena. Mas já estou bem agora. A gente se acostuma, sabe... eu é que peço desculpas, afinal, mal nos conhecemos e venho despejar meus problemas sobre você.
E ele imediatamente colocou uma barreira entre nós. Tornou-se mais frio, e a intimidade que nascera recolheu-se, para meu desencanto. Ele ainda estava muito apaixonado pela outra menina, ou pela imagem dela que restara. Eu teria que ir com calma, ter mais paciência e tato.

Dora aproximou-se, e logo percebeu o clima entre a gente. Não disse nada, mas eu sabia exatamente o que ela estava pensando. Esta é a vantagem (ou desvantagem) de se conhecer alguém tão bem quanto nós nos conhecíamos.


(Continua...)




sexta-feira, 16 de setembro de 2016

FEITIÇOS DE AMOR – PARTE VI









Eu ia andando rápido pela estradinha de paralelepípedos, e Dora ia quase correndo atrás de mim – era um pouco mais baixa que eu, e estava um pouco gordinha. Ela conseguiu emparelhar comigo, e disse, ofegante:

-Nossa, que confusão, hein? Família, família...

Não sei bem o motivo, mas aquele comentário me deixou irritada. Parei de caminhar, e com as mãos nos bolsos da calça jeans, virei-me para ela, e quase gritando:

- O que tem a minha família? Vai tirar onda para cima de mim agora?

Dora me olhou de volta, surpresa, e vi que seus olhos se encheram de água. Ela encolheu os ombros:

-Desculpe, eu só quis...

-Só quis encher, não é mesmo? Fique você com a sua vidinha perfeita de grande cantora, e me deixe sozinha com os meus problemas de ‘família, família!’

Vi a expressão estarrecida no rosto dela. Boquiaberta, ela gaguejou:

-Hey, espere aí! A família é minha também! O que acontece a qualquer um deles também me afeta!

Revirei os olhos, bufando, e em um tom irônico que surpreendeu até a mim mesma, respondi:

- Daqui a pouco, tudo isso vai ficar para trás para você. Nós seremos apenas pessoas com quem você cresceu, Dora. Não se preocupe tanto.

E continuei a andar, as lágrimas embaçando o caminho à minha frente. De repente, comecei a correr, não sei porquê. Corri e corri, até que não tinha mais fôlego, até que eu chegasse até perto do rio, e me enfiando entre as moitas e folhagens, encontrei a margem e sentei-me lá. Eu estava completamente só. Cigarras cantavam naquela manhã quente, e a água do rio era um espelho. Tanta beleza me deixava ainda mais triste, pois eu me lembrava de quando eu, Dora e toda a família fazíamos piquenique ali. Mas aquilo parecia ter sido há milênios, quando minha avó tinha saúde, meu pai e minha mãe se amavam, Tia Maya era apenas uma figura velada no passado de todos e Dora estaria sempre comigo. Quando eu tinha uma vida normal, e uma família normal e feliz.

Percebi, então, que o maior drama entre todos os dramas que eu estava vivendo, tinha a ver com ela. Saber que Dora poderia realmente tornar-se uma cantora de sucesso e ir embora de Rio Verde, era uma possibilidade que me apavorava. Eu sabia, mais que ninguém que ela era muito boa no que fazia, e que tinha talento e determinação de sobra para conseguir o que queria. Achei que eu ficaria para sempre ali, enterrada naquela cidadezinha (que eu costumava amar apaixonadamente, mas que naquele momento pareceu-me a opção de uma perdedora) enquanto Dora, a que não era tão bonita, nem tão popular, ganharia o mundo. Eu percebi que aquele sentimento que eu estava vivenciando tinha um nome muito feio: inveja. Pensei também na história entre mamãe e Maya, na inveja e nos ciúmes que minha mãe sentia de Maya. Será que a inveja era algo hereditário? Eu queria pensar diferente e torcer por Dora, mas eu não conseguia! Eu me sentia pequena, mesquinha, e muito feia. 

De repente, passei as unhas pelos meus braços, arranhando-me fundo. De certa forma, aquilo fez com que eu me sentisse melhor por algum tempo. Mas quando eu olhei as marcas vermelhas e sangrentas, pensei no que diria às pessoas quando me perguntassem o que era aquilo. Fiquei com medo. Então tive uma ideia: eu diria que tinha me arranhado numa moita de espinhos, quando fiquei presa perto do rio. Realmente, havia várias moitas daquelas, e tínhamos que tomar cuidado para não ficarmos presos nelas pela roupa ou pelo cabelo, ou para não acabarmos arranhados. 

Nem sei quanto tempo fiquei por ali. só voltei para casa depois que tinha chorado todas as minhas lágrimas, e quando uma grossa gota de chuva – seguida de muitas outras – me obrigou a levantar e voltar para casa, no final da tarde.

Fui caminhando devagar, deixando aquela chuva lavar meu corpo e minha mente. Chutava as poças d’água no caminho, como eu fazia na infância, e virava a cabeça para cima, a boca escancarada, tentando beber algumas gotas. E foi assim que ele me encontrou.

Nem notei que estava sendo observada. Estava girando e dançando na chuva, quando em uma das voltas, avistei um rapaz de guarda-chuva parado na calçada me olhando com ar divertido. Imediatamente, parei de girar, e continuei caminhando. Ele riu. Passei por ele com o rosto pegando fogo, e deu para ver o quanto ele era lindo. Tinha cabelos castanhos ondulados e repicados, penteados para trás, era alto, sobrancelhas grossas e bem desenhadas, lábios finos e dentes muito, muito brancos. Os olhos eram de um cinza azulado. Não pude deixar de olhar para ele. Olhei mesmo. E pela primeira vez, senti que alguma coisa acontecia no meu coração, e que ele batia de um jeito diferente, como ele nunca tinha batido antes por um garoto. Passei por ele, sentindo um formigamento pelo corpo, e ele me chamou:

-Isso foi uma dança da chuva?

Parei, sem me virar para ele:

-Foi.

Continuei andando, e ele me chamou de novo:

-Será que você pode me dar uma informação?

Parei novamente, e ele caminhou até mim.

-Você conhece a Dora?

-A Dora? Minha prima. Por que?

Ele sorriu:

-Desculpe, deixe eu me apresentar. Meu nome é Fred. 

Ele estendeu a mão, e eu a segurei, sentindo uma eletricidade diferente passando dele para mim.

-Sou Eleanor. Você quer falar com a minha prima? Ela mora logo ali (apontei na direção da casa de Dora).

Ele sorriu, e me agradeceu:

-Muito obrigada, Eleanor. – o olhar dele para mim era como um jato de ar quente. Fiquei me perguntando o que um menino como ele poderia querer com Dora. Acabei formulando a pergunta, segubdos antes que ele se virasse para ir embora:

-Por favor... se não for incômodo responder... não me considere indiscreta, mas... você e Dora são amigos?

Ele sacudiu a cabeça, negando:

-Não. Na verdade, nem a conheço. Vi o anúncio no jornal, procurando por um pianista, e eu sou um, então...

