sábado, 29 de agosto de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE IV



 



Nos dias que se seguiram, tentei contato com meus filhos de todas as formas possíveis, e não consegui, nem mesmo através da embaixada. Tudo o que sabíamos, é que eles tinham deixado o apartamento com as malas e ido para o aeroporto de Lisboa há quase dez dias. Naquele dia, houve uma grande manifestação popular nas ruas que deixou cento e quinze mortos e mais de quinhentos feridos, uma verdadeira catástrofe, e eu só pensava que meus filhos poderiam estar entre eles. Quando a aflição tomava conta de nós, Sara percebia, e vinha sentar-se ao nosso lado. Seu olhar calmo e gentil parecia exercer um poder pacificador sobre nossas almas, e notei que Renan afeiçoava-se cada vez mais a ela. Várias vezes, vira os dois conversando baixinho no jardim, e naqueles momentos, eu percebia que Sara deixava de agir como uma criança e seu semblante tomava ares amadurecidos. 

Ela brincava com Pedrinho e Luisinho como se fosse uma menina crescida tomando conta de crianças menores, demonstrando muita paciência com eles, e sempre deixando-os vencer durante os jogos e brincadeiras. Genaro e Dora também já tinham reparado no ar tranquilizador da menina, e Dora às vezes comentava que Sara era como se fosse um verdadeiro anjo, tomando conta dos seus filhos. 

Certa noite, tive um sonho com meus filhos. Vi-os no chão de uma caverna, as malas abertas, sentados junto a uma fogueira, havia outros jovens com eles. Pareciam estar fisicamente bem, embora angustiados. Meu filho Ian mostrava um computador quebrado, e minha filha Bruna tentava montar as peças de um celular despedaçado. Eu os olhava como se assistisse à cena de algum plano mais alto. Via os topos de suas cabeças, e embora esticasse a mão para tocá-los e tentasse falar com eles, eu não conseguia mover-me; sentia que meu corpo era apenas um pequeno círculo que eles não conseguiam ver. 

Acordei suando muito, angustiada e com um nó na garganta. Olhei para o lado: Renan dormia profundamente, e como ele já não vinha dormindo bem há vários dias, achei melhor não importuná-lo; mas o sonho me impressionou profundamente, e não consegui mais conciliar o sono. Levantei-me, caminhando até a cozinha; mas quando passei pela sala de estar e olhei pela porta de vidro, algo branco se movendo chamou minha atenção: era Sara, que vestia uma camisola branca. Fiquei parada, observando-a. Ela estava descalça, e parecia andar pelo jardim seguindo uma direção lógica. Às vezes, erguia os bracinhos para o céu, e ficava naquela posição durante alguns segundos. Achei que ela pudesse estar tendo uma crise de sonambulismo, mas alguma coisa me fez ficar quieta, apenas observando-a.

Vi quando ela caminhou para fora do jardim, seguindo a trilha que ia dar no reservatório de água, junto à mata ressequida. Abri a porta e segui-a noite adentro. O luar estava claro, e era muito fácil enxergar. A brisa quente da noite e o esforço da caminhada logo cobriram minha testa de pequenas gotas de suor, que começaram a escorrer pelo rosto, mas ela parecia caminhar sem esforço, fresca e decidida.

Andamos durante os cinco minutos necessários para chegarmos ao reservatório, e escondi-me atrás de uma pedra para observar melhor o que ela faria. Ela chegou até o reservatório – uma caixa de cimento quadrada, com uma pesada tampa de madeira por cima. Eu não senti nenhuma apreensão, pois sabia que uma menina pequena como ela jamais seria capaz de erguer a tampa, mas boquiaberta, vi quando Sara apenas ergueu a mãozinha e empurrou a tampa sem o menor esforço. Saí de meu esconderijo, apavorada diante da possibilidade de que ela caísse lá dentro, mas antes que eu pudesse gritar ou chegar até ela, ela subiu rapidamente na beirada do reservatório e pulou na água. 

