terça-feira, 19 de agosto de 2014

Minhas Tias - Parte II


Minhas Tias - Parte II

Meu pai era um homem bonito. Durante muito tempo eu não percebi este fato, pois para mim, ele era apenas meu pai. Também achava estranho quando escutava as professoras ou as mães de minhas amigas chamando-o por seu nome: "Rodrigo." Para mim, ele era apenas pai. E sendo apenas pai, era tudo o que eu mais amava, a presença concreta em minha vida. Sarah, minha mãe, era algo etéreo e ocasional, mágico e inalcançável como uma viagem até uma nuvem. Meu pai era o chão sólido e firme, o braço que amparava, a palavra forte e certa.

Minha mãe era a fragilidade, a excessiva sensibilidade. Vivia pisando em ovos para não feri-la ou melindrá-la, o que fazia com que ela se trancasse no quarto por dias a fio. Tinha que contar palavras perto dela. Assim, preferia admirá-la em silêncio e apenas responder ao que ela raramente me perguntava.

Jamais fiz-lhe qualquer pergunta sobre minhas tias, tanto por ordens expressas de meu pai quanto por um medo enorme de fazer com que ela se desintegrasse diante de meus olhos. 

Comecei a estudar balé clássico a pedido dela; ou melhor, nem foi um pedido formal, apenas uma menção dos tempos em que ela era jovem e dançava balé. Como ela raramente falasse de seu passado, achei que estudar balé me aproximaria mais dela. Eu não tinha o menor talento, e Mme. Margarida apenas aturava minha presença nas aulas porque tinha uma queda por meu pai - aliás, como quase toda mulher que eu conhecia.

Reparava que, nas raras vezes em que ele ia buscar-me na escola ou participar de alguma reunião de pais, as mães de minhas amigas ficavam falando sobre ele, e muitas não conseguiam tirar os olhos dele. Mme. Margarida, sempre carrancuda, sorria docemente, e seu semblante transformava-se na frente de meu pai. As minhas colegas de classe diziam que meu pai era "Um gato." 

Nana, minha eterna babá - que após eu crescer assumiu outras funções na casa e continuou sempre conosco - também parecia não ser imune aos encantos de meu pai, mas conseguia manter a linha, pois tinha grande respeito por todos nós. Mas era impossível não perceber, durante todos aqueles anos, que ela o amava platonicamente. E se havia alguma dúvida em alguém àquele respeito, ela foi completamente sanada durante o funeral de meu pai, muitos anos mais tarde.

Eu tinha apenas onze anos de idade quando comecei a perceber a masculinidade de meu pai, e a maneira como ele afetava as mulheres. Mas eu sabia que ele era completamente fiel à minha mãe, embora eu não conseguisse compreender como ele podia, já que ela nunca saía de casa e passava a maior parte do tempo trancada consigo mesma. Um homem bonito daquele, com boa situação financeira, indo sozinho a todos os lugares o tempo todo... certa vez eu quebrei a regra de jamais fazer perguntas à minha mãe e mencionei o quanto meu pai era admirado, e perguntei se ela não sentia ciúmes. Ela me olhou de uma maneira estranha e zangada, o que me fez arrepender-me imediatamente; mas ao invés de ralhar comigo, ela simplesmente soltou a rosa que estava em sua mão, deixando que esta caísse no chão, e me olhando de forma mais branda, rosto pálido e olhos magoados, ela disse:

-Prefiro não pensar em certas coisas que podem magoar e fazer sofrer, Alana. Se eu fosse você, faria  a mesma coisa.

Dizendo aquilo, ela dirigiu-se para o quarto, passando por cima da rosa, e trancou-se por mais de duas semanas. Ninguém pode imaginar o sentimento de culpa que eu carreguei por toda a minha adolescência por causa daquilo! Jamais mencionei o fato a ninguém, e creio, ela também não. 

Minhas tias ocupavam a minha imaginação e os meus sonhos. Eu muitas vezes sonhava que estava em uma espécie de vila, uma ladeira na qual havia casas enfileiradas, e cada uma delas pertencia a uma de minhas tias. A última, no alto, era de minha mãe. Eu passava pelas casas, parando para bater a cada porta, e elas abriam-nas para mim. Nada diziam, porém. Todas elas tinham vestidos leves e vaporosos como os das fadas, e me olhavam com muita ternura. O sonho repetia-se quase todas as noites. As imagens que eu via neles, eram as mesmas das fotografias, e a única diferença, é que elas se moviam. Às vezes meu pai aparecia nos meus sonhos. Eu olhava por cima dos ombros de minhas tias e conseguia vislumbrá-lo brevemente, sentado à mesa das casas. Mas sempre que eu chegava à casa de minha mãe, ele estava lá. Eu ficava intrigada com aqueles sonhos. Certa vez, contei-os à Nana, que ouviu com atenção e concluiu:

- Não dê tanta importância ao que vê em sonhos,pois sonhos são só o que são: sonhos.

