segunda-feira, 2 de maio de 2016

A RESENHA DO MAL - CAPÍTULO II









A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO II



Uma luz mortiça entra pelas frestas da cortinas. Décio desperta antes que o despertador o acorde, e toma uma ducha rápida antes de sair em direção à redação da revista, que fica no Rio. Não toma café da manhã para economizar tempo no trânsito, mas tem sempre um pacote de biscoitos e uma garrafinha de água no porta-luvas do carro. Se Lana soubesse o quanto seu filho se alimenta mal, teria um ataque do coração. Na hora do almoço, ele se enfiaria em um self-service qualquer, evitando as saladas, ou então agarraria um sanduíche em alguma lanchonete gordurosa: qualquer coisa que fosse rápida. Os amigos se admiravam do quanto ele parecia em forma, mesmo comendo o que comia, e o apelidaram de avestruz. É que apesar de não comer muito bem, Décio exercitava-se três vezes por semana em uma academia perto de casa, e sempre fazia longas caminhadas aos sábados e domingos. 

Ao chegar na redação da revista, a reunião acabara de começar. Entrou e desculpou-se pelo atraso. Rafaela, uma beldade morena de longos cabelos castanhos, olhou-o por cima dos óculos, sentindo o coração bater mais forte. Mas Décio apenas a cumprimentou com um aceno de cabeça, e ignorou-a o resto do tempo. Tinham ficado algumas noites juntos há alguns meses, e ela se apaixonara, como a maioria das mulheres com quem Décio se relacionava, mas para ele, Rafaela era apenas uma página virada. Raramente ficava com a mesma garota mais do que algumas noites. 

Ao final da reunião, ainda no corredor, Rafaela o chama; Décio vira-se na direção dela automaticamente, esperando, enquanto os outros passam apressadamente para começarem o dia de trabalho em suas mesas. Ela o olha, sentindo o rosto ficar um pouco vermelho, e engasga ao tentar falar. Ele a olha, esperando, metade do corpo virado na direção contrária a ela, demonstrando pressa. 

Ela sorri:

-Eu... estive pensando, Décio... acho que podemos ficar juntos neste projeto.

Ele sacode a cabeça:

-Acho que não, Rafa. (Ela odiava ser chamada assim). Sérgio já distribuiu as tarefas. Eu vou trabalhar em casa, em Petrópolis. 

-Mas quem sabe, eu poderia ajuda-lo nos finais de semana?

-Eu não trabalho nos finais de semana, Rafa. Mas mesmo assim, obrigada.

Sem esperar mais, ele vai embora, deixando-a plantada no corredor. Ao passar pela sala de Sérgio, o redator chefe, ele o manda entrar:

-Hã... Décio... eu acho que tenho um trabalho extra para você. 

-Contanto que seja antes das minhas férias... sabe, ela começa daqui a duas semanas, lembra-se?

Sérgio ergue as sobrancelhas:

-Sim, é claro... hã... mas quem sabe você possa termina-lo antes disso? Preciso que você escreva uma reportagem sobre uma  psicopata que saiu da cadeia devido a idade avançada e uma doença grave, após cumprir 25 anos de pena... o nome dela é Endora. Os jornais não anunciaram, mas fiquei sabendo através de um contato e achei que poderia dar uma história interessante... ela matou o marido e os sogros com veneno, e também mais quatro pessoas.

-Bem, não é bem a minha área... eu escrevo resenhas de livros e filmes.

-Mas este é exatamente o tom que eu gostaria que você desse à esta reportagem: uma resenha. Quero que você descubra detalhes sobre Endora, o que a levou a cometer os assassinatos.

-Hum... parece interessante, pensando melhor... e onde ela mora?

-Em Bernardina, uma pequena cidade quase-fantasma ao sul de Minas. 

Décio gostava de desafios, e começou a interessar-se pela história. Sabia, tanto quanto Sérgio, que não conseguiria entregar a história em menos de quatro semanas, pois também estava envolvido em outros projetos. Alguma coisa lhe disse que gostaria muito de caprichar naquele, e então propôs:

-Eu topo, mas só se você me deixar terminar os dois outros trabalhos antes, para que eu possa me dedicar inteiramente a este. Falta pouco, se eu trabalhar hoje à noite, poderei partir ainda esta semana.

