quinta-feira, 17 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVII











O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVII




Era uma tarde de domingo, e Regiane tinha ido visitar as tias no casarão a fim de contar-lhes a novidade sobre os irmãos recém-descobertos. Fiorela não deixou por menos: ao saber da carta que a sobrinha recebera de São Paulo, informando-a da existência de seus irmãos, ficou apavorada diante da possibilidade de um escândalo, e tentou convencer Regiane de que seria melhor não conhece-los:

-Ora, pense bem, Regiane: estes meninos – como é mesmo que se chamam? Pedro e Antônio, não é? Foram criados longe de você, nunca a viram e você nunca soube deles antes, portanto, não sentiu-lhes a falta; por que remexer neste passado tão confuso e sofrido? Você tem agora quinze anos – oficialmente, dezessete; o que significa que estes meninos tem treze e onze anos hoje, tão mais novos que você... que tipo de amizade poderia surgir daí? Melhor deixar o passado no passado!

Regiane mal podia acreditar no que estava ouvindo, mas não ousou responder a tia. 
Rosa tricotava um casaquinho para a pequena Cléia, e franziu a testa ao escutar a irmã:

-Por que você é sempre tão fria, Fiorela? Você ignoraria a existência de irmãos, caso os descobrisse? Eles são a família dela! E se pensarmos bem, também fazem parte da nossa.

-Ora, não diga bobagens! Era só o que me faltava, se nem laços sanguíneos existem entre nós!

-Mas são irmãos de Regiane, nossa sobrinha. Devem ser tratados com consideração. O que você vai fazer, Regiane?

-Já fiz; escrevi-lhes de volta, dizendo que desejo conhece-los. 

Fiorela ergueu a voz:

-Aqui em casa é que eles não entram!

Regiane, que já tinha suportado mais do que podia, finalmente respondeu a tia à altura:

-Não se preocupe, tia Fiorela; eu jamais os traria aqui para serem ofendidos pela senhora. Já conversei com Dália, e ela disse que ficará encantada em recebe-los. A propósito, eles chegam no próximo sábado. 

Rosa largou o bordado, e foi abraçar a sobrinha:

-Oh, que bom, querida! Estou tão feliz por você. Quem irá trazê-los?

-Irão de trem a Niterói, sozinhos, e papai irá busca-los na estação e os trará até Petrópolis. Mal posso esperar para conhecer meus irmãos! 

Fiorela fez uma expressão de escárnio, encolheu os ombros e deixou a sala pisando duro, levando a pequena Cléia no colo. Léa, que estivera por ali escutando a conversa dos adultos, perguntou:

-Prima Giane, posso ir também? Quero conhecer seus irmãos, porque eles são meus priminhos! 

Regiane riu baixinho:

-Adoraria leva-la, prima, mas se sua mãe descobrir, ela nos mata! Imagine só: você, a princesinha da casa, conhecendo os primos-ralé...

Rosa ralhou com Regiane:

-Não fale assim com ela, Regiane. Ela não entende sua ironia. Não seja como a sua tia!

Regiane pediu desculpas, e mudou de assunto:

-O casamento de Dália será daqui a dois meses. Preciso de um vestido! E tem que ser bonito, pois ela me convidou para ser a madrinha. Você acha que papai me dará um?

-Tenho certeza que sim, querida. E eu faço questão de bordá-lo. Posso usar fios prateados na pala... ficará lindo!

-Obrigada, tia! Vou adorar!

-E quem será o padrinho?

-Acho que um dos irmãos de Otávio... estranho, o irmão do noivo como padrinho... mas acho que é porque eles não conhecem mais ninguém por aqui. Otávio é de Curitiba, mora aqui há pouco tempo (apenas um ano) e não é muito sociável... parece muito tímido.

Naquele momento, Fiorela entra na sala novamente. Tinha colocado a pequena para dormir um pouco.

-Bem, espero que seu pai tenha a decência de dar a você um vestido à altura! Não quero que Dália sinta-se envergonhada.

-Pode deixar, tia Fiorela. Não vou envergonhar sua querida prima, mesmo sabendo que se ela me convidou, é porque gosta de mim, e não se importa com a roupa que eu irei usar. Nem todo mundo é igual a senhora. De qualquer forma, caso papai não possa me dar um vestido, tenho certeza de que posso contar com sua bondade, a fim de não envergonharmos a pobre Dália.

Rosa cobriu a boca com a mão e deixou escapar uma risada abafada, deixando Fiorela ainda mais enfezada:

-Você está muito respondona, menina! Vou falar com o seu pai. Ele precisa ensiná-la a ter bons modos! E se eu tiver que vesti-la para  a ocasião, tratarei de reformar um de meus vestidos antigos para você. 

-Prefiro ir nua!

Dizendo aquilo, Regiane deixou a sala, indo em direção ao seu refúgio no alto da colina. Subiu as escadas escutando a voz de sua tia Fiorela, que não parava de ranhetar, e quando chegou ao topo das escadas, percebeu, aliviada, que já não mais podia escutá-la. 

Sentou-se em um velho banquinho sob os pessegueiros, que estavam floridos e espalhavam uma rede cor-de-rosa perfumada sobre sua cabeça. Podia ver a torre da catedral, e o céu perfeitamente azul. Sempre sentia-se em paz ali, e lamentava que o pedido que fizera a Fiorela há alguns dias não tivesse sido atendido: deixa-la morar no chalé após o casamento de Dália – não faria sentido ficar vivendo na mesma casa que o jovem casal, embora eles tivesse dito a ela que ela seria sempre bem vinda enquanto precisasse . A tia achou o pedido totalmente absurdo: “Onde já se viu, uma moça morar sozinha em um lugar tão ermo? Talvez, depois que você se casar...” 

