segunda-feira, 9 de maio de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO III







Sophie guardou o aspirador de pó, terminando a limpeza da sala. Raramente conseguia alguém que fosse trabalhar na casa. A fazenda estava abandonada – as plantações, antes famosas nos tempos áureos dos Damata – eram descuidadas e não davam mais grandes lucros, pois os empregados, após anos de ausência de alguém que lhes ordenasse com pulso forte, aprenderam a relaxar e não dar importância ao trabalho. O velho capataz, homem de confiança da família Damata, que cuidava de tudo há muitos anos, havia falecido poucos meses antes de Endora sair da prisão. Além daquilo, as lendas ao redor da história do lugar contribuíam para manter as pessoas afastadas. Sophie não podia demitir os funcionários preguiçosos e contratar novos. Assim, a fazenda ia de mal a pior. Ela já vendera duas outras a fim de pagar dívidas. Mas ainda lhes restavam muitas terras, e eram ainda muito ricas, ela pensava. Talvez acabasse conseguindo convencer a mãe a vender tudo e ir embora com ela para a Europa. E mesmo se não conseguisse, o médico dissera que não restaria muito tempo a Endora.

Sophie crescera longe da mãe, pois fora mandada para longe logo que aconteceu a tragédia em sua família e Endora foi presa, acusada de múltiplo homicídio, mas mãe e filha correspondiam-se sempre através de cartas, que Sophie recebia, lia com atenção algumas vezes e queimava, conforme as instruções da própria mãe, que não queria que as mesmas pudessem cair nas mãos de curiosos. Endora também queimava as cartas que a menina lhe mandava da Europa, e então seu relacionamento com a filha e as coisas que diziam e pensavam entre elas passaram a ser segredo. Amavam-se à distância, e compreendiam uma à outra. Agora, que a mãe precisava de cuidados, era natural que Sophie abandonasse sua vida despreocupada e viesse ficar com ela, deixando para trás seu trabalho como fotógrafa, a família da tia, que a criara e também os pouquíssimos amigos que fizera. Sophie tinha um passado a esconder, e fazer amigos significava convidar as pessoas a fazer perguntas, o que ela não desejava. Assim, seus poucos amigos eram apenas alguns primos, sobrinhos da tia, ou filhos de amigos desta que já conheciam a história e não ficavam fazendo perguntas.

Deixa-los não fora difícil; Sophie aprendera com a mãe, através das cartas, a não se deixar cativar por ninguém, pois as pessoas nunca eram o que pareciam. Elas manipulavam, obtinham o que queriam e depois deixavam suas vítimas estendidas feito carcaças secas. Sophie não confiava em ninguém. A não ser em sua mãe, que mesmo longe, era a influência mais forte que havia em sua vida. Seus tios demonstravam por ela um afeto morno, que ela sentia como se fosse piedade e obrigação; seus primos a apreciavam, talvez porque ela fosse muito bela e inteligente e perspicaz. Mas Sophie se lembrava das admoestações de Endora: “Não se deixe enganar: nada é mais persuasivo do que a adulação. As pessoas que a apreciarem, seja pela sua beleza ou pela sua inteligência, sempre hão de querer algo de você. Não dê a eles o que eles querem. Poupe a si mesma. Preserve-se. Não se deixe manipular.” 

O fato de sua mãe estar em uma cadeia, tendo sido acusada de assassinato, não maculava seu amor por ela. Sophie lembrava-se dos tempos de criança, antes que as duas fossem separadas, e do amor dedicado da mãe, de sua proteção, das horas que passavam juntas brincando nos campos verdes da fazenda, em paz, longe dos olhares raivosos do pai e dos avós– estes sim, ela temia e odiava. Viveram uma vida que, quando estavam juntas e sós, chegava próximo ao paraíso. Porém, quando os outros membros da família estavam por perto, só havia tensão, medo, agressões verbais e até mesmo físicas; se sua mãe tivesse realmente assassinado a família, com certeza ela o fizera a fim de protege-la, negando a si mesma viver em liberdade para que ela, Sophie, pudesse ser livre. Isto era louvável para ela. Mas sempre que ela tocava no assunto nas cartas, a mãe se ressentia.

Certa vez, escreveu-lhe diretamente: “Mãe, você realmente fez aquilo?”

As cartas deixaram de chegar por quase um ano, para pavor de Sophie (e alívio dos tios). Mas ela insistia, escrevendo à mãe toda semana, pedindo que a perdoasse. Até que um dia, Endora enviou-lhe uma carta: “Se você realmente me ama, terá que respeitar meus compartimentos fechados. Terá que aprender a conviver com meus silêncios.” E assim ela fez. 