-Um pianista?

-Sim. Ela quer um pianista para acompanha-la em sua apresentação.

Ele notou o embaraço e a surpresa em meus olhos.

--Você não sabia? Sua prima foi selecionada pelo programa...

-Sim, eu sei – interrompi-o. – mas ela nunca tinha me falado que estava a procura de um pianista.

Ele pareceu um tanto constrangido:

-Bem, quem sabe ela ainda não teve tempo de contar, não é? Foi legal te conhecer, Eleanor, mas tenho que ir.

Ele se afastou, e me deixou plantada na chuva, onde ainda fiquei por alguns minutos, tentando entender o que estava acontecendo comigo – e entre Dora e eu. Ela sempre me contava tudo! Por que tinha escondido aquele fato? Fui caminhando devagar, e entrei em casa. Abri a porta – estava tudo na penumbra. Apenas um abajur aceso sobre a mesinha de canto. Já ia direto para o meu quarto, quando a voz de Vó Duda me assustou:

-Você perdeu o almoço e o jantar outra vez, menina.

Virei-me; ela estava sentada na poltrona ao lado do abajur que estava apagado, enrolada em uma manta.

-Desculpe, vó... mas... eu perdi, realmente, alguma coisa que prestasse?

Ela ergueu um pouco a voz, em um tom que era, ao mesmo tempo, sussurrante e gritante – vó Duda tinha aquela habilidade peculiar das pessoas que gritam enquanto sussurram.

-Não fale assim! Almoços e jantares em família sempre são importantes. Sente aí. Tenho algo para contar a você.

Sentei-me, e esperei.

Ela deu a notícia de supetão:

-Seu pai estará ausente desta casa. Ao menos temporariamente.

-O que? Meu pai foi embora???

Senti que as coisas desmoronavam em cima de mim.

-Sim. Depois que você saiu, as coisas ficaram difíceis.

-Cadê tia Maya? (eu esperava que ela não tivesse ido com ele).

-Está lá em cima, como os outros membros da família. Cada qual em seu próprio mundinho, pensando que assim os problemas se resolverão sozinhos. 

Respirei aliviada por Tia Maya não ter ido embora com papai. Vó Duda parecia muito cansada. Achei que estar ali me esperando para dar a notícia a tinha desgastado. Ofereci-me para leva-la para a cama, e ela aceitou, tomando meu braço ara levantar-se, mas recusando-o enquanto caminhávamos para o quarto. Eu a coloquei na cama, e quando ia saindo, ela me chamou:

-Coma alguma coisa. Está o dia todo de estômago vazio, e isso não é bom.

Apesar de  eu não sentir fome, prometi a ela que comeria uma maçã. Porém, fui para o meu quarto, onde caí na cama, deixando que as lágrimas caíssem até eu adormecer.





quinta-feira, 8 de setembro de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - PARTE V





Tia Maya chegou em uma manhã ensolarada de sábado, e Vó Duda abriu a porta para ela. Mamãe tinha saído para ir ao mercado, dizendo que precisaria resolver algumas coisas e que não poderia estar lá para recebe-la, mas que falaria com ela assim que chegasse. Papai permaneceu ao lado de Vó Duda, e eu e Flora ficamos logo atrás, com Dora, Tia Joana e Tio Nestor. Vó Duda e Tia Joana tinham preparado uma lauta mesa de café da manhã, sabendo que Tia Maya chegaria logo cedo. 

Quando eu e Flora ficamos sabendo que mamãe não estaria presente, lamentamos pela atitude covarde dela. Eu e minha irmã não víamos Tia Maya desde o velório do vovô, quando ainda éramos pequenas, e eu mal me lembrava do rosto dela, a não ser através de fotografias antigas que eu via na casa de Tia Joana. Eu estava de pé logo atrás de Tio Nestor, e vi quando Tia Maya entrou – seu rosto escurecido pela luz do sol que vinha lá de fora e que brilhava por trás dela. Ela e vovó se abraçaram por um longo tempo, e Tia Joana juntou-se a elas, e as três ficaram chorando juntas.  Quando elas finalmente entraram e fecharam a porta, e os cumprimentos cessaram, Tia Maya virou o rosto para nós, e quase engasguei: ela era a mulher mais linda que eu já tinha visto. Os anos fizeram-lhe muito bem, e se mamãe tinha sido mais bonita do que ela na juventude, isso tinha mudado. Dora não ficou surpresa, pois ela e seus pais a visitavam algumas vezes. Mas eu e Flora nos entreolhamos, tentando fechar nossas bocas abertas pela surpresa.

Tio Nestor pegou as malas de Tia Maya, levando-as para o quarto, enquanto ela abraçou a mim e a Flora ao mesmo tempo. Ficamos um pouco sem saber o que fazer, mas achando que seria mais educado, abraçamos Tia Maya de volta. Depois, foi a vez de Dora, que demonstrou muito mais entusiasmo. As duas logo começaram uma conversa descontraída, e Dora contou a ela sobre ter sido selecionada para o programa – bufei de indignação, pois tentar colocar o foco sobre ela mesma num momento daqueles, era muita pretensão e falta de sensibilidade. 

Depois, já sentados confortavelmente pelos sofás, poltronas e cadeiras da sala de estar, Vó Duda inteirou Tia Maya sobre sua doença. Houveram mais lágrimas. Então, a conversa foi passando sobre vários tópicos, desde a vida na Espanha, onde Tia Maya passara quatro anos, até amenidades cotidianas, como a política do país, a novela das oito, o cabelo de Vó Duda. Tudo aquilo em uma tentativa de evitar assuntos embaraçosos e ranços do passado. Papai passava o tempo todo olhando para todos os lugares, menos para Tia Maya, e ela fazia a mesma coisa. Tinham se cumprimentado com um aperto de mão bastante formal, destoante da maneira como Tia Maya cumprimentara os demais. Aquela verdadeira compulsão em não olharem um para o outro me preocupava; era como se eles estivessem se olhando o tempo todo, só que de outra forma. 

Quando todos esgotaram todos os assuntos que conseguiram trazer à tona, o silêncio sentou-se entre nós de forma incômoda. Mas graças a Deus, tínhamos cães, e eles entraram naquele momento constrangedor, indo cheirar Tia Maya, que encantou-se por eles, que se tornaram então o assunto. Estávamos ficando famintos – ninguém tinha tomado café da manhã – e já passava das dez e trinta. Vó Duda perguntou em voz baixa, quase falando consigo mesma, por onde mamãe andaria. Papai encolheu os ombros, dizendo que só sabia que ela tinha ido ao mercado e depois iria pagar umas contas. Tia Maya baixou os olhos, compreendendo que mamãe só estava tentando evita-la. 

