quinta-feira, 9 de junho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO VIII







O estômago de Décio revirou-se ao avistar o irmão. Brian estava com os cabelos loiros e cacheados compridos e revoltos, e um tanto magro. Suas roupas – uma camiseta marrom com algo estampado na frente e jeans rasgados – pareciam não ser trocadas há algum tempo. Aos pés dele, uma mochila grande e surrada. O relógio de pulso parecia grande demais para seu braço fino. Décio notou também os piercings que ele fizera nas orelhas e até no nariz, e sentiu repulsa. Por que uma criatura que tinha condições de vestir-se bem escolheria se vestir daquela forma? Décio grunhiu:

-Como você me achou? Quem disse que eu estava aqui?

Brian levantou-se, limpando a calça com as mãos e estendendo a mão para Décio:

-Bom dia pra você também, irmão. 

Décio ignorou o gesto de Brian:

-O que você quer?

-Bem... estou de férias e decidi dar um rolê por aí.

-Pois eu não estou de férias, estou aqui a trabalho e não posso receber ninguém. Seus pais sabem que você está aqui?

Brian negou com a cabeça, o que fez com que Décio sacasse o celular do bolso com raiva, discando o número da mãe. Após alguns instantes, Brian ouviu o irmão dizer:

-Mãe, como é que você deu meu endereço ao Brian? Não sabe que estou aqui trabalhando? Como não foi você?! Sim, ele está aqui na minha frente... e parece que não toma banho há dias. Não, mãe, eu... escute, por favor. Só quero que você ligue para o papai e a Patrícia avisando que ele está comigo aqui, e que estará em casa em breve. Não, mãe, já falei que eu não posso!

Dizendo aquilo, Décio guardou o celular, irritado. Brian arriscou:

-Eu ia avisar a eles eu mesmo. E não foi a Lana que me deu seu endereço, foi a Rafaela, sua colega de trabalho. Aquela mina que você andou pegando há uns tempos.

-Eu sei quem ela é... aquela intrometida dos infernos!

Dizendo aquilo, Décio abriu a porta da casa e entrou, seguido pelo irmão, que olhava em volta. Brian comentou:

-Hum... essa casa não é exatamente compatível com seus padrões, não é, maninho? 

-Combina mais com você, concordo. Mesmo assim, você nem esquente lugar no sofá, pois vai embora hoje mesmo. Cadê seu celular? Todo mundo estava procurando você.

-Desliguei. Não queria ser achado.

Décio percebeu que o menino parecia um tanto angustiado, e decidiu pegar mais leve com ele. Abriu uma janela e a porta dos fundos, deixando o ar circular pela casa abafada. Pegou uma toalha e foi até o banheiro. Brian não o seguiu; permaneceu sentado no sofá enquanto o irmão tomava banho e mudava de roupa. Quando Décio entrou na pequena sala, minutos depois, jogou uma toalha sobre o irmão:

-Aproveite e tome um banho também, pois seu cheiro está empesteando a casa toda.

 Brian agarrou a toalha, deixando a mochila sobre o sofá, e fez como o irmão mandara. Enquanto isso, sozinho na sala de estar, Décio achou melhor revistar a mochila do irmão, e não demorou para encontrar, entre roupas usadas e notas de dinheiro amassadas, o celular do irmão e alguns cigarros de maconha. Encolheu os ombros; afinal, não era problema dele. Naquele instante, ouviu alguém batendo palmas do lado de fora, e ao olhar pela janela, deparou com Marta, a dona da casa que ele alugara. A caminho da porta, ele pensou: “Só me faltava essa...”
Tentou ser gentil; afinal, ela não tinha culpa.

-Bom dia, Marta. Posso ajudar em alguma coisa?

Ela se aproximou, sorrindo:

-É que não vi você ontem, e fiquei preocupada.

Ele percebeu a curiosidade dela, e achou melhor não dizer onde tinha passado a noite; mudou de assunto:

-Mas estou de volta agora, e estou bem. Obrigada pela preocupação. 

Ela esticou o pescoço, olhando para dentro da sala:

-O menino achou você?