Sophie ficou muito chocada ao rever a mãe após tantos anos. Chegando de Paris, ela instalou-se em um hotel por uma noite antes de ir buscar Endora na prisão. Lembrava-se da mulher bonita nas fotografias, e deparar com a senhora de aparência envelhecida e mal-cuidada, visivelmente tomada pela doença, foi um choque para ela. Mesmo assim, tentou lembrar-se da mulher que conhecera há anos, em sua infância, e que era a sua mãe, e respirando fundo, conseguiu caminhar até ela, dando-lhe um frouxo abraço e ajudando-a a entrar no táxi que as levaria de volta à fazenda Damata.

Desde que voltaram à fazenda, que Sophie odiava, mas concordara em atender ao último pedido da mãe, Sophie escutava as lendas a respeito das duas: ela mesma era tida como filha do Diabo. Sua mãe, uma assassina fria. Todos diziam: “melhor que fiquemos o mais longe possível da casa grande.” Alguns empregados mudaram-se após a chegada das duas, e os que ficaram, vendo-se em posição vantajosa (sabiam-se necessários) exigiram aumento de salário e recusavam-se a trabalhar muito.

Às vezes, uma das mulheres limpava a casa, mas todas elas temiam entrar lá, e foi difícil que Sophie conseguisse alguma ajuda para cuidar da mãe. Por esta razão, alguns dias após sua chegada, ela colocou anúncio no jornal pedindo uma cuidadora. Diana, uma enfermeira aposentada de São Paulo, foi a única a responder ao anúncio. Sophie fez questão de ir busca-la de carro ela mesma, para que ela não passasse pela cidade e escutasse as lendas sobre sua mãe. Foram diretamente para a fazenda, e desde que chegara, Diana lá permanecera. Não tinha família e nem ninguém a visitar nos dias de folga. Sophie proibiu-a de ficar conversando com os empregados da fazenda, e ela obedeceu. Diana era discreta, calada e eficiente. Mesmo com todo cuidado que Sophie tivera para que ela não ficasse sabendo das histórias que circulavam sobre sua família, foi inevitável que um dos trabalhadores a inteirasse de tudo, mas ela continuou fazendo seu trabalho, sem questionamentos. Também não se deixou amedrontar pelas lendas que contavam sobre suas patroas. O arranjo entre elas era perfeito: ela ministrava os remédios nas horas certas, ajudava Endora  a banhar-se, cuidava das roupas e da arrumação e limpeza do quarto da paciente, lia para ela quando esta pedia.

A fazenda Damata era um retrato da decadência, e não refletia a riqueza de suas proprietárias: as paredes externas soltavam reboco aqui e  ali, e a tinta branca estava carcomida pelo tempo. Dentro da casa, as cortinas tinham remendos e estavam empoeiradas; a mobília antiga e de boa qualidade precisava ser polida, e algumas peças tinham sido atacadas por cupins. Mais da metade da louça da família ou fora quebrada ou furtada. Sobraram algumas peças que ainda continham o desenho do brasão Damata, e alguns copos antigos com as bordas lascadas. A prataria tinha sido quase toda substituída por talheres de alumínio, sem valor. Restavam apenas poucas peças. Roupas de cama, mesa e banho também estavam em mau estado, gastas e desbotadas. As melhores peças tinham sido roubadas por ex-funcionários após a morte do capataz. Sophie também percebera, olhando as contas da fazenda, que o falecido capataz desviara grande parte do dinheiro, mas ela nem pensava em contestar nada.

Aquela era a situação da fazenda quando Sophie e sua mãe, a misteriosa Endora, chegaram à minúscula cidade de Bernardina. 

Aos trinta anos de idade, Sophie era uma mulher muito bonita: alta e magra, gostava de vestir preto com alguns pequenos toques de cores fortes, como azul, roxo, verde e rosa. Tinha os cabelos ondulados e negros cortados curtos, o que lhe emprestava um ar jovial e aparência mais jovem. Nunca pintava as unhas: seus dedos muito longos e finos terminavam em unhas ovaladas e rosadas que ela  mantinha sempre curtas. Alguém já lhe dissera que suas mãos serviriam de modelos para anúncios de produtos de beleza. Seus olhos, de um verde escuro e profundo, eram encimados por cílios longos e densos, e sobrancelhas escuras e arqueadas. A boca desenhada em forma de coração, dava-lhe um ar infantil e sensual ao mesmo tempo. Apesar de ser cortejada por muitos homens, tivera apenas dois namoros que não duraram muito, e algumas pessoas pensavam que ela era homossexual, o que não era verdade. O que acontecia, era que sua personalidade altiva e exigente, seus modos extremamente fechados e seu medo do passado, disfarçado por ironia mordaz, faziam com que ela mantivesse as pessoas afastadas. Os homens a admiravam, sonhavam com ela e a temiam. Diziam que Sophie era inteligente demais, mordaz demais, exigente demais e muito crítica. Os que tentavam uma aproximação, eram geralmente recebidos com frio desdém. Ela troçava deles, expondo seus defeitos de maneira quase cruel. 

