quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

SEGREDOS - conto 1 - O VIAJANTE





A partir de hoje estarei postando uma série de contos completos, sob o tema "Segredos." Segredos que temos, dos quais ficamos sabendo, que todos escondemos... quem não tiver um segredo, que atire a primeira pedra.



SÉRIE SEGREDOS – CONTO 1

“Às vezes, os maiores segredos só podem ser revelados a um estranho.” – Michelle Hodkin


O VIAJANTE


Naquela manhã chuvosa de sábado, Luana entregou a passagem ao motorista e entrou no ônibus, rumo a São Paulo, a fim de passar o natal com seus familiares. Morava e trabalhava no Rio de Janeiro há cinco anos, mas fazia questão de passar o natal com a família sempre que podia, pois para ela, “família fazia parte daquelas pequenas coisas que deveriam ser mais valorizadas” – uma frase que ela ouvira de uma das participante de um reality show e jamais esquecera.

Procurou sua poltrona e sentou-se em seu lugar, à janela. Minutos depois, um senhor distinto ocupou o lugar junto ao seu. Trocaram olhares e ele a cumprimentou com um “Bom dia” neutro, e ela respondeu educadamente, logo em seguida concentrando-se na paisagem à janela enquanto o ônibus deixava o terminal e pegava começava a pegar a estrada. Com o canto do olho, Luana observava a camisa de boa qualidade mas antiga, levemente puída no punho, as calças bem passadas e o  relógio de pulso barato e de marca desconhecida usados pelo seu colega de banco de ônibus. Olhou também para o dedo anelar da mão esquerda, constatando que ele não tinha aliança. Nem percebeu que o distinto senhor também a observava discretamente, e seu olhar detinha-se nos joelhos à mostra sob a saia na qual faltava tecido, de cores que ele rapidamente classificou como sendo de mau gosto, e perdia-se entre os seios que surgiam entre o decote vulgarmente generoso da blusa preta justa.

Ela pensava: “Um homem bonito assim, mas sem aliança, só pode ser gay. Ainda mais nessa idade! Deve ter uns cinquenta anos, mas é todo bem cuidado, e solteiro? É gay, com certeza!”  Ele pensava: “Uma linda jovem – talvez tenha uns vinte e cinco anos, porém não deve ter muita coisa dentro da cabeça, pois precisa expor o corpo desta maneira tão vulgar a fim de chamar a atenção. Já deve ter dado para meio mundo. Uma pena!” 

Assim, estabeleceu-se o primeiro contato entre eles e as primeiras impressões (equivocadas, como quase sempre acontece). 

Uma hora depois, Luana despertou com um solavanco do veículo para descobrir que tinha adormecido com a cabeça encostada ao ombro do distinto senhor. Imediatamente, ela desculpou-se, constrangida, alegando imenso cansaço, mas ele apenas sorriu e disse que ela não tinha do quê desculpar-se. As apresentações foram feitas: “Meu nome é Robério Gomes, às suas ordens.”  Luana disse-lhe seu nome, achando engraçada a maneira formal como o senhor se expressava. Logo, estavam conversando animadamente sobre amenidades, esquecidos da distância cultural e econômica que os separava – Luana era de família rica, porém preferia viver no Rio de Janeiro, onde, segundo explicou, a vida era mais divertida e se podia ir à praia quando quisesse. Não gostava muito de estudar, mas formara-se em psicologia e tinha um pequeno consultório em Copacabana – presente do pai, que enviava-lhe uma gorda mesada para que ela pudesse brincar de profissional independente e morar em frente ao mar. Ele escutou atentamente enquanto Luana narrava sua vida feliz, pensando no quanto ela era fútil e tão diferente de sua filha, que só pensava em estudar e ter uma carreira bem-sucedida.

Já Robério, era um humilde professor de matemática. Lecionava em algumas escolas públicas, e sua vida nada tinha de glamorosa. Morava em uma casinha no subúrbio, onde se estabelecera após o divórcio, pois a casa confortável que construíra para o casal e a filha ficara com a mulher após a partilha de bens. Solitário, tinha poucos amigos e não gostava de praia. Preferia passar o tempo livre em casa, assistindo TV. Luana ouviu seu curto relato, sem conseguir esconder sua decepção; ela gostava de homens mais velhos, principalmente os casados, que nada mais queriam que uma simples aventura e não grudavam no seu pé. Este, apesar de bonitão, era um fracassado, segundo suas avaliações. Luana gostava de homens que apreciavam uma balada após o trabalho, e que pagavam as contas dos restaurantes e motéis. Robério parecia não ter um tostão. O interesse sexual que ela havia sentido por ele imediatamente morreu.