Sérgio riu satisfeito, recostando-se na cadeira e cruzando as mãos sobre o colo.

-Eu sabia que você seria a pessoa certa! Mas... e as férias?

Décio riu, notando o tom de ironia na voz do chefe:

-Elas podem ficar para depois. 

-E quem você gostaria que o ajudasse no novo projeto?

Décio olhou-o muito sério, já se levantando para sair:

-Prefiro trabalhar sozinho, se não se importa. 

E Sérgio não se importava. Sabia que Décio era um escritor competentíssimo, e que tinha uma carreira brilhante pela frente, mas que ele não gostava muito de companhia. Sérgio sentiu um pouco de pena de Rafaela, que os olhava através da porta de vidro, ansiosa por ser chamada. Quando Décio abriu a porta, passando por ela sem despedir-se, Sérgio viu o olhar da moça ir parar nas tábuas corridas do chão, e ela suspirou profundamente. Rafaela trocou um olhar tristonho com o chefe, que encolheu os ombros, e voltou para sua sala.

Naquela mesma tarde, Décio ligou para Lana, avisando-a de que estaria ausente da cidade durante algum tempo. Ela estava acostumada às pequenas viagens do filho a trabalho, e não se incomodou:

-Tudo bem, filho. Precisa de alguma coisa?

-Não mãe. 

-E vai ficar quanto tempo fora?

-Algumas semanas, talvez três... ou quatro.

Ele percebeu o desconforto de Lana através de seu silêncio, e soube que ela queria dizer alguma coisa que o perturbaria; resolveu ajuda-la:

-O que foi, mãe?

-Não vai avisar ao seu pai?

Décio remexeu-se na poltrona. Há meses não falava com o pai, e raramente via seu meio-irmão, de quem fugia o mais que podia. Sentia-se estranho quando Brian estava por perto, olhando-o como se ele fosse alguma espécie de herói, pois não correspondia a admiração que o irmão sentia por ele.

-Não... por que deveria? Ele está ocupado com seu outro filho...

-Ah, Décio, isto soa tão imaturo! E Brian é um rapazinho tão simpático, e gosta de você. Ainda continuo achando que vocês deveriam se aproximar, quebrar o gelo... eles também são sua família!

-Depois eu penso nisso, mãe. Preciso desligar. 

-Vai virar a noite trabalhando outra vez?

Ele ergueu as sobrancelhas; mesmo através do telefone, Lana podia ler sua alma.

-É, vou sim... mas prometo que amanhã dormirei o dia todo. Tchau mãe, beijo.

E desligou, antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa.

A noite foi longa e um tanto barulhenta. Décio planejava mudar-se logo daquele lugar, encontrando um apartamento mais silencioso onde pudesse trabalhar com mais concentração. Mauro já tinha lhe oferecido ajuda para comprar um, mas ele recusara. Não queria dar nenhum motivo para que Patrícia o ofendesse novamente. Desde que começara a faculdade, nunca mais falara com ela, e nas poucas vezes em que encontrava o pai e/ou o irmão, dizia o mínimo necessário, escapando sempre que possível. Decidiu que assim que terminasse seu trabalho novo, começaria a procurar outro apartamento. E entregou-se ao trabalho, colocando uma música suave com fone de ouvido para abafar o barulho. 

Uma hora depois, viu o visor do telefone acender: era Rafaela. Pensou em não atender, mas mudou de ideia após o terceiro toque.

-E aí, sumido? Foi embora e nem se despediu! Que tal descer para tomar um drinque comigo? Estou no bar aqui em baixo, com alguns amigos.

-Oi, Rafaela. Estou trabalhando. Não posso, mas mesmo assim, obrigada.

Ele achou melhor não insistir para ele descer, pois sabia que quando Décio estava trabalhando, nada o convencia a parar. Sentiu-se uma tola.

