Após uma noite paradisíaca, um despertar
infernal: Décio acordou com os sons murmurantes e cheios de angústia de um
pesadelo que Sophie amargava ao seu lado. Ao olhar para ela, percebeu o suor
brilhando em sua testa, enquanto sua cabeça virava de um lado para o outro no
travesseiro, os olhos apertados e sons guturais vindos da garganta. Ele
sentou-se na cama ao lado dela, sem saber o que fazer, pois jamais tinha
passado por uma situação daquela.
Enquanto isso, no pesadelo onírico de Sophie,
ela era novamente uma menininha de quatro anos de idade, explorando a fazenda,
quando, ao passar pelo celeiro (cuja porta alguém esquecera aberta), resolveu
entrar. Raios de luz penetravam as frestas das paredes de madeira, iluminando
em listras montes de feno, sacos de cereais e ferramentas – algumas (facões e
foices), rangiam melancolicamente, pendendo de uma viga de madeira grossa onde
alguém as pendurara. A menina foi entrando devagar, ultrapassando pedaços de
madeira jogados no chão. De repente, ela ouviu os guinchos, que ela não sabia o
que eram. Foi seguindo os sons, até ir dar em uma parede de madeira onde havia
uma porta entreaberta de onde vinha uma luz fraca. Ela a empurrou com cuidado,
e o que viu deixou-a estarrecida: seu tio (cujo nome ela não se lembra), que
estava na fazenda em uma de suas visitas eternas, estava agachado de costas
para ela, enquanto observava um enorme rato agonizando. Sophie nunca esqueceu o
sofrimento do pobre animal, e nem o vidrinho verde-escuro com um rótulo branco
e sujo onde havia uma caveira desenhada, no chão ao lado do tio.
Ela deixou escapar um gritinho, o que fez com
que ele se virasse e olhasse para ela:
-Olá, bonequinha... há muitos ratos por aqui.
Ratos muito grandes e perigosos, que podem abocanhar uma menininha como você. mas
o titio está aqui para protege-la...
E dizendo aquilo, ela reviu, aterrorizada, o
braço cabeludo dele estendendo-se na direção dela, agarrando-a pelo pulso e
puxando-a para junto de si. Novamente, ela sentiu o cheiro enjoado e repugnante
de suor, o hálito nauseante em seu rosto, que era uma mistura de tempero e
bebida alcóolica, e que fazia com que ela quisesse morrer. Sophie debatia-se,
tentando escapar das mãos do tio, que a apertava cada vez mais forte, tapando
sua boca com as mãos sujas de terra. Ao
mesmo tempo, os sons agonizantes do rato iam se tornando cada vez mais fracos,
até que, com o canto do olho, ela viu o momento em que ele deu um pinote e
depois permaneceu imóvel. Quando ele levantou as saias do vestido dela
vagarosamente, tudo ficou escuro, e ela desmaiou dentro do seu pesadelo, para
acordar empapada de suor em sua cama.
Sophie deixou escapar um grito abafado, contra
o travesseiro, acendendo a luz do abajur e sentando-se na cama. Nem se deu
conta da presença de Décio, a não ser quando ele se levantou do seu lado na
cama e foi ajoelhar-se no chão diante dela, tentando segurar suas mãos. Sophie
teve um pequeno sobressalto, puxando as mãos para longe dele. Décio percebeu
seu gesto, e não insistiu.
-Precisa de alguma coisa, Sophie? Acho que você
teve um pesadelo, ou algo assim. Quer um copo de água? Eu vou buscar na
cozinha.
Ela assentiu com a cabeça, passando as mãos
pelos cabelos. Décio saiu do quarto para buscar a água, mas ao chegar à porta e
olhar o corredor escuro, iluminado de repente por relâmpagos, teve que respirar
fundo antes de cruzá-lo. Mas tomou coragem; afinal, era uma bobagem
injustificável ter medo de escuro àquela altura da vida. Sentindo calafrios,
ele saiu do quarto em passos apressados, e ao chegar na cozinha, tateou a
parede, acendendo as luzes e respirando aliviado. Foi até a pia, passando água
em um copo, e ainda de costas para a mesa, abriu a geladeira e encheu-o de
água. A voz atrás dele quase o fez largar o copo:
-Ela teve um pesadelo, não foi?