Mesmo assim, ela tinha que admitir que Robério era culto e interessante; ele falava sobre vários assuntos que ela não conhecia e não entendia, explicando-lhe pacientemente os detalhes, quando ela fingia demonstrar interesse. Pensou que afinal de contas, Robério deveria ser um ótimo professor. E quem sabe, um bom ouvinte... 
Assim, enquanto a estrada os aproximava cada vez mais do seu destino, a conversa foi aumentando o grau de intimidade entre eles. Luana explicou o motivo de sua viagem a São Paulo, e perguntou sobre o dele, e Robério explicou-lhe que tinha sido convidado a passar o natal com um grande amigo de adolescência que já não via há anos e que reencontrara há apenas alguns dias, quando este estava em viagem de negócios pelo Rio de Janeiro. Tinham sido melhores amigos por muitos anos, mas a mudança de Robério para o Rio após seu casamento, acabara afastando os dois amigos. Aquela era uma chance de reestabelecer a amizade entre eles. 

Luana escutou, concordando com a cabeça. O silêncio caiu entre os dois durante algum tempo, e ela começou a pensar que dali a apenas algumas horas, eles se despediriam e ela nunca mais o veria. Coincidentemente, Robério pensava a mesma coisa, mas para ele, aquilo nada significava, enquanto que para Luana, o fato era visto como uma oportunidade. E foi assim que surgiram as confissões.
Luana abriu-se com Robério; contou-lhe o verdadeiro motivo de ter desejado ir embora de casa e morar longe dos pais: é que sua mãe mantinha um caso com o síndico do prédio há vários anos, e ele não era o único. O comportamento promiscuo da mãe, Luana explicou-lhe, não querendo parecer puritana ou julgadora, em nada a afetaria se esta não fizesse questão absoluta de levar seus amantes para a cama do pai assim que este saía para o trabalho, quase todas as manhãs. Ela sentia-se constrangida com a situação, pois várias vezes acordava e dava de cara com um deles no corredor. Robério tentou não demonstrar seu embaraço após aquelas confissões fora de contexto, e ouviu a moça lamentando a situação. 

Por outro lado, o pai “comia” várias de suas colegas de escola, desde que ela tinha dezesseis anos. Ela mesma já vira algumas cenas tórridas em seu próprio quarto, mas achou melhor não dizer nada a respeito. Mesmo assim, aquilo gerou uma distância enorme entre ela e o pai. Afinal, amigas eram amigas, e deveriam ser respeitadas como tal (embora as suas amigas adorassem toda aquela “atenção” e depois partilhassem com ela os detalhes sórdidos de tudo o que acontecia, e Luana, tentando não parecer puritana, ouvia e dava risadas). E para coroar toda aquela situação, Luana confessou que o pai tinha uma amante no Rio de janeiro há vários anos, uma tal Clotilde (ela notou o rosto de Robério ficando vermelho após ela mencionar o nome da amante de seus pai) que ele visitava sempre que ia tratar de negócios por lá. A mulher até se divorciara do marido para ficar à disposição dele, sustentada por ele. Como ela sabia? Ouvira várias conversas deles ao telefone, e conseguira abrir os e-mails do pai. Robério percebeu o quanto a moça tivera sua educação comprometida, e também a falta de apoio e exemplos que tivera em seu próprio lar, e entendeu o porquê do comportamento dela. Cresceu sem saber o que era o certo e o errado, e com uma visão distorcida da sexualidade. Sinceramente lamentou por tudo o que a jovem tinha passado, e censurou-se por tê-la julgado. Quanto ao nome da amante do pai de Luana, ele atribuiu o fato à coincidência. Quantas Clotildes existiam por aí, além de sua ex-mulher?

Segredos confessados, Luana sentiu um imenso alívio; afinal, jamais falara sobre aquilo com ninguém. Pouco antes de chegarem a São Paulo, ambos se desculparam por “qualquer coisa.” Mais uma vez, o silêncio caiu entre eles, entrecortado por olhares furtivos e sorrisos tímidos. O assunto acabara, a viagem estava chegando ao fim e nunca mais veriam um ao outro. 

O ônibus chegou a São Paulo, e ambos pegaram suas maletas no compartimento de bagagem. Robério colocou Luana em um táxi, e os dois se despediram. Após um café, ele mesmo tomou seu próprio táxi e dirigiu-se para o endereço do amigo, que o aguardava.

Luana chegou à casa dos pais, que estava cheia como sempre, aquele clima de festas de fim de ano onde todo mundo é feliz, risos, brindes, presentes sob a imensa árvore dourada, e a mãe, mais linda do que nunca, abraçada ao pai , foram recebe-la de braços abertos– o retrato do casal feliz e perfeito, durante o reencontro com sua linda e bem-sucedida filha. As pessoas aplaudiam.
 Alguns minutos após sua chegada, a campainha tocou, e o pai foi atender, dizendo: “Deve ser o Robério!”






2 comentários:

  1. [ ups! :)
    Robério!!...]
    gosto muito do conto.

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  2. Ana, que beleza de conto! Alguns segredos se abrem, naturalmente, com as voltas da vida. Gostei demais! Bjs.

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