Os olhos dele e de Tia Maya se encontraram, e ambos baixaram os olhos rapidamente, corando em seguida. Aquilo estava começando a ficar insuportável. A sala parecia abafada, apesar de todas as janelas estarem abertas, e eu sentia o suor escorrendo pelas minhas costas. Escutei a barriga de Flora roncando alto. O silêncio era tão grande, que acho que todos escutamos. Foi quando Tutti e Greco ergueram-se do chão, indo cheirar a porta de entrada, as caudas se agitando felizes. Ouvimos o motor do carro sendo desligado, e a porta bater. A tensão na sala de estar era grande. Sorríamos amarelo uns para os outros. Meu coração dava pulos tão altos, que parecia que eu teria que engoli-lo a qualquer momento, para que ele não saísse pela minha boca e fosse parar no tapete da sala. Finalmente, a maçaneta da porta girou e mamãe apareceu à porta. 

Estava deslumbrante! Tinha ido ao salão, e os cabelos receberam luzes e ondas. Vestia um belo vestido verde-musgo esvoaçante cuja saia rodada ia até os joelhos. A pala era discretamente bordada por linhas em vários tons de verde e creme. Calçava sapatos scarpin de saltos baixos, e tinha uma bolsa nova pendurada no braço direito. Na mão direita, uma caixa embrulhada para presente. Todos sentimos que ela estava usando um novo perfume, provavelmente, caro. Também usava algumas jóias antigas que normalmente ficavam guardadas em uma caixa, no cofre de seu quarto. 

Achei tudo aquilo patético. As pessoas se entreolhavam, sem saber o que dizer. Flora franziu as sobrancelhas, indignada – ela me disse mais tarde – pela ‘bandeira’ que nossa mãe tinha dado, demonstrando tanta insegurança de uma só vez. Vi a cabeça de Dora mover-se quase imperceptivelmente para um lado e para o outro. Vó Duda olhou mamãe dos pés a cabeça, mas nada disse.  Papai levantou-se do sofá como se tivesse molas nos pés, mas antes que ele a beijasse no rosto, mamãe disse:

-Querido, seja um anjo e por favor, pegue as compras que estão na mala do carro e leve para a cozinha.

Constrangido, papai saiu pela porta sem olhar para trás, e suspirando de alívio, Tio Nestor foi atrás dele, dizendo que ia ajudar a guardar tudo. Então, como em uma cena em câmera lenta, mamãe olhou para tia Maya, sentada no sofá, e foi caminhando devagar e resolutamente até ela, e parando bem na frente dela, estendeu-lhe a caixa embrulhada para presente. Eu nunca tinha visto mamãe agir de maneira tão afetada, e aquilo me assustou. Ela disse:

-Olá, Maya. Seja bem vinda à minha casa. Eu... estava fazendo compras, e achei que você gostaria de receber este presente.

Tia Maya ergueu-se do sofá, e ficou olhando para mamãe sem saber como agir. Mamãe sacudiu um pouco a caixa, e ela a pegou. As duas não se tocaram. Tia Maya abriu a caixa devagar, e todos nós temíamos por ela – ninguém sabia o que mamãe poderia ter colocado naquela caixa. Porém, tudo que havia lá dentro era um perfume. Um simples e inofensivo frasco de perfume caro e importado. Tia Maya agradeceu formalmente, e mamãe fez uma mesura quase imperceptível com a cabeça.
Eu, Dora e Flora respiramos fundo, soltando o ar devagar, aliviadas. Vó Duda bradou, do seu modo autoritário e incontestável:

-Agora vamos ao café da manhã!

O café até que foi agradável. Mamãe estava relaxada. Papai falou o menos possível, e o rumo da conversa foi conduzido habilmente por Tia Joana e Vó Duda. Logo seria natal (era final de novembro), e Tia Joana dizia a Tia Maya o quanto seria bom que as três fossem fazer compras de natal juntas novamente, após tantos anos. Mamãe não respondeu, mas tia Maya concordou. Dora comentou da sorte de estarmos no final do ano letivo; assim ela poderia participar do programa sem comprometer seus estudos. Tia Maya prometeu-lhe um lindo vestido para o dia do teste, e ela agradeceu, entusiasmada. Logo, todos estavam falando sobre o talento de Dora, o programa, sua nova música – a que ela escolhera para o teste – e o quanto ela era talentosa. Eu me senti estranhamente desconfortável.

 Ao ver o entusiasmo de Tia Maya por Dora, mamãe comentou, um tom de voz maldoso e ferino que me deixou chocada:

-Pena que você nunca teve filhos, Maya.

Tia Maya terminou de engolir um pedaço de brioche. Os olhos dela cruzaram a mesa, percorrendo a distância que a afastava de mamãe como se fossem raios , e tia Maya, com ar muito triste, respondeu – a voz, um fio de nylon fininho, quase arrebentando:

-Eu tenho um filho. 

Tia Joana, Dora e Nestor não pareciam surpresos, mas amedrontados pelo que estava por vir.
Mas todos nós outros ficamos surpresos, inclusive vó Duda, cuja xícara teve sua viagem interrompida no meio do caminho, entre o pires e a boca. Tia Joana corou, baixando os olhos, e Dora também. Tio 

Nestor olhou para o teto, como a dizer: “Lá vem chumbo grosso!” Papai, estarrecido, fitava ora mamãe, ora Tia Maya. Ela deixou que a surpresa de suas palavras passasse por todos nós como uma corrente elétrica, um fio de alta tensão desencapado. Mamãe ficou branca feito papel, e dava para ver, mesmo debaixo das camadas de pó e de base. Então, tia Maya completou:

-Eu tenho um menino. Ele... tem doze anos, e se chama Teo. 

Vó Duda ergue-se da mesa:

-Como?! Você é mãe? E escondeu isso de mim por doze anos? Como você pode fazer isso, Maya?

Papai estava tão chocado, que seus olhos fitavam o vazio. Mamãe deixou a boca aberta, e sua expressão parecia a de uma flor murchando. Tia Maya completou:

-Eu tenho um filho de doze anos, que se chama Teo... (e olhando para vovó): Nunca contei a senhora sobre ele porque não queria que ficasse chateada. Não contei a ninguém porque não quis causar mais problemas ainda, mais do que aqueles que já causei. Joana ficou sabendo durante uma visita surpresa à minha casa, em São Paulo. Ela estava com Nestor e Dora. Eu estava grávida. Implorei a ela que não contasse à senhora, ou a qualquer pessoa. Eu vivia longe, e as vidas de vocês poderiam continuar sem este aborrecimento. 

Vó Duda exclamou:

-Mas... é meu neto! Eu precisava saber, ele é parte desta família! 

Mamãe, desesperada, respondeu:

-Mamãe, ele não é seu neto. É filho de Maya, e Maya não é sua filha!

Vó Duda olhou para ela, dizendo:

-Bem, então este é o dia de revelar segredos. Porque eu ia contar a vocês hoje, que eu e seu pai adotamos Maya, dois anos depois que ela veio morar conosco.

Aquela foi a vez de Joana e mamãe exclamarem, quase juntas:

-Como? E por que não nos contou?