Um milhão de calafrios em forma de agulhas
finas percorreram sua espinha, e ao virar-se, Décio deu de cara com Endora,
sentada à mesa bebericando uma taça de vinho. Achou estranho, pois alguém que
tomava tantos remédios não deveria estar bebendo vinho, mas guardou seu achismo
para si mesmo; afinal, não era da sua conta. Recuperou-se do susto, e tentou
sorrir:
-Não vi você sentada aí no escuro, Endora...
Endora não respondeu àquela observação. Repetiu
a pergunta:
-Ela teve outro pesadelo?
-Sim. Ela sempre os tem?
-Quase sempre.
Ele se deu conta de que Endora sabia que ele
tinha passado a noite junto com sua filha, e sentiu seu rosto corar. Riu, meio
sem-graça:
-Bem, eu vou lá... levar a água, sabe.
Endora concordou com a cabeça, levantando-se e
puxando o robe em volta do corpo. Passou por ele, indo em direção à varanda da
casa. Décio seguiu-a:
-Você está bem, Endora?
Ela olhou-o de soslaio, enquanto abria a
fechadura, e ganhou o piso de madeira da varanda. Só então ela respondeu:
-Não. Eu nunca estou bem, meu jovem. Estarei
sempre cada vez pior.
Ele sentiu pena dela.
-Posso ajuda-la em alguma coisa?
Ela se sentou na cadeira de balanço velha, e
começou a movimentá-la para frente e para trás com a força que lhe restava,
enquanto olhava a chuva que ainda caía.
-Não. Mas você pode ajudar minha filha. Ou você
não gosta dela? Tenho a impressão que gosta, e muito.
De repente, ele teve uma certeza: Endora jamais contaria a ele a sua história.
Ela o recebera porque, em sua cabeça, achava que ele fosse o príncipe encantado
que olharia por Sophie quando ela partisse.
-Gosto dela, Endora. Mas olha, eu preciso dizer
que não sou do tipo que se casa de papel passado, ou que se compromete.
-Não?
Um trovão ribombou ao longe. Ela riu um riso
sardônico.
-Vá levar a água, Décio. Amanhã de manhã
conversaremos.
-A propósito... sobre amanhã de manhã... você
poderia me emprestar um veículo para voltar? É bem longe da cidade, e da casa que
eu aluguei. Mas assim que a estrada estiver seca, eu trago o carro de volta
para você, e volto de bicicleta. Eu trouxe minha bicicleta, e...
Ela o interrompeu com um aceno brusco de mão:
-Você não vai embora. Ficará para o almoço.
Aquilo soou como uma ordem, e ele, viu-se
impotente para contestá-la.
-Agora vá. Quero ficar um pouco sozinha.
Ele a obedeceu. Chegando ao quarto, deparou com
Sophie de pé, olhando a chuva à janela. Ele se aproximou, estendendo-lhe o
copo, que ela pegou sem agradecer, bebendo alguns pequenos goles e
depositando-o sobre o parapeito da janela. Ele percebeu, naqueles gestos, que
ela estava acostumada a ter pessoas fazendo coisas para ela. Ele fez menção de
abraça-la por trás, mas Sophie livrou-se dos braços dele, dizendo:
-Obrigada, já estou bem. Ode voltar para o seu
quarto agora.
Décio ficou estarrecido:
-Como assim? Depois de uma noite destas...
-Ela tirou o robe de seda fina, colocando-o aos
pés da cama e entrando debaixo do lençol:
-O que esperava? Que eu me casasse com você? Ambos
já tivemos o que desejávamos.
Décio ficou muito perturbado, pois aquela fala
era sempre dele. Mesmo assim, reuniu o pouco de orgulho que ainda lhe restava e
saiu do quarto batendo a porta atrás de si. Mas ao deitar-se em sua própria
cama, não conseguiu dormir. O quarto estava estranhamente frio em relação ao
restante da casa. Procurou algum cobertor no armário, mas nada encontrou. Havia
apenas roupas antigas cheirando a mofo. Ele sentiu um arrepio ao pensar que
aquelas roupas – e talvez a que lhe fora emprestada – tinham pertencido às
pessoas assassinadas há anos. Deitou-se na cama, embrulhando-se no lençol, e
começou a adormecer.
Mas logo despertou, pois alguém sussurrava em
seu ouvido: “Tome cuidado com ela!”