-Tudo bem  então... tem certeza de que não precisa de ajuda? Ou de companhia? Eu estou logo aqui pertinho, e..

-Não, obrigada. Divirta-se. Beijo.

Ele desligou o telefone. Achou-se grosseiro, mas estava cansado das investidas de Rafaela. Tinham dormido juntos algumas vezes, e para ele, era tudo. Nunca fizera-lhe promessas ou a chamara de namorada. Ela aceitou as condições que ele impôs quando as coisas começaram a ficar mais quentes entre eles, ou seja, sem compromissos, e não tinha o direito de cobrar-lhe mais nada. Ela ficava choramingando com os amigos, pedindo-lhes que interferissem por ela junto a ele, e aquilo o irritava. 

Detestava coitadinhas. 

Foi até a cozinha e preparou um café, que bebeu preto, acompanhado de biscoitos de chocolate recheados – achou péssima a combinação, mas era o que tinha disponível em casa para comer. Depois, voltou ao trabalho e só parou ao terminar, por volta das quatro da manhã. Dormiu alguns minutos, e ao amanhecer, revisou todo o trabalho e colocou-o num e-mail que mandou para Sérgio, que logo respondeu, achando tudo ótimo.

Só então Décio tomou uma ducha e foi dormir de verdade.

Um dia depois, partiu de carro para a cidade de Bernardina. 

Adorava viajar sozinho, dirigindo. Costumava colocar uma música para tocar e enquanto dirigia, deixava que os pensamentos surgissem e desaparecessem. Era extremamente relaxante! Tinha biscoitos no porta-luvas e algumas latas de refrigerante em um cooler. A manhã estava linda, e era tudo o que ele precisava.

Sérgio dissera-lhe que Bernardina estaria no GPS, e após uma hora e trinta dirigindo, Décio chegou à entrada da cidade: havia uma placa desbotada: “Seja bem-vindo a Bernardina.” Ele diminuiu a velocidade, e olhou em volta: mato e árvores ao longo da estrada, algumas casas abandonadas (Sérgio não estava brincando) e outras em péssimo estado, e das janelas, alguns moradores observavam-no passar como se ele fosse um evento. Décio parou junto a um bar, saindo do carro e se espreguiçando; quando entrou, todos que lá estavam se calaram por alguns instantes, olhando-o, e retomaram a conversa em tom bem baixo. Décio pensou que aquela cena toda parecia coisa de filme. Enxugou a testa com a mão – estava calor, e passava das duas da tarde – e chegou junto ao balcão, onde um senhor aparentando sessenta e cinco anos aproximou-se para servi-lo:

-Boa tarde, o que vai ser?

-Boa tarde. Gostaria de um sanduíche de queijo quente e uma Coca-Cola, por favor.

-O queijo está em falta no momento, mas o sanduíche de mortadela com tomate é muito bom.

Décio, que detestava mortadela, declinou:

-Não, obrigado... o que mais você tem aí?

O homem apontou para uma pequena vitrine, onde alguns salgados de aparência duvidosa estavam expostos. Décio, que estava com fome, optou por um bolinho de salsicha, que não parecia tão velho, e comeu-o quase sem mastigar. Depois limpou a gordura com um guardanapo de papel, e bebendo a Coca-Cola com prazer, como se ela fosse capaz de limpar o seu sistema. Terminou-a, e pediu outra. O homem apontou para o outro salgado, mas Décio negou com a cabeça, agradecendo. 

-Aqui é quente, não é?

-É, e é sempre assim nesta época do ano. Mas o inverno pode ser bastante frio mesmo... você está de passagem? Viagem de férias?

Décio olhou o relógio, mal respondendo:

-Não... tem algum hotel por aqui?

Naquele momento, os outros homens, que tinham ouvido a conversa em silêncio, soltaram risinhos. O homem atrás do bar, limpando o balcão com um pano encardido, respondeu:

-Está brincando? Aqui não tem hotel. Aqui não tem cinema, shopping center, hospital. Aqui não tem nada, a não ser poeira.