Vó Duda respirou fundo:

-Eu não queria complicar ainda mais a situação entre você e Maya, Agnes, pois sabia que você morria de ciúmes dela. Por isso, achamos melhor não dizermos nada. Mesmo porque um pedaço de papel não faria diferença no relacionamento entre vocês, Maya e Joana sempre se amaram como irmãs, e você... achamos que um dia você também aprenderia a amá-la. Quando contei para Maya – e isso foi no dia do velório de seu pai, meninas – ela me pediu para não contar a vocês. 

Eu estava tonta: então, se tia Maya era irmã de mamãe e de Tia Joana, ela tinha direito à herança de vovó – a casa onde vivíamos, e o armazém de papai, que estavam em seu nome. E se ela tinha um filho de doze anos, ele poderia ser filho de meu pai; e se ele fosse filho de meu pai, então eu tinha um irmão! E mamãe e tia Joana, uma irmã! 

De repente, no meio daquilo tudo, a constatação me veio, fria e pegajosa como fel e veneno congelados: Dora sabia sobre Teo o tempo todo! E não me dissera nada. Olhei para Flora, que estava chorando, e de repente, ela começou a dar gargalhadas histéricas. Todo mundo olhou para ela. Papai encheu um copo com água, colocando uma colher de açúcar, e levantando-se, tentou fazê-la beber. 

Minha irmã estava tendo um ataque histérico? Mamãe tentou acalmá-la, enquanto fuzilava Tia Maya com o olhar: “Olhe só como você destrói tudo em que toca!”  Tia Joana e Tio Nestor tentavam acalmar Vó Duda, e Dora, a cabeça apoiada em uma mão, olhava tudo com ar de espanto. Pude ler seus pensamentos: “O que aconteceu com esta família?” finalmente, minha irmã se acalmou, e puxando o ar com força, ela ergueu seu copo com água e disse:

-Saúde! Alguém mais aí tem um segredinho para contar?

Vó Duda, soltando-se das mãos de Joana com uma sacudida de ombro, socou a mesa, fazendo xícaras e talheres tremerem:

-Sente-se, Flora! E cale a boca! 

Foi como se ela tivesse pedido a todos nós que nos calássemos. Um silêncio sepulcral tomou conta da sala. Ninguém se entreolhava; todos desviávamos os olhos uns dos outros, olhando para a janela, para a toalha ou para o chão ou o teto. 

Virando-se para Maya, ela perguntou, a voz pausada e bastante fria:

-Onde está seu filho agora, Maya?

Tia Maya respondeu, sem olhar para vó Duda:

-Meu filho... Teo... ele só viveu até os três anos de idade. Quando eu disse que ele tinha doze anos, referi0me à idade que ele teria, se estivesse vivo. Eu sempre falo de Teo como se ele ainda existisse.

Dizendo aquilo, ela começou a soluçar alto. Até mamãe pareceu sentir pena dela. Tia Joana segurou sua mão, e vó Duda permaneceu alguns minutos de olhos fechados. O resto de nós, em silêncio, aguardou o desfecho daquela história. Confesso que a confusão que eu sentira ao saber que Teo pudesse ser meu irmão, já estava se transformando em um sentimento bem mais agradável, e ganhar e perder um irmão em menos de dez minutos não estava sendo nada fácil. Vó Duda perguntou, ainda de olhos fechados:

-Quem é o pai deste menino, Maya?

Aquela pergunta era desnecessária. Mamãe já sabia a resposta, pois olhou na direção de papai, que estava com os olhos cheios d’água. Eu e Flora compreendemos que o pai do falecido filho de Tia Maya tinha sido o nosso pai. Parecia que todo o resto também entendeu logo, mas ninguém disse nada. Tia Maya disse:

-Eu engravidei de Berto quando estive aqui. Fiquei sabendo dois meses depois que fui embora.

Vó Duda continuou:

-Como ele morreu?

Tia Maya fungou, e Tio Nestor entregou-lhe um lenço de papel. Ela assoou o nariz, e respondeu:

-Teo nasceu com uma deficiência cardíaca. Os médicos tentaram de tudo, mas desde cedo, disseram que ele não tinha muitas chances. Descobrimos sobre o problema durante a gravidez. Foi por isso, também, que eu não contei a ninguém. Por que fazer todo mundo sofrer?

Vó Duda levantou-se, caminhando até ela. Abraçou-a, aninhando a cabeça de Tia Maya em seu colo, embalando-a como se ela fosse uma criança:

-Nós fizemos tanto mal a você, Maya... tanto mal! Eu tentei fazer a coisa certa, mandando você estudar fora; errei. Depois, quando Agnes e Berto se casaram, mandei-a para longe novamente... um erro atrás do outro. Nunca permitimos que você fosse realmente parte desta família! E pensar que passou por tudo isso sozinha! A doença do seu bebê, sua morte... a gravidez...

Papai chorava, sem tentar esconder sua tristeza de ninguém – nem de mamãe. Eu nunca tinha visto papai chorar antes. Ele se sacudia todo, seu corpo enorme parecendo que ia desmoronar a qualquer momento. Tia Joana também chorava num canto da sala, abraçada ao Tio Nestor. O clima estava muito triste e pesado. Eu não sabia o que fazer, ou o que dizer, e achei melhor ir lá para fora tomar um pouco de ar. Perguntei a Flora se ela queria ir comigo, mas ela negou com a cabeça. Eu comecei a andar em direção à porta, quando Dora resolveu me acompanhar.



(CONTINUA...)







segunda-feira, 5 de setembro de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - PARTE IV









FEITIÇOS DE AMOR – PARTE IV


Papai entrou na sala, e olhando em volta, logo sentiu o clima de tensão. Mamãe olhou-o nos olhos e estendeu a mão. Ele caminhou até ela silenciosamente, segurando a mão estendida, e apertando-a afetuosamente. Sentou-se no braço da poltrona ao lado dela, e os dois trocaram um olhar de cumplicidade. Ele sabia do que estávamos falando, e sua voz grave ressoou pela sala:

-Acabo de vir da casa de Nestor e Joana. Eles me disseram o que aconteceu. Vocês duas tem razão, já é hora de saberem de toda essa história. Vó Duda também tem razão. Quem sabe, após este relato, não nos sentiremos mais próximos? (dissera aquela última frase olhando para mamãe).

 Ela pareceu confortada e fortalecida pela presença dele, e começou aquele relato sobre as coisas que deixara enterradas no passado, e sobre os medos que elas sempre causaram. Notávamos o quanto era difícil para ela falar sobre aquilo – é sempre difícil admitir culpas e despertar velhos fantasmas. 
Assim, ninguém a interrompeu. 

-Eu me apaixonei por seu pai assim que vi Maya entrando com ele, de mãos dadas. Eu não pude evitar. Quis negar para mim mesma. Entendam, não foi uma coisa que eu escolhi! Era uma tarde de domingo, e todos a aguardávamos. Mamãe tinha preparado um lanche maravilhoso para todos, e a chegada de Maya para nos apresentar aquele que ela dissera ser o homem de sua vida, com quem desejava casar-se, era ansiosamente aguardada. Eu pretendia me redimir de minhas culpas e erros com ela, e aceita-la, finalmente, como minha irmã. 