Regiane sabia que, no fundo, a tia tinha razão. Ela teria medo de viver naquele chalé sozinha à noite, embora adorasse ficar ali durante o dia. Tia Fiorela era rabugenta e mau humorada, mas no fundo, era boa pessoa e preocupava-se com todos. No fundo, seu pedido tinha sido feito apenas para implicar com a tia. 

Ela estava envolta em seus pensamentos: o casamento de Dália, que se aproximava, o vestido, a chegada dos irmãos, Ricardo... Ainda não tinha desistido de descobrir quem seria a mãe de Ricardo. Embora escutasse as conversas das freiras na escola sempre que podia, fingindo que não estava prestando atenção, elas nunca mencionavam o rapaz que vivia no porão. Certa vez, escondera-se atrás do órgão da igreja a fim de tentar ouvir a confissão das freiras, mas nem assim ela conseguiu escutar alguma coisa que dissesse respeito a Ricardo. Mas Regiane não desistiria.

Ricardo não parecia na escola há quase duas semanas, e ela sentia um desespero enorme por não vê-lo mais. Ele prometera-lhe voltar, e aquela era sua única tábua de salvação. À noite, antes de dormir, Regiane pensava nele, querendo sentir suas mãos sempre tão frias e macias sobre seu corpo. Envergonhava-se daquelas sensações – as freiras diziam que meninas direitas não pensavam em tais coisas e guardavam-se para seus maridos – mas ela tinha certeza que Ricardo seria seu marido, então que mal poderia haver? Estavam adiantando as coisas, isso era certo, mas tinham nascido para pertencerem um ao outro. Regiane nem conseguia pensar na possibilidade de ficar com outro homem. Só de pensar, sentia horror. 

Regiane foi trazida de volta ao momento presente através de uma ventania mais forte, que derrubou em seu colo muitas flores de pessegueiro. Encantada, ela as colheu uma a uma, colocando-as no cabelo. Ao mesmo tempo, ela sentia que as mãos que enfeitavam seus cabelos com as flores não eram suas; eram mãos leves, como se fossem de vento. Regiane sentiu uma presença atrás de si, uma presença doce e maravilhosa, mas ela sabia que se tentasse voltar-se para vê-la, ela desapareceria. Deixou-se ficar assim, totalmente imóvel, absorvendo aquela presença tão querida: Vicentina, sua mãe! Ela a penteava com as mãos, fazendo-lhe uma trança frouxa entremeada de flores de pessegueiro. Junto com o vento, chegou-lhe aos ouvidos uma canção do passado, que ela ouvira muitas vezes quando era pequenina, um bebê ainda: uma canção de ninar cantada por uma voz querida e muito conhecida, que tinha o poder de acalmá-la e fazê-la adormecer, espantando os monstros e clareando a escuridão da noite. Ouviu-a sussurrar em seus ouvidos:

-Filha querida... estou sempre com você... 

-Mãe!

-Sim! Me escute, não posso ficar muito tempo... assim, feche seus olhos e poderá me ver melhor.

E Regiane conseguiu vislumbrar, de olhos fechados, sua mãe, envolta por uma névoa esbranquiçada que escondia-lhe a parte inferior do corpo. A pele alva brilhava, como se estivesse orvalhada. 

-Você terá que ser forte, filha. Não se preocupe, pois tudo ficará bem... eu estou bem. Todos ficam bem.

Regiane pode sentir o toque dos dedos de sua mãe em seu couro cabeludo, e seus dedos eram frios, porém, macios. Ela sentiu um arrepio leve, como um pequeno choque.

A brisa deixou de soprar, e ela abriu os olhos: Vicentina se fora. Regiane ficou sentada durante algum tempo, tentando absorver tudo aquilo; teria sido imaginação? Não, fora real demais! E sua mãe lhe falara, pedindo que fosse forte. Mas por que? Para quem? Ela teve um pressentimento ruim, apesar de toda a beleza daquele momento. Será que sua mãe lhe falava de Ricardo? Teria acontecido alguma coisa a ele... ou quem sabe, ao seu pai, que estava em Niterói? Ela deixou escapar um pequeno grito, e levou a mão à boca para contê-lo. Olhou em volta: começava a escurecer. Os pessegueiros projetavam sombras no telhado do chalé abandonado, tornando-o surreal.

(continua...)












2 comentários:

  1. Conviver não é fácil, ainda mais quando a ligação de sangue pesa mais que os sentimentos, mas, toda regra tem exceção, ainda bem!
    Gosto muito desses encontros que Regiane tem com a mãe, são tão puros...
    De novo, as imagens tão lindas que descreve tão bem, viajo nelas, é muito agradável te ler.
    Gratidão pelo acesso.

    Meu carinho.

    ps.: espero que esteja gostando do livro
    a música do blog é Vide Cor Meum (do filme Hannibal) é realmente linda, obrigada pelo carinho.

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  2. Ela já é muito forte, com apenas 15 anos, passar por tudo isso!
    Que mais lhe poderá reservar o futuro?
    Fiquei encantada com a presença de Vicentina, suave e amorosa, um grande alento à filha!
    Amei, Ana, lindo demais!
    Abraços carinhosos
    Maria Teresa

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