Décio olhou-o, encarando-o por alguns segundos:

-Então eu estou frito. Preciso ficar aqui por algumas semanas. Sabe se tem alguma cidade próxima que...
-Esqueça, filho. As outras são assim também. Mas... tem a Dona Marta, que tem uma casinha vazia perto da estrada... quem sabe, ela aluga.

-E qual o telefone dela?

-Telefone dela? Ela não tem telefone, não senhor. Mas mora logo ali, depois da curva, numa casa rosa.

Décio agradeceu com a cabeça, dirigindo-se ao local indicado pelo homem, enquanto o sol forte fustigava sua pele. Chegando perto da casa, viu que as janelas da frente estavam abertas, e bateu palmas. Logo, uma cabeça branca, de feições agradáveis, apareceu à janela, e ficou olhando para ele, talvez esperando-o dizer o que desejava. Dona Marta aparentava ter mais de setenta anos, e tinha um rosto amigável. Ele pigarreou:

-A senhora é a Dona Marta?

-Sou sim.

-É que... preciso ficar uns dias na cidade. Não tem hotel, e me disseram no bar que a senhora tinha uma casa que podia alugar...

Ela ficou em silêncio, parecendo considerar a proposta do forasteiro. Depois, desapareceu, e segundos depois, abriu a porta da casa, fazendo sinal para que ele entrasse. Décio abriu o pequeno portão de ferro, e em três passos, estava na entrada da casa; quando olhou para dentro, notou a simplicidade e a organização do lugar. Havia paninhos de croché sobre as costas dos sofás, e um tapetinho redondo, também feito à mão, com pedaços de tecido colorido. Ele gostou, sentindo-se à vontade.

-O moço é quem?

Ele estendeu a mão, se apresentando:

-Décio, da cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro. Sou repórter da Revista Vórtice, já ouviu falar?

Ela negou com a cabeça. Fez sinal para que ele se sentasse:

-Quer água?

-Não, obrigada. Eu preciso saber se a senhora vai alugar a casa.

-O moço é muito ansioso, não é? Calma! Vamos nos conhecer primeiro. Sou Marta, e moro aqui há um bocado de tempo. Desde que nasci! (ela deu uma gargalhada). 

-Eu já disse, sou Décio, da revista...

-É, o senhor já disse... muito prazer.

-Muito prazer.

Fez-se um silêncio embaraçoso para ele, pois Marta não parava de fita-lo com seus olhinhos miúdos. 

Finalmente, ela disse:

-Vou alugar, o senhor parece boa gente. Mas... ela está fechada há muito tempo. E que mal lhe pergunte... o que um repórter está fazendo pelas bandas de cá?

Ele teve a impressão que ela já sabia a resposta, e que perguntar era apenas uma maneira de continuar a conversa. Mesmo assim, ele respondeu:

-Bem... estou aqui a trabalho. Vim fazer uma reportagem. Uma entrevista com Endora Damata. 

Ela concordou com a cabeça. Décio notou  a mudança nas feições dela, que se tornaram tensas.

-Perda de tempo, ela não recebe ninguém. Melhor assim. Se eu fosse o senhor, não ia para aquelas bandas... o lugar é assombrado. Ela saiu da cadeia há um mês. Já vieram outros antes de você, mas ela não falou com eles.

-Mesmo assim, eu vou tentar... ela vive sozinha?

-Não... a filha, que vivia lá na Europa com uma tia, veio para tomar conta dela depois que saiu da prisão. É uma moça muito bonita, mas bem quieta. Não fez amizade nenhuma com as moças daqui, quase nunca sai – a não ser quando precisa comprar alguma coisa. E mesmo assim, compra o que precisa e vai logo embora, sem conversar com ninguém. 

Décio logo notou que Dona Marta talvez pudesse saber de coisas que lhe seriam úteis. 

-A senhora disse que mora aqui desde sempre...

-Sim! E também meus pais e meus avós antes deles.

-Deve conhecer todo mundo por aqui.

-Claro que sim. E também sei de muitas histórias das famílias que vivem aqui, ou próximas.