Papai acariciou a nuca de mamãe, encorajando-a.

-Ele nem notou minha presença... cumprimentou-me, como um cunhado ao ser apresentado à irmã de sua namorada. Não notei nada de diferente em seu olhar. Mas ao tocar sua mão, senti um arrepio de eletricidade, que percorreu todo o meu corpo. Adorei suas mãos enormes, apreciei sua altura, o porte do seu corpo, o tom grave da voz. Seu pai sempre foi um homem muito bonito, meninas. A tarde ocorreu como previsto: nós nos sentamos e conversamos, e eu tentei agir naturalmente. Mas passei a ver Maya como uma rival que eu teria que derrotar. Tentei me conter, mas desde aquele instante, eu sabia que teria que ter Berto para mim, que estava tudo errado: ele era para ser meu, e não dela. 

Mamãe olhou papai nos olhos, e continuou:
-Conforme os dias passavam, mais aquela certeza me dominava. Eu fazia de tudo para ficar à sós com ele, e conversávamos muito; mas ele só me dedicava a atenção de um irmão. Aquilo me deixava exasperada! Papai um dia entrou na sala sem que nós víssemos, enquanto Maya ajudava mamãe na cozinha e eu tinha ficado à sós com Berto. Não sei durante quanto tempo ele nos observou, mas naquela noite, quando todos dormiam, mamãe entrou em meu quarto e me disse que papai tinha presenciado uma cena da qual não gostara: eu tentava seduzir Berto. Perguntou-me se era verdade, e eu neguei veementemente. Ela foi dormir, mas passou a observar-me cuidadosamente a partir daquela conversa. E chegou às suas próprias conclusões, baseada no óbvio. Ela me repreendeu, dizendo que eu não tinha o direito de estragar mais uma vez, a felicidade de Maya, e que aquilo não passava de uma disputa infantil. Mas eu admiti tudo, confessei que estava apaixonada por Berto e que não ia desistir dele por nada. E que ela não tinha o direito de me condenar por tentar. É claro, Maya não ficou sabendo daquela conversa! 

Mamãe respirou fundo, e continuou seu relato, olhando para o chão. 

-E então, um dia, Maya percebeu minha tentativa. Tínhamos vindo de uma festa de aniversário na casa de amigos, e eu bebi um pouco. Estava... um pouco alegre, e também meio-tonta. Ela e Berto  me ajudaram a chegar em casa. Quando estávamos na sala, eu apoiada por eles, virei a cabeça e beijei Berto na boca. Na frente de Maya. Ele riu, tentando deixar tudo menos complicado, e repetia sempre que eu estava bêbada. Mas eu não estava: tinha apenas bebido um pouquinho, e sabia muito bem o que estava fazendo. Achava que se o beijasse, ele perceberia que era a mim que ele realmente queria. Maya exasperou-se, e começou a me acusar de deslealdade. Nós acabamos brigando feio, e papai e mamãe acordaram, e vieram separar a briga. Berto foi embora a pedido de papai.

Depois daquilo, Berto mantinha distância de mim, a pedido de Maya, e nosso relacionamento voltou a ser ruim; aliás, pior do que era, pois dessa vez, a raiva não era unilateral. 

Ela fez silêncio. Vimos que mamãe estava muito embaraçada, e era como se algo estivesse entalado 
em sua garganta. 

-Daí eles marcaram o casamento, e eu me desesperei...

Papai interrompeu-a:

-Naquela noite, quando Agnes me beijou, eu senti uma coisa forte, diferente do que eu sentia por Maya. Mas é claro que eu não queria admitir. Já vinha sentindo antes. Sua mãe não acredita, mas quando eu olhei para ela pela primeira vez, também achei que poderia apaixonar-me por ela, e fiquei confuso. Mas por razões óbvias, eu tentei negar a mim mesmo. Devia respeito à Maya e à sua família. Soquei meu sentimento tão profundamente, que realmente acreditei ainda estar apaixonado por Maya, e depois do beijo, achei melhor marcar logo o casamento. E não foi por causa de Maya que mantive distância de Agnes desde aquela noite, ela nunca me pediu isso, embora sua mãe também não acredite; foi por causa de mim mesmo, por medo dos meus sentimentos. Não queria ferir Maya, pois realmente gostava muito dela, mas apaixonei-me por sua mãe, e ela me obrigou a admitir isso. Desfiz o noivado com Maya, e casei-me meses depois com sua mãe. Então, vó Duda achou melhor nos afastarmos de novo, e vendeu sua casa, comprando esta onde moramos, e também a lojinha da família no centro. Maya estava muito magoada, e vó Duda mandou-a em uma viagem pela Europa com o pai, ficando aqui para resolver toda a documentação da venda da casa e da nossa mudança para cá. Logo depois da viagem, ele juntou-se a nós, mas meses mais tarde, veio a falecer. 

Perguntei:

-E isso é tudo, papai? O que aconteceu com Tia Maya?

Mamãe respondeu:

-Ela casou-se com um espanhol, e passou a morar na Espanha, mas quatro anos depois, divorciaram-se. Eu e seu pai nos casáramos, e já tínhamos você, Eleanor, e Flora, pequenininhas. Maya veio visitar-nos aqui em Rio Verde, e garantiu que as coisas do passado deveriam ficar para trás. Eu a recebi com carinho, e acreditei no que ela dizia. Porém... crianças, é muito difícil para mim conversar sobre essas coisas com vocês...

Papai tomou-lhe a fala:

-O que sua mãe quer dizer, é que eu e sua tia Maya acabamos tendo um caso. Durou dois meses, o tempo que ela passou aqui em Rio Verde. 

Uma forte tensão tomou conta da atmosfera na sala. Eu e Flora nos entreolhamos, mal acreditando no que acabáramos de ouvir. Tutti e Greco ergueram as cabeças, e começaram a abanar suas caudas, olhando para um canto escuro da sala. Eu olhei naquela direção e deparei com vó Duda de pé, apoiada em um canto da parede. Ela acendeu a luz. 

Vó Duda entrou na sala, ainda de roupão. Estava um pouco pálida, não parecia nada bem, e todos olhamos para ela. Mamãe tentou ajudá-la a sentar-se, mas ela negou com um aceno de mão e  ajeitou-se na poltrona oposta a dos meus pais, dizendo:

-Mas existe uma parte neste segredo que nem você conhece, Berto, e deveria conhecer. Eu venho guardado este segredo há muito tempo, achando que talvez seja melhor para todos. Mas isto tem mantido Maya afastada do restante da família, como se ela devesse ser ignorada por todos. Nem todo o mal que ocorreu nesta família foi por culpa dela. 

Vó Duda olhou para mamãe, sustentando um olhar implacável, obrigando-a a dizer o que disse em seguida. Ela sabia que a hora da verdade tinha chegado, e que era inútil continuar tentando escondê-la. Ela segurou a mão de papai com força, dizendo: 

-Berto, não sei se vai me perdoar depois do que tenho a dizer-lhe... 