Algo em seu tom de voz me fez duvidar que ela realmente acreditava naquilo que acabara de dizer. Atrevi-me:

-Nana, você conheceu minhas tias?

Ela ficou visivelmente embaraçada.

-Ora, por que a pergunta? Já não chega ficar aborrecendo seu pai com estas bobagens, Alana?
-Eu só queria saber... conheceu-as ou não?

Ela empertigou-se, ralhando comigo:

-Olhe aqui, mocinha, você sabe que este assunto não deve ser comentado dentro desta casa!
-Mas eu só queria saber se você já as viu, se esteve com elas, se ouviu as suas vozes... elas são bonitas como nas fotos, Nana? 

Ela olhou para as unhas das mãos, acho que apenas para não ter que olhar para mim:, e sua voz saiu muito melancólica

-Sim, elas são todas muito belas... 
-Por que se afastaram? Por que elas nunca nos visitam?
-Bem, esta é uma história que um dia, se seus pais assim o desejarem, eles próprios contarão para você. Não estou autorizada a falar sobre isso, e se alguém souber que estamos tendo esta conversa, serei mandada para longe desta casa para sempre! É isso que você deseja?

Abracei-a depressa. Não ter mais Nana seria insuportável para mim, pois ela substituía minha mãe em tudo naquela casa. Ela era quem tratava das coisas da escola e tomava-me as lições, cuidava da casa, das compras, supervisionava as faxineiras, Levava-me à escola e ao balé no carro a ela presenteado por meu pai.
Nunca mais tentei saber de nada através dela, pois percebi o quanto ela ficou constrangida e amedrontada.

Assim, eu vivia meus dias naquela casa sempre silenciosa e cheia de segredos de família que ninguém me contava. Cresci uma menina com pouquíssimas amigas, que raramente era convidada para festas, e quando o era, mal chegava e queria ir logo embora. Era bonita (puxara as mulheres de minha família) e alguns meninos tentavam aproximar-se de  mim, mas após eu conversar come eles, achava-os todos vazios e imaturos, e perdia o interesse. Tive apenas um namorado aos dezesseis anos, apenas porque as outras meninas insistiam que eu deveria ficar com ele. Durou apenas duas semanas, ao final das quais eu já nem sequer conseguia olhar para o pobre rapaz. 

Aos dezessete, finalmente tomei coragem e abandonei as aulas de balé clássico. Minha mãe nem sequer mencionou o assunto. Apesar de assistir a todos os vídeos das apresentações, ela nunca compareceu a nenhuma delas. Ela elogiava minha performance medíocre, mas ambas sabíamos que eu jamais me tornaria uma dançarina clássica.

Certo dia, ao chegar da escola, encontrei com um homem de branco saindo da casa. Meu pai apresentou-me rapidamente  ao Doutor Javier, que eu nem suspeitava ainda, seria frequentador assíduo de nossa casa nos próximos meses. Mamãe não estava sentindo-se muito bem, mas recusava-se a ir para um hospital.

Eu lia a preocupação e a angústia nos olhos de meu pai enquanto ele tentava tranquilizar-me:

-Não se preocupe, querida. É apenas uma leve indisposição.
-Posso ir vê-la?
-Ela está descansando, o doutor deu a ela um sedativo. Vá, mas não faça nenhum barulho, OK?

Concordei com a cabeça, e jogando o material escolar sobre o sofá, subi as escadas, apreensiva. 

(continua...)



3 comentários:

  1. Todos os pais que são PAIS, são homens bonitos em toda a sua plenitude.

    Gostei muito de ler

    Cumprimentos

    http://pensamentosedevaneiosdoaguialivre.blogspot.pt/

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  2. Olá, querida Ana
    Cada família tem o seu mistério... A do seu conto também o teve...
    Fico imaginando o que aconteceu com as 'suas tias'...
    No aguardo...
    Bjm fraterno de paz e bem

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  3. Passando para agradecimento!

    Agradecer

    Elogiar, pelo belo que faz

    E parabenizar é uma virtude que

    nos temos para com os bons amigos

    E com carinho de sempre recebo sua

    visita com muito amor

    Sua presença é marcante no meu

    Cantinho


    Bjusss

    └──●► *Rita!!

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