Ela parecia orgulhar-se por estar bem informada. Para Décio, ela não passava de uma idosa que nada mais tinha a fazer a não ser tomar conta da vida alheia, o que poderia ser bastante útil para sua pesquisa. Abriu um sorriso, tentando estabelecer uma aproximação mais amigável de sua parte:

-A senhora sabe alguma coisa sobre... o crime?

Ela arregalou os olhos, e baixou o tom de voz:

-Sei sim... vou coar um café primeiro. Venha comigo.

Ele a seguiu até a cozinha, e observou-a lavar o coador de pano, enchendo-o de pó. Colocou a água para ferver, e então dispôs alguns biscoitos caseiros em um prato. Enquanto a água fervia, ela fez sinal para que ele se sentasse á mesa, coberta por uma toalha plástica de xadrez azul. Décio enxugou o suor da testa com as costas da mão, esperando ansiosamente para ouvir a história. Sacou do bolso um pequeno gravador:

-A senhora se importa se eu gravar a nossa conversa?

Marta olhou o aparelhinho desconfiada.

-E só para que eu possa lembrar-me mais tarde, e estudar os fatos. Por favor.

Ela consentiu com um aceno de cabeça, mas pareceu perder a naturalidade. A chaleira começou a apitar, e ela foi coar o café, que espalhou um cheiro delicioso pela casa. Décio tentou lembrar-se da última vez que tomara um café realmente caseiro e fresco, e não de garrafa térmica. Ela serviu duas canecas de ágata, empurrando o prato de biscoitos na direção dele.

-Bem... Eu me lembro como tudo começou, há cerca de quarenta e cinco anos... Endora era uma moça de cidade vizinha, filha de fazendeiros. Imagine que nós chegamos a frequentar a escola juntas... mas não éramos amigas. 

Décio percebeu um certo ressentimento na voz de Marta. Ela continuou sua história:

-A família dela tinha certa pose, mas estavam quase falidos, quando ela, muito bonita, conquistou a atenção do menino da família Damata. Cícero era o nome dele... os Damata eram uma família antiga aqui, muito ricos. Ninguém sabe calcular a fortuna deles, donos de muitas fazendas de leite, de corte, e plantações de café. Aconteceu durante uma quer messe... ele botou os olhos nela e cismou que se casaria com ela. Ela, por sua vez, apesar de não estar tão apaixonada quanto ele, casou pela família que necessitava de ajuda financeira. A fazenda dos pais levantou logo assim que se casaram, pois os Damata  a arrendaram e investiram muito dinheiro. Mas dizem que a família de Endora confiou demais nos Damata, e acabou perdendo tudo depois de assinar uns documentos sem ler direito. 

Marta tomou um gole de café, os olhos perdidos em alguma fenda do passado.

-Então a família de Endora perdeu a fazenda que tinham ao confiarem cegamente na família Damata?

-Isso mesmo. E Endora ficou furiosa... quis reaver a posse dos pais, exigiu que Cícero devolvesse a eles o que tinha tomado, mas ele se recusou; colocou os dois para morar em uma casinha dentro da própria fazenda, como se fossem empregados dele. O pai de Endora pegou a doença ruim e morreu uns meses depois. Dizem que foi de desgosto. A mãe de Endora foi servir dentro da casa grande, como empregada. 

-Nossa... empregada da própria família da filha?

-Foi assim. Naquela época, Endora engravidou. Não sei o que é verdade a partir daí... dizem que 
Cícero ‘pegou’ ela de gracinha com um dos capatazes da fazenda, e mandou matar o cabra. Não sabia então se o filho que ela esperava era dele ou do outro. Quando o menino nasceu, mandou leva-lo para longe, e até hoje não se sabe o que foi feito dele. Uns dizem que mandou afogar no rio, outros que colocou num orfanato e o menino foi adotado por um casal de americanos. 

-Hum...hum... que história terrível.

-Daí ele passou a surrar a pobre. O que restava de esperança de os dois se entenderem acabou ali. Os sogros ajudavam Cícero, pois eram gente tão ruim quanto ele. A mãe de Endora morreu de uma queda na escada, dentro de casa, mas dizem que a queda não foi acidental... mas quem vai saber? 