E olhando para nós:

-Meninas... durante todo este tempo em que vivemos nesta casa, eu me aperfeiçoei na arte das ervas. Passei a estudar as forças da terra e da natureza, e isso me deu conhecimento para ajudar as pessoas. É uma forma de me redimir do que eu fiz... da coisa medonha que eu fiz. 

Eu mal respirava, e meu coração batia descompassado. Olhei para Flora, e vi que ela estava da mesma forma que eu, e esticando o braço, pus minha mão sobre a dela, que estava fria. Mamãe reprimiu um soluço, e escondeu o rosto nas mãos antes de continuar. Depois, recompôs-se e respirando fundo, continuou sua história:

-Naquela época, eu encomendei um feitiço. Procurei uma mulher que se dizia feiticeira, e pedi-lhe que fizesse um feitiço de amor sobre Berto para que ele viesse a me amar e esquecesse Maya. 

Papai olhou-a, apavorado. É claro que ele não conhecia aquela parte da história! 

-O que? Como assim... você fez um feitiço para me prender?

Mamãe concordou com a cabeça, sem olhar para ele. Papai levantou-se, indo até a janela e escancarando-a, colocou a cabeça para fora e tomou uma grande lufada de ar fresco. Vovó ergue-se da poltrona. Notei o quanto ela tinha envelhecido naqueles poucos dias. Tinha emagrecido, e já não trazia mais o imponente coque na nuca, mas tinha os cabelos cortados bem curtos, rentes ao couro cabeludo. Caminhou até mamãe, e inclinando o corpo, deu-lhe tapinhas na mão, consolando-a. 

-Você fez bem, filha querida. Agora, está livre. Mas por favor, chame Maya até aqui, pois temo que se você demorar muito, será tarde demais. 

Depois, ela foi caminhando devagar de volta para o quarto, e os cães pularam do sofá e a seguiram. 
Papai parecia estar em transe, parado à janela olhando os últimos resquícios de luz daquele dia difícil. Pensativo. Talvez estivesse tentando tomar alguma decisão, e eu tive muito medo sobre qual ela seria. 
Em desespero, eu me ergui do sofá, e passei a rir daquilo tudo, chamando-os de volta à realidade:

-Mas gente, todo mundo sabe que essa bobagem não funciona, não é de verdade. Não é, pai? Não é mãe? Essa coisa de feitiço de amor... tudo bobagem! Estão juntos porque se amam, e vão continuar juntos, certo? Chamei Flora com um aceno de mão, e ela juntou-se a mim, hesitante. Eu sabia que mais do que ninguém, Flora acreditava nos feitiços e poções de mamãe; tanto, que ela mesma estava tentando aprendê-los. De mãos dadas com ela, eu continuei meu pequeno discurso:

-Gente... olha só, nós somos uma família feliz! Vó Duda adoeceu, é verdade, mas ainda temos muita coisa para viver juntos! Mãe, chama logo a Tia Maya, e ela virá, falará com vó Duda, todos poderemos fazer as pazes e perdoar uns aos outros. E então, tudo vai voltar a ser como antes! Olha, mãe, ninguém aqui está condenando a senhora... a senhora agiu num momento de desespero, feitiços não funcionam, a senhora os faz para confortar as almas das pessoas que vem aqui, desesperadas como a senhora. Dá a elas um pouco de fé nelas mesmas, e com essa fé, elas agem e resolvem os próprios problemas. 

Mamãe me olhou, desanimada:

-Eleanor, querida, feitiços funcionam. Nunca duvide da força do pensamento, do poder das energias que agem (ela fez um gesto com as mãos, apontando para o ar e girado os punhos) em volta de nós. É possível alterar a realidade, mas para tudo há um preço a se pagar. E eu estou no momento do resgate. Não devo lamentar mais, e sim, aceitar as consequências dos meus atos. (E virando-se para Flora) Aprenda, Flora, a não cometer os mesmos erros que eu cometi. Jamais aceite fazer coisas assim. Siga um caminho limpo, e as boas energias sempre a acompanharão. 

Eu estava farta daquela conversa. Meu pai estava de costas para nós, ainda à janela. Flora não dizia nada, parecia uma boneca de pano apática, e mamãe ficava repetindo aquelas coisas sobre energias e feitiços e poções. Achei que eu estava na cena de algum filme de mistério, ou de terror! Precisava sair dali, espairecer. Precisava de um pouco de tempo sozinha para digerir aquilo tudo. Virei-me de costas, caminhei até a porta e saí, fechando-a com um estrondo. 

Comecei a caminhar. A noite estava fresca e perfumada pela floração das Damas da Noite plantadas há muito tempo por vó Duda, e o céu já se cobria de milhões de estrelas. Lembrei-me de uma crônica que eu adorava ler, em um dos livros de mamãe; uma crônica de Richard Bach chamada “O Sempre Céu.” Nela, ele dizia que não importa o que aconteça aqui em baixo, o céu continua, sempre o mesmo, imbatível, inatingível. E que isso dava muita paz, se pensássemos bem. Respirei fundo, passando as mãos pelos cabelos e sacudindo-as longe do corpo, como mamãe nos ensinara ao nos sentirmos ‘pesadas.’  Ganhei a rua, passando pelo nosso portãozinho branco de madeira. Já tinha caminhado uns cinco minutos, quando ouvi passos atrás de mim. Era Dora. Ela não disse nada: apenas me alcançou, e segurou minha mão. Continuamos caminhando assim durante uns bons dez minutos, e finalmente, senti a garganta doer e derramei todas as lágrimas que estava tentando segurar. Ela me abraçou. Senti o conforto do seu corpo um pouco roliço me aconchegando.

-Foi difícil, hein?

Concordei com a cabeça. Achei que ela tinha o direito de saber, tanto quanto todos nós:

-É... sabe o que aconteceu, Dora? Mamãe fez um feitiço de amor para separara papai e tia Maya, há muitos anos...

Ela riu, incrédula:

-Sabe que não acredito muito nessas coisas.

-Ou você acredita ou não acredita. Não dá para acreditar mais ou menos.

-Bem, você sempre me disse que não acreditava... ou acredita?

-Nem sei mais. Mas, pela reação de papai, acho que ele acredita. Ficou lá, parado. Não disse nada, mas notei que ele estava confuso e zangado. 

-E agora?

Encolhi os ombros:

-Não sei. Sinceramente, não sei... parece que está tudo desmoronando ultimamente, Dora. A doença de vó Duda, essa história macabra de família. Só notícias ruins!

-É a vida. Mas nem tudo é ruim, sabe.

Olhei para ela, e vi que ela tentava reprimir um sorriso de alegria. Pensei: alegria, a essa hora? 

Mesmo assim, encorajei-a:

-O que você quer dizer? Está tentando me contar alguma coisa?

Ela concordou com a cabeça, e dando um risinho, disse:

-Depois que vocês saíram, recebi uma mensagem. Desculpa se não te contei antes, mas é que eu não queria contar pras pessoas e depois ter que passar um vexame quando elas me perguntassem, e eu tivesse que dizer que não consegui.