Eu queria gritar e não conseguia. Corri até a beira do reservatório, olhando lá para dentro à procura dela, mas tudo estava quieto, e a lua se refletia na água. Eu estava apavorada. Tentava falar, chamar por Sara, mas a voz não saía. Meu coração acelerado parecia bater dentro da minha cabeça. Pensei em pular também, mas eu não sabia nadar e não poderia ajuda-la. Tudo estava estranho, pois eu vira claramente quando Sarah pulara na água, mas a superfície estava calma, sem qualquer sinal de agitação. Havia mais alguma coisa estranha que eu não conseguia perceber, mas que ficava agarrada à beira de minha mente procurando um sentido. Eu olhei em volta do poço, e dentro da mata. Só havia o silêncio e o cricrilar de grilos, e alguns pirilampos que passavam. Eu teria sonhado aquilo tudo?

De repente, eu finalmente senti o que se agarrava à beira de minha mente, e que eu não estava conseguindo enxergar: o reservatório estava cheio até a boca! Respirei profundamente, levando as mãos à cabeça, e foi quando escutei o ruído da água da mina entrando com pressão. Aquilo não fazia o menor sentido, pois segundo Genaro, a mina secara há algumas semanas, e o reservatório esvaziara bastante depois que ele e sua família passaram a viver conosco naquela casa. 

Um arrepio na nuca quebrou o calor da noite. Olhei para trás, e vi Sara de pé, seca, atrás de mim. Tive medo dela. Tive medo, e vontade de sair correndo; afinal, ela não era uma criança normal. Vi quando ela levou a mão até os lábios, e soprou-me um sinal de silêncio. 

O que se passou em seguida não está claro na minha mente até hoje, e portanto, não posso explicar. Eu senti que o ar tornara-se mais frio enquanto eu voava sobre a propriedade, e então vi a janela de meu quarto. Acordei em minha cama na manhã seguinte, sentindo-me mais cansada que o normal. 

Eu queria falar com alguém a respeito da noite anterior, mas o que eu diria? Como poderia sequer começar a falar naquilo tudo? Decerto, pensariam que eu estava louca! Eu mesma me senti uma louca, quando, após vestir-me e dirigir-me para a cozinha a fim de tomar o café da manhã, encontrei todos à mesa, conversando, como se nada tivesse acontecido. Olhei para Sara, que me sorriu, dizendo o mais casual “Bom dia” do mundo. Ela ria e conversava com Pedrinho e Luisinho, planejando as brincadeiras do dia. O mundo estava um caos, e as crianças só queriam saber de brincar, e Genaro e Renan conversavam sobre banalidades como se nada estivesse acontecendo. Meus filhos estavam desaparecidos e ninguém parecia se importar. Uma criança mergulhara num enorme e profundo reservatório de água – que deveria estar pela metade, mas estava cheio até a borda – e a vida corria normalmente.

Sentei-me à mesa, a cabeça entre as mãos, sentindo que tudo era estranho, banal e não fazia o menor sentido. Até mesmo Bubo roía um pedaço de osso no canto da cozinha, despreocupadamente, alheio a tudo. Olhei para todos aqueles rostos, que nem sequer pareciam me notar. O grito que dei saiu bem lá de dentro de mim, inesperadamente; eu não queria fazer aquilo, mas quando vi, estava gritando bem alto, extravasando dias e dias de angústia e medo através da garganta. Quando parei de gritar, sentia um formigamento por todo o meu corpo, e lágrimas desciam pelo meu rosto. Todos estavam em silêncio, me olhando. Em câmera lenta, vi Renan aproximar-se de mim e acariciar meu rosto, pegando-me pela mão e levando-me de volta ao quarto. Ajudou-me a deitar na cama, sentando-se ao meu lado, acariciando minha testa. Ninguém me questionou ou perguntou o que estava acontecendo. Da cozinha, vinham murmúrios e sussurros, e vi que eram de Dora, acalmando as crianças e pedindo a elas que fossem brincar lá fora, mas sem fazer barulho.

(CONTINUA...)



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