Ninguém nunca soube ao certo o que acontecia dentro daquela casa.

Ela pareceu ficar nervosa de repente, torcendo as mãos sobre a mesa. Décio pegou um biscoito, esperando que marta continuasse sua história.

-E então, o que aconteceu?

-É aí que as coisas ficam misteriosas... dizem que Endora fez trato com o Coisa-ruim. Ela engravidou de novo, e dizem que o pai... 

Décio notou, divertido,  o tom de segredo na voz dela, que baixou o tom:

-O pai da menina... era o próprio Coisa-ruim. E então ela teve a menina, Sophie. Escolheu o nome de uma revista estrangeira, dizem...

-E depois?

-Cícero Damata passou a bater mais ainda nela. E ameaçava matar a menina, ou manda-la para longe, como fizera com o outro. Pelo menos, foi isso que ela contou no tribunal. Até que um dia de manhã, a família toda apareceu morta. Envenenada: Cícero e os pais. E mais dois primos  e as esposas, que estavam de passagem, visitando. Sete pessoas! Só sobraram Endora e Sophie. A polícia investigou e encontrou veneno de rato na gaveta de cabeceira dela. Daí o resto todo mundo já sabe: Endora foi condenada à 25 anos de prisão, e a filha foi criada por uma tia de segundo grau, irmã da mãe de Endora, no estrangeiro. Mas dizem que quem matou não foi ela não...

-Deixe-me adivinhar: foi o Coisa-ruim!

Ela concordou com a cabeça, fazendo o sinal da cruz.

Décio olhou pela janela, e viu que o sol forte já estava se pondo. Desligou o gravador, agradecendo a hospitalidade e também a história.

-Bem... obrigada por me contar, dona Marta. Mas agora eu preciso ir... onde fica a casa? E é claro, vou pagar adiantado. Quanto é?

Marta disse o valor, que ele tirou da carteira e entregou a ela. Depois, os dois saíram pela rua, caminhando lado a lado, observados pelas pessoas que os espiavam das janelas das casas, portas de bares e calçadas. Chegaram a uma casa bem pequena, no final de uma rua sem saída, e ela abriu a porta, entregando as chaves a ele entrando na casa e abrindo as janelas para arejá-la.

Décio entrou, e viu que tratava-se de uma casa bem humilde, paredes caiadas, com piso de cimento queimado pintado de amarelo, constando de uma saleta, quarto de dormir com cama e mesa de cabeceira (não havia armário de roupas, apenas um tosco cabide de madeira em um dos cantos, preso à parede), uma cozinha mínima com um fogareiro de duas bocas, pia, filtro de barro, uma mesinha e um banquinho. O banheiro, com piso de cimento, ficava após uma portinha nos fundos da cozinha, e o teto era de telhas, sem forro. Havia um vaso sanitário, uma pia de canto e um chuveiro. Nada de box. Décio agradeceu, e assim que Marta saiu, começou a fazer suas anotações no laptop. As últimas cores da tarde entravam pela janela. 

De repente, ele sentiu-se observado, e erguendo os olhos, deu com os rostos de duas crianças, um menino e uma menina, debruçados em sua janela, calmamente observando tudo o que ele fazia. Os dois riram quando Décio olhou para eles, e saíram correndo. Ele se levantou e fechou a janela.







3 comentários:

  1. Meus sais!!!!!!!! É suspense pra mais de metro, bem como eu gosto.
    Naum demora Ana, pra continuar hehehe!!

    Bacios

    ResponderExcluir
  2. Ana... presta atenção.... tem algum icone que eu aperto aqui e ache o restante. Pelo amor!!

    Isso tem q virar filme pq vi toda a cena. Eu quero eles em um filme.
    Mistério e suspense que eu amo.
    Poe hoje a terceira Parte por favor!!bjs

    ResponderExcluir
  3. Ana, estou curiosa e ansiosa, pelo suspense que criou!
    Abraços carinhosos
    Maria Teresa

    ResponderExcluir

Obrigada por visitar-me. Adoraria saber sua opinião. Por favor, deixe seu comentário.

A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...