-O que você conseguiu? Fala logo!

Ela abriu os braços, e me agarrou. Surpresa, deixei-me ser agarrada por ela, e quando ela me soltou, quase gritou:

-Fui selecionada para cantar no Crystal Voices! 

Eu sabia que o Crystal Voices era um famoso programa de calouros, que só selecionava os melhores. Dora já tinha me falado sobre mandar um vídeo para eles antes, mas eu não levei fé, embora a tivesse incentivado. Dora continuou:

-Mandei o vídeo no mês retrasado. Já tinha até esquecido, mas no mês passado eles me ligaram e...

-Espere um momento: mês passado? E mês retrasado? E você não me contou nada?

Eu me senti ferida e excluída, fiz cara feia e fiz questão de ser uma verdadeira estraga prazeres e demonstrar. Dora tentou consertar a situação:

-É que eu não tinha certeza se seria selecionada, como você já sabe. São mais de cem mil candidatos! Como eu poderia saber?

-Mas você mandou o vídeo há três meses, e agora me disse que há um mês eles telefonaram, e... a mensagem, você a recebeu hoje à tarde. O que ela diz?

-Bem, ela diz que eu vou fazer um teste ao vivo!

Eu realmente tentei ficar feliz por ela, mas me sentia amarga e traída. Fechei a cara, e disse a pior coisa que eu poderia ter dito:

-Muito bem! Pelo menos, alguém aqui está feliz!

A mágoa que apareceu no rosto de Dora trouxe lágrimas aos seus olhos, e ela me disse, a voz embargada:

-Pensei que ficaria feliz por mim.

Percebei a idiotice que eu tinha feito, e abracei-a, dizendo sem muito entusiasmo, mas tentando dar alguma ênfase ao que dizia:

-Eu estou, Dora, eu estou! Me desculpe.. é que hoje foi um dia muito difícil. Parabéns! 

Enquanto eu dizia aquelas palavras, tinha certeza absoluta de que não havia motivos para que eu me alarmasse; afinal, ela seria desclassificada durante o teste ao vivo mesmo! Não pude deixar de pensar daquela forma mesquinha, mas disfarcei. Dentro de mim, eu dizia a mim mesma que estava com medo de perder minha prima e amiga. Tentava negar a minha inveja. Dora me afastou:

-Eu conheço você, e sei que não está feliz por mim, Eleanor. Mas eu vou te perdoar, pois sei que você está passando por momentos difíceis. Amanhã nos falamos.

E ela voltou pelo caminho que tínhamos feito, me deixando plantada no meio da rua escura e quase deserta. A noite já estava bastante escura, e eu fiquei ali, olhando-a afastar-se de mim cada vez mais, a blusa branca mergulhando na escuridão até desaparecer na curva do caminho. Ainda fiquei por ali durante algum tempo, mas logo comecei a sentir frio.

Enquanto eu mesma também voltava para casa, ia pensando no quanto Dora tinha sido egoísta, contando-me sobre a felicidade dela em um dos piores momentos da minha vida. Ela não tinha o direito de esfregar toda aquela alegria na minha cara! No dia seguinte, na escola, eu tentaria ignorá-la. Daria um gelo nela, até que me pedisse desculpas. Naquele momento, fiz a única coisa que podia ter feito: voltei para casa. Mas quando cheguei à porta, senti um clima tão pesado que ao invés de entrar, dei a volta na casa e fui para o estúdio onde meu pai pintava seus quadros. Enquanto me aproximava, vi a luz acesa sob a greta da porta e soube que ele estava lá. Dei meia-volta, não querendo atrapalhar, pois entendi que se ele estava ali, era porque desejava ficar sozinho. Mas antes de me afastar, a curiosidade fez com que eu me aproximasse e espiasse pela janelinha. Para meu azar, fiz aquilo no exato momento em que papai, sentado em uma poltrona, olhava naquela direção. Ele viu meu rosto, e sobressaltou-se. Escondi a cara depressa, e comecei a voltar pelo caminho de seixos, mas ele abriu a porta do estúdio:

-Eleanor! Volte, querida.

Fechei os olhos por um instante. Me sentia constrangida por ter sido pega espiando. Me virei e comecei a andar em direção a ele.

-Desculpe, pai, eu... não sabia que você estava aqui. eu fiquei preocupada e quis saber se você estava bem.

-Estou bem, querida. Quer entrar?

Ele abriu passagem para mim. Me surpreendi ao ver que Flora estava enroscada na outra poltrona, adormecida. Eu me sentei num almofadão velho, que ficava no canto da parede. Papai retomou seu lugar na poltrona. Eu fiquei quieta, brincando com meus anéis, colocando-os e retirando-os dos dedos. Papai estava bebendo um pouco de gim. O silêncio foi quebrado por um ronco de Flora, que nos fez rir. Perguntei:

-E agora?

Ele encolheu os ombros.

-E agora o quê?

-Você e mamãe.

Papai coçou a testa:

-Acho que eu e ela precisamos conversar, só isso. Mas vou deixar que a noite coloque tudo no lugar. Conversar de cabeça quente não é bom, Eleanor.

Concordei com a cabeça.

-Você acredita em feitiços de amor, pai?

-A ideia não é exatamente se eu acredito ou deixo de acreditar, filha. O problema, é que sua mãe acredita. Para ela, tomar alguém de outra pessoa através de um feitiço é possível. Isso faz com que a intenção dela não tenha sido boa naquela época. Ela manipulou os sentimentos de duas pessoas para conseguir algo que queria, e isto não está certo. Vai contra tudo em que eu acredito, e em tudo que eu gostaria que minhas duas filhas acreditassem. E você sabe que Flora, mais do que ninguém, acredita nessas coisas. Não quero que ela cresça achando que tem o direito de interferir nas vidas de outras pessoas. 

Tive que concordar com ele mais uma vez. Aquilo não estava certo. Mas insisti em saber se ele acreditava em feitiços de amor.

-Bem, como sua mãe disse, existem campos energéticos entre as pessoas, e nisto eu acredito. Acho que uma força de vontade muito grande, pode realmente interferir nos pensamentos e atitudes alheias. Alguém com uma vontade forte, pensamento concentrado e as palavras certas (ou erradas) pode fazer muita coisa boa e muita coisa ruim. 

-Acho que sim. Mas se ela o fez, foi porque ama você, pai.

Ele ficou muito sério:

-Amar não nos dá o direito de fazer lavagens cerebrais nas pessoas. Lembre-se sempre disso.
Mais uma vez, concordei com a cabeça. Levantei-me para ir dormir. Antes de sair, olhei para ele:

-Você não vem dormir, pai?

-Ele ficou meio sem jeito:

-Na verdade, acho que vou passar a noite aqui no estúdio mesmo. Preciso terminar um trabalho, uma encomenda para a galeria. 