Quando Endora pôs os olhos na filha, sentiu-se orgulhosa por sua beleza: ela, que recusara-se a trocar fotografias com Sophie durante todos aqueles anos, imaginara-a mudando de feições enquanto crescia, e transformara-se exatamente naquilo que ela imaginava. 

Assim, o reencontro entre as duas consistira em um olhar de admiração e outro de espanto. 

Não conversaram muito; elas se entendiam através de olhares, deixando para falar apenas o que fosse essencial. Sabiam o que acontecera nos anos em que estiveram separadas, e o passado não seria assunto para elas. O que importava para Endora, é que ela estava de volta à fazenda de onde havia sido arrastada há tempos atrás, a fazenda na qual sofrera suas piores misérias e dores. Para ela, aquilo significava um triunfo, já que seus algozes estavam mortos e enterrados, e ela, viva e possuidora de toda aquela riqueza – embora estivesse doente e com os dias contados. Mas pensava: E quem não estaria? Todas as pessoas estavam com os dias contados, mesmo que algumas fossem viver mais que outras. A diferença, era que ela sabia que os seus estavam terminando – que, para ela, dava-lhe alguma vantagem sobre os que nem sequer se davam conta disso. 

Havia, num canto da sala, um antigo aparelho de TV. Ao descobrir que ele ainda funcionava, Endora passou a ficar pelo menos duas horas ao dia diante dele, assistindo às notícias e surpreendendo-se pelo quanto as pessoas tinham se tornado estranhas e idiotas desde que ela saíra do mundo. A vaidade e o exagerado amor próprio tomara conta de todos, que exibiam-se e às suas vidas nas telas dos computadores de forma obsessiva, e o que há alguns anos teria sido considerado ridículo, era então aplaudido e incentivado. Deu graças porque Sophie não embarcara naquela onda. Aprendera a ser discreta, a não desejar aparecer muito e preservar-se. Pelo menos, aquela lição ela pudera ensinar à filha querida. 

Endora também passava bastante tempo dormindo sob o efeito dos analgésicos que tomava. Às vezes, quando sentia-se melhor, caminhava pela casa sem a ajuda de Diana. Gostava de percorrer os cômodos e lembrar do que lhe acontecera ali: as humilhações que passara, incutidas pelo falecido marido e seus sogros. Ela passava as mãos sobre a poeira dos móveis, deixando o rastro de seus dedos, como a  mostrar àqueles fantasmas que ela estava ali e era mais sólida que eles, que não mais poderiam fazer-lhe mal nenhum, e nem à sua menina. Tomara posse daquele casarão velho e decaído como se fosse um castelo no qual ela reinava absoluta sobre eles. E às vezes, ela sentia um vento frio soprando em seu pescoço, e sabia que era um deles tentando atingir-lhe. Ao invés de temer, Endora ria. Algumas vezes, ela percebia com o canto dos olhos uma sombra escura passando perto dela, deixando um rastro frio. Sophie dissera que ela mesma também sentia aquilo algumas vezes, mas também não tinha medo dos mortos. 

Acharam melhor nada comentar com Diana, mas mesmo ela também podia sentir coisas estranhas circulando naquela casa, embora não as comentasse. Só não ia embora dali porque não tinha para onde ir, e nem como sustentar-se. Passava dos sessenta anos, era viúva, não tivera filhos e seria muito difícil conseguir emprego naquela idade. Aprenderia a acostumar-se às estranhezas da casa, e a conviver com elas. Afinal, nunca tinham lhe feito mal algum, a não ser algumas noites mal dormidas, nas quais ela despertava com a certeza de que alguém estava no quarto junto com ela. Também via os vultos escuros com os cantos dos olhos, e às vezes escutava sons de batidas nos móveis. Procurara por ratos ou outros animais, não encontrando nada.

Mantinha um crucifixo sobre sua cama, achando que ele poderia proporcionar-lhe alguma proteção. 



(continua...)




2 comentários:

  1. AHH MEU DEUS.ISSO TA BOM DEMAIS ANA. CURIOSA AGORA PRA SABER A CONVIVENCIA DE MAE E FILHA NA CASA.
    BJS

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  2. AHH MEU DEUS.ISSO TA BOM DEMAIS ANA. CURIOSA AGORA PRA SABER A CONVIVENCIA DE MAE E FILHA NA CASA.
    BJS

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