segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE II





Apresentei Sara a Bruna e Ian pelo computador. Eles se entreolharam, e tentaram sorrir para a menina, que olhava para eles sem entender como duas pessoas podiam conversar com ela através da “televisão”. Achei incrível que em pleno ano 2019 uma criança daquela idade nunca tivesse visto um computador antes, e compreendi o quanto Sara tinha sido uma criança carente.  Contei a Bruna que a menina estava usando seu quarto, e ela ficou em silêncio durante algum tempo; depois, comentou:

-Mas acho que em breve ela terá uma acompanhante, mãe...

Ela e Bruno se entreolharam de novo, e ele explicou:

-Estamos pensando em voltar. A coisa está muito difícil por aqui. Fui demitido do emprego ontem. E nós sabemos que você e papai não podem mandar mais dinheiro. Acho que não vai dar para pagar o aluguel no mês que vem...

Fiquei preocupada:

-Mas... vocês têm comida? Água?

Foi Bruna quem respondeu:

-Sim, ainda temos água e comida para alguns dias, mas precisamos que vocês comprem as passagens. As coisas lá no meu trabalho também não vão nada bem, vai haver demissões, e tenho quase certeza de que estarei entre os primeiros, já que sou estrangeira; não vai dar para terminar a pós assim. Melhor voltarmos até as coisas melhorarem.

“Até as coisas melhorarem”, pensei. Mas não tinha certeza se aquele dia chegaria. Quando Renan chegou, contei a ele as novidades. Ele pareceu preocupado, mas achou melhor que as crianças voltassem para casa. 


***********************

A água era fria, e escorria pelas minhas costas, aliviando o calor. Em volta, tudo era tão verde, que mais parecia uma pintura. Barulho de chuva, mas o céu estava azul. Barulho de chuva, ficando cada vez mais alto, ensurdecendo-me... a água fria e refrescante tornou-se escaldante de repente. Olhei para cima, e um pássaro colorido cantava num galho de árvore. Parecia um canto agourento. Tudo começou a secar; as folhas iam ficando amarelecidas, douradas e marrons, e logo eram derrubadas por um vento quente. Animais passavam correndo, e caiam mortos no meio do caminho, e no céu o sol se aproximava da terra aos poucos, deixando tudo cada vez mais quente. As gotas de chuva começaram a ficar douradas, e vi que era o sol derretendo. A água ficou dourada, e desceu pelas minhas costas feito lava.

Acordei num sobressalto, sentando-me na cama, a mão na garganta. O calor era sufocante, e notei que o ar condicionado se quebrara. Levantei-me da cama e escancarei as janelas, deixando a brisa morna da noite entrar. No céu, estrelas embaçadas pelo ar poeirento. A lua amarela e cheia parecia rir de nós. 

Na manhã seguinte, Genaro chegou com a notícia:

-Dona Elisabeth, acabo de vir lá da nascente. Secou de vez. 

Meu coração murchou. Jamais pensara que eu viveria para ver aquele momento, aquela época triste. Eu fiquei muda. Durante os cinco anos que morávamos naquele bairro, a água tinha sido sempre abundante, e por isso escolhêramos aquela região. 

Genaro me olhava, apreensivo. Sei que ele pensava que em breve seria demitido. Tentei sorrir, mas formei uma careta:

-A gente pode cavar outra mina... ou poço.

Ele tirou o chapéu, enxugando o suor da testa:

-Não tem mais nenhuma, dona Elisabeth. Há meses venho tentando achar uma, mas está tudo seco. Até as árvores e plantas estão começando a morrer. Bem... acho que no reservatório tem água para mais um ou dois meses. Depois, acho melhor vocês irem embora. Para o sul.

-Mas... está tudo inundado por lá! Vi na televisão que há mais de cem mil mortos, e praticamente toda a população está desabrigada. Estão fugindo de lá. Estão indo para outras regiões.

-É o desespero...mas quando chegarem lá, encontrarão só um deserto. Eles no fundo sabem disso. 

-Mas o governo precisa fazer alguma coisa!

-Não conte com isso, dona Elisabeth. O presidente acaba de dar um discurso na TV dizendo que não tem mais verbas para ajudar ninguém. O governo faliu...

-Mas as Nações Unidas...

-Estão sobrecarregados com o resto do mundo. A Europa toda está um caos só. A África é o reino da fome. Até os estados Unidos estão numa crise horrível, como nunca se viu antes!

Eu sabia de tudo, apenas não queria pensar no assunto. Não discuti com ele. Compreendi que todos estávamos sós, e deveríamos fazer o que fosse possível para continuarmos vivendo, sem contar com a ajuda de ninguém. Ele me olhou nos olhos:

-Eu sei, dona Elisabeth, que é muito difícil para vocês me manterem aqui, e agradeço por tudo; mas eu entendo que a senhora e o ‘seu’ Renan não podem carregar a mim e à minha família nas costas, ainda mais agora que tem mais uma boca para comer (ele olhou para a pequena Sara). Me peguei dizendo:

-E meus filhos estão voltando da Europa...
Ele aquiesceu. Seu olhar era triste, mas conformado. Genaro sabia que não podíamos mais ajuda-lo e à sua família, que tínhamos feito tudo o que era possível.

-Eu me demito, dona Elisabeth.