Ele abriu os olhos de repente, uma onda de
pavor tomando conta dele. O quarto não estava mais frio, e ele suava. Achou que
tivera um pesadelo, mas a voz ainda soava em seus ouvidos. Achou que, se
espíritos existissem mesmo (sua mãe acreditava que sim, e até frequentava um
centro) estavam tentando avisá-lo de alguma coisa. Mas a assassina que ele
deveria temer era apenas uma pobre mulher velha e doente, que amargara vinte e
cinco anos na prisão e já pagara por seus crimes, e que no momento, nada
poderia fazer contra ele.
O dia amanheceu quente e ensolarado. Quando
Décio acordou, deu com suas próprias roupas lavadas e dobradas sobre uma
cadeira em frente à sua cama. Ele vestiu-as e calçou os tênis, indo para a
sala, onde encontrou mãe e filha tomando o café da manhã, conversando
despreocupadamente. Nem sinal de Diana. Elas o viram chegando, e deram-lhe bom
dia.
Ele realmente não conseguia acompanhar a
mudança de humor das mulheres daquela casa.
-Bom dia, Endora. Bom dia, Sophie.
Ela parecia ainda mais bela à luz da manhã, que
penetrava pela janela escancarada. Ele ficou surpreso ao ver a janela aberta
pela primeira vez, mas não disse nada. Sentou-se e tomou o café nababesco que
lhe era oferecido, descobrindo que estava realmente faminto. Comeram em
silêncio, mas havia um clima bem mais leve na casa naquela manhã, como se a
tempestade tivesse lavado a energia ruim que pairava sobre o lugar. Quando terminaram,
Diana finalmente apareceu, e começou a desfazer a mesa. Eles se levantaram, e
Décio achou que já passava da hora de ir embora. Foi quando Endora o chamou:
-Venha comigo.
Ela foi andando, e sem olhar para trás para ver
se ele a seguia, entrou em uma sala – que ele reconheceu como sendo um
escritório que estivera fechado durante muito tempo, visto a grossa camada de
pó que pairava sobre tudo. Endora pediu-lhe que abrisse a janela e fechasse a
porta atrás deles, e sentou-se na cadeira acolchoada e suja da escrivaninha
antiga e pesada. Décio fez o que ela lhe pedira, e ao abrir a janela, a luz do
sol entrou, e a sujeira do cômodo ficou ainda mais impressionante. Havia uma
estante de livros por trás da escrivaninha, e cupins e baratas caminhavam sobre
eles sem tentarem se esconder. Ele franziu a testa com nojo. Endora não parecia
nem um pouco preocupada com o estado lastimável da sala, e fez sinal para que
ele se sentasse na cadeira em frente a dela. Décio pensava se deveria sair
correndo dali enquanto ainda tinha a chance ou se ficava e escutava o que quer
que a mulher tivesse a lhe dizer. Optou pela segunda alternativa.
Endora olhava em volta, os olhos pousando talvez
nas dezenas ou centenas de lembranças que ela lhe provocava. Finalmente, ela
olhou para ele:
-Vou contar-lhe
aminha história, Décio. Mas com uma condição.
-O que você quiser.
-Ela só poderá ser publicada depois da minha
morte. E não se preocupe, não vai demorar muito.
Ele concordou com a cabeça, e ficou olhando
para ela. De repente, deu-se conta de que não trouxera seu gravador. Lembrou-se
do celular no bolso dos shorts, e viu que ainda tinha quarenta por cento de
bateria. Perguntou se poderia gravar a conversa, e ela assentiu. Ele ligou o
gravador. Endora puxou uma grande quantidade de ar, que de acordo com as
feições dela, Décio percebeu que entrou em seu corpo de forma dolorosa, e
começou seu relato.
(continua...)
Ana é assustador e revelador, o que é pra nós, não adianta fugir, nem dar voltas, sempre nos alcança...
ResponderExcluirFeliz e abençoada semana, abraços carinhosos
Maria Teresa
Está cada vez melhor, adoro ler-te amiga.
ResponderExcluirAiii q saudade de escrever que me deu, mas ando meio travada rsrsss....
bj
SE JÁ ESTAVA BOM, AGORA MELHOROU MILHÕES DE VEZES. ANSIOSA PARA A HISTÓRIA CONTADA POR ENDORA.
ResponderExcluirBJS.