Olhei em volta, e não vi nenhum quadro que eu soubesse ser uma encomenda para a galeria da cidade, mas fingi acreditar nele. Desejei-lhe boa noite, e fui para casa. Entrei; a sala estava vazia, e a casa, silenciosa. Ainda não era muito tarde – não passava das nove da noite. Antes de ir para o meu quarto, passei na cozinha, fiz um sanduíche, peguei um pouco de suco na geladeira e me sentei à mesa para comer. Levei um susto ao escutar a voz de vó Duda atrás de mim:

-Você perdeu o jantar hoje.

-Fui dar uma volta, vó. Precisa de alguma coisa?

-Se eu precisar, ainda posso pegar eu mesma. Não estou morrendo ainda.

Ri diante da costumeira dureza de Vó Duda. Sinal de que ela estava se sentindo bem. Ela deu a volta no cômodo e arrastou uma cadeira, sentando-se na minha frente.

-Sua mãe telefonou para Maya. Ela chega no final de semana. Tive que praticamente obriga-la, mas finalmente, ela me escutou. 

-Deve estar envergonhada pelo que fez com ela.

Ela ergueu um pouco a voz, mas sem deixar de murmurar, sacudindo o polegar na frente do rosto:

-Não julgue sua mãe, sua moleca. 

Não me atrevi a responder. Baixei os olhos e mordi meu sanduíche. Vó Duda riu:

-Eu sei que pode soar estranho, mas você fez uma cara engraçada agora... ainda meto medo em você?
Quase engasguei com o sanduíche:

-Medo? Nunca tive medo de você, só respeito, vó.

Ela concordou com a cabeça.

-Acho que eu fui muito dura com você e sua irmã. Tive medo de que vocês tivessem as mesmas deficiências na educação que eu cometi com a mãe de vocês. Quis que crescessem sendo mais amigas, mais responsáveis, e menos mimadas. Mimei Agnes demais... acho que eu queria compensar, de alguma forma, por ter dividido minha atenção entre Joana, ela e Maya, que caiu de paraquedas na nossa família. Também não quis fazer com que Maya se sentisse excluída, e por isso, quando as duas se desentendiam, eu ficava sempre do lado dela. Isso deixou Agnes ressentida. Queria chamar minha atenção e a tenção do pai, e por isso, competia com Maya. 

Achei estranho que minha avó estivesse discutindo sua relação com a filha logo comigo, sua neta de quinze anos. Mas deixei-a falar.

-Fiz o melhor que pude. Tanto com elas quanto com você e sua irmã. Mas nunca faltou amor para nenhuma de vocês, ouviu? Não precisa ter medo de mim, Eleanor.

Eu não sabia o que fazer com aquela inesperada declaração de amor, que me comoveu, e decidi ignorá-la. Tinha medo que meus nervos em frangalhos me fizessem chorar.

-Não tenho, vó. Só estou cansada, e a senhora me deu um susto, chegando assim de repente por trás de mim. Quer um chá? Acho que vou tomar um pouco.

Ela assentiu, e comecei a colocar a água para esquentar enquanto preparava as xícaras. Escutamos a porta de entrada, e o passo arrastado de Flora em direção ao quarto. Nos entreolhamos, como se perguntássemos se deveríamos chama-la para juntar-se a nós, e decidimos que não. Teríamos que acordar cedo na manhã seguinte para irmos à escola. Mudei de assunto:

-A Dora me disse que foi selecionada para o Crystal Voice, e vai fazer o teste ao vivo. 

Vó Duda sempre assistia ao programa, e vi seus olhos se arregalarem:

-Mas que ótima notícia! Ela deve estar muito feliz, e Joana e Nestor também. Esteve com eles hoje?

-Estive, mas só soube do programa agora à noite, quando encontrei com Dora no caminho de casa. 

Achei estranho eles não terem contado nada para a gente.

-Hum... você quer dizer que achou estranho que Dora não tivesse contado nada a você?

Ela me olhou com seus olhinhos perscrutadores. Nada passava em branco pela mente astuta de Vó 
Duda, e era o que eu mais gostava nela: a capacidade de escutar aquilo que não gostaríamos de dizer, e que não dizíamos. Aquilo tornava nossas vidas mais fáceis. Ou mais difíceis, às vezes.

-Na verdade, fiquei chateada, vó. 

-Chateada... ou enciumada?

Aquela pergunta – que era mais uma afirmação -  foi como um soco desferido de repente, que eu não esperava. Mal pude conter a vermelhidão do meu rosto, e evitando olhar para ela, comecei a servir o chá. 

-Eleanor, sei que você e Dora são melhores amigas, além de primas, ficar feliz pela felicidade de uma migo, é a maior prova de amizade.

-É, vó... mas contar aos amigos sobre o que acontece com você também é. Sinal de confiança, sabe.

-Não me venha com ironias, menina! Você sabe muito bem que está com ciúmes. Ou com inveja. Quem sabe.

Ela disse aquilo como se estivesse falando com ela mesma. Arregalei os olhos, e quase me engasguei com o chá. 

-Eu? Com inveja de Dora?

Ela continuou, sem tirar os olhos de mim.

-É sim, minha cara neta. Ela sempre esteve por aqui, disponível para brincar com você quando eram pequenas e você sentia vontade, ou para ajudá-la com seu dever de casa quando você tinha uma coisa melhor para fazer - pensa que eu nunca percebi? -, ou então para fazer coisas para você, e agora, essa coisa maravilhosa acontece com ela, o que pode significar que daqui por diante, ela terá sua própria vida para cuidar, e não será mais a sua babá. Estou certa?

Vó Duda era assim: rascantemente sincera. Só consegui ficar calada, as lágrimas quentes descendo sobre meu rosto vermelho de vergonha e indignação por não conseguir esconder aquela verdade dela, e agora, de mim mesma. Ela sorveu seu chá com um prazer mórbido, as goladas barulhentas descendo por sua garganta. Depois, estendeu a mão, dando com sua mão quente alguns tapinhas em minha mão que descansava sobre a mesa, branca e gelada:

-Você está crescendo, Eleanor. E crescer dói. O tempo dirá se você é realmente uma boa amiga ou não. Mas infelizmente, não estarei aqui para ver. Espero que você consiga respirar fundo e ficar ao lado de sua amiga enquanto ela faz sucesso. Esta não é uma prova fácil, porém. 

Eu nunca tinha visto as coisas por aquele lado. Depois que ela saiu, fiquei sentada à mesa durante algum tempo, pensando nas palavras de Vó Duda e no quanto ela tinha razão: é muito fácil ser amigo quando o outro precisa e está mais fraco do que nós, mas é difícil suportar o sucesso de alguém com quem nos acostumamos a dividir a vida, achando-nos sempre em melhor posição. Concluí que na verdade, eu às vezes até desprezara Dora: a amiga gordinha, sempre disponível e não muito bonita, que Deus compensara com o dom da música, enquanto eu era a mais bonita, a mais inteligente e a mais esperta. E agora, qual seria a posição dela em relação a mim? Se Dora ficasse mesmo famosa, será que ainda poderíamos ser amigas?

Eu tinha medo da resposta, não por ela, mas por mim.


(CONTINUA...)



A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...