Senti um nó na garganta:

-Mas... o que você vai fazer? Para onde vai?

-Pra onde tem chuva.

-Mas Genaro... como você vai chegar lá? E quando chegar, onde irá morar? Não há casas, não há lugar seguro, nem mesmo para a população de lá!

-Uma coisa de cada vez... lá a gente vê. Aqui não dá mais. Vou pegar uma carona, mais minha família, em um caminhão de um amigo mais a família dele. 

Naquele instante, vi o carro de meu marido chegando. Fiquei apreensiva, pois ele nunca voltava para casa duas horas depois de ter saído para o trabalho. Antes mesmo de Renan sair do carro, eu já sabia o que tinha acontecido. Ele me olhou, e saiu do carro dizendo:

-Fui demitido. 

Abracei-o, chorando. O que seria de nós, o que seria dos nossos filhos, de Genaro... de todos? 

Ele cumprimentou Genaro, e este lhe disse que estava indo embora com a família:

-Boa sorte para o senhor, e obrigada por tudo, ‘seu’ Renan.

Meu marido aprumou o corpo, e colocando a mão no ombro de Genaro, anunciou:

-As coisas estão difíceis, Genaro. Você não vai conseguir sobreviver com sua família lá fora. Fique aqui conosco.

Genaro ficou com os olhos rasos d’água, e respondeu:

-Obrigada, mas não quero ser um peso para o senhor.

-Já o considero da família, Genaro. Ajudarei como puder. Ainda temos água e comida, e algum dinheiro da minha indenização e economias. Uma mão lava a outra. Confesso que pensei em demiti-lo, mas como fazê-lo, se já nos conhecemos há tantos anos?

Eu interferi:

-Ele acaba de anunciar que as minas secaram.

Mesmo assim, Renan insistiu:

-Não importa. O que acontecer a nós, acontecerá também a vocês. Mudem-se para a edícula com sua família, há dois quartos. Não é muito grande, mas é confortável. Quem sabe, alguma coisa boa acontece no meio de tanta coisa ruim?

Sara escutava a conversa, olhando de um para outro quando falávamos, os olhos azuis arregalados, a boneca apertada junto ao peito. Tinha calçado as sandálias dadas por Renan, e vestia um vestidinho leve de verão. Limpa e penteada, era uma criança realmente muito bela. Eu tinha prendido seu cabelo em um rabo de cavalo, o que deixava seu rosto mais à mostra e mais arredondado. E embora eu não tivesse a intenção de afeiçoar-me a ela, ela e seu silêncio já tinham me cativado.
Genaro apertou a mão de Renan, rendendo-se à oferta.

-‘Seu’ Renan, o senhor sabe que eu tenho mulher mais dois meninos, o Pedrinho e o Luisinho. Mas nós vamos fazer o que pudermos para a ajudar, vamos tentar não ser um peso tão pesado para vocês. 

Renan disse:

-Seria horrível ficarmos sozinhos aqui, Genaro. Todos já se foram, exceto a senhora do final da rua...

Completei:

-Dona Berta. Precisamos ver se ela está bem, se precisa de alguma coisa... bem, ela sempre encomenda do mercadinho. Acho que ela deve estar bem. Não é de muita conversa...

Genaro disse:

-É, mas o mercadinho vai fechar, dona Elisabeth. Ela não vai mais ter de onde encomendar não...
Senti uma grande apreensão ao saber que o mercado do bairro ia fechar, pois sabia que teria que dirigir quase uma hora para fazer compras na cidade. Mas era natural em tempos de crise, e pelas prateleiras quase vazias e os legumes murchos, eu já desconfiara que aquilo acabaria acontecendo.
-Amanhã vamos até lá dar uma olhada. Agora estou cansado e faminto. Vá buscar sua família, Genaro, e venham jantar conosco.

Quando Genaro chegou com a família, sua esposa Dora agradeceu-me, beijando minhas mãos. Tentei evitar, mas ela insistiu, dizendo que nunca tinha visto pessoas tão boas quanto nós, o que me deixou muito constrangida. Sentamo-nos à mesa, comemos e bebemos. Luisinho e Pedrinho eram tímidos, mas notei que sentiram-se mais à vontade quando coloquei-os perto de Sara. As três crianças se entreolhavam e sorriam timidamente. 

Dora me ajudou a tirar a mesa e lavar os pratos, economizando água, como eu ensinara. Ela disse que a partir daquele dia eu não precisava mais me preocupar com os serviços da casa, mas eu a fiz me olhar de frente, e disse:

-Dora, não os chamamos aqui para que fossem nossos empregados. A situação é a mesma para todos. Cada um terá suas tarefas, ninguém deixará de colaborar. Amanhã vamos ao porão e contaremos as latas de comida e os pacotes de cereais, açúcar, sal e macarrão. Também contaremos a água, leite e suco.

-Nós também temos algumas coisas em casa que vamos trazer amanhã. Juntaremos tudo. Não é muito, mas ficaremos felizes em poder dividir.  A laranjeira deu muitos frutos esse ano, dona Elisabeth.

-Me chame de Elisabeth, ok?

(CONTINUA...)




Um comentário:

  1. Boa noite, Ana!
    Será que chegamos a 2019?
    Aguardando!!!
    Abraços carinhosos
    Maria Teresa

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