Brian saía do banheiro naquele instante, e acenou para ela:

-Achei sim, Marta e obrigada!

Ela acenou de volta, e quando notou que Décio não daria mais explicações, despediu-se dizendo:

-Se estiverem com fome, são meus convidados para o almoço. Eu fiz torta de palmito e macarronada.
Brian já ia aceitar o convite, mas Décio, sabendo que tudo o que Marta queria era saber onde ele estivera para poder fofocar com a vizinhança, agradeceu e disse:

-Obrigada, Marta, mas eu tenho macarrão instantâneo e batata frita de pacotinho. Já ia preparar.

Brian pensou na comida horrível que o irmão comia, e sentiu-se desanimado; mas nada disse. Marta foi embora, e Décio foi preparar o macarrão instantâneo. Brian seguiu-o até a cozinha, sentando-se à pequena mesa.

-Calor dos infernos, esse lugar... tomei banho e já estou suado.

Décio jogou água quente nos copinhos de Cup Noodles, empurrando um em direção ao irmão, sentando-se de frente para ele, e começou a comer, despejando batata palha sobre o macarrão. A batata espalhou-se sobre o tampo da mesa, e Brian começou a comê-la aos poucos. Ficaram em silêncio durante algum tempo, enquanto comiam. Tomaram um pouco de Coca-Cola. Brian tentou:

-Escuta, Décio, eu sei que você não gosta de mim...

Décio sentiu a testa franzir, mas não olhou para o irmão. Aquela afirmação, ele sentiu, não era assim tão verdadeira. Ele não gostava é do que Brian fazia ele se lembrar: o pai abandonando a ele e à mãe, indo viver com outra mulher, e só aparecendo esporadicamente; a frieza de Patrícia, que marcou sua relação com o pai com ciúmes e indiferença em relação a ele. Depois, quando Brian nasceu, a presença do pai – que já era quase nenhuma – tornou-se ainda menos frequente. Mas Décio não disse nada. Brian continuou, parecendo estar pisando devagar, como quem pisa em um campo minado:

-É que se eu fosse para casa de algum amigo, a mãe deles ia telefonar para a minha mãe, e eu não quero ver a cara dela tão cedo.

Brian sabia o quanto Patrícia sabia ser uma cadela quando queria, e perguntou:

-Por que? O que houve?

Brian largou o garfo e a comida que mal tinha tocado. 

-Ela está saindo com um cara. Peguei os dois no centro da cidade, ela no carro dele, os dois se beijando. Eu fiquei sem chão, o pai não merece isso...

-Saiba que ‘o pai’ fez a mesma coisa com a minha mãe. Portanto, merece, sim.

Brian olhou para ele, o olhar cheio de perguntas:

-Ninguém nunca me conta essa história. Então... nosso pai ‘chifrou’ a sua mãe com a minha?

-Exatamente. 

Brian deixou que seu olhar se perdesse na paisagem à janela.

-Mas... Lana não tem nenhuma raiva de mim, mesmo sabendo que sou filho da amante do ex-marido dela! Eu acho que se eu fosse ela, eu me odiaria. Agora entendo...

Décio, terminando de comer, empurrou o macarrão que o irmão deixara em direção a ele novamente, fazendo um gesto para que ele o comesse, e ele obedeceu:

-Entende o quê?

-Por que você me detesta.

Décio teve pena do irmão, e sentiu que seu coração era como uma pedra de gelo que estava começando a derreter. Lana sempre lhe dizia que Brian nutria por ele grande admiração, e que já tinha dito a ela que queria ser jornalista, como o irmão. Toda a dificuldade do relacionamento deles vinha de sua parte, nunca da parte de Brian. Décio amansou um pouco mais o tom de voz:

-Eu não odeio você, Brian. Nunca foi assim... mas eu tenho que ser sincero: detesto a Patrícia. Não suporto nem ficar perto dela. Ela sempre me tratou muito mal, e me afastou do meu pai. Ela roubou minha família. Desculpe, sei que é sua mãe, mas é assim que eu me sinto.

-Bem, não tenho culpa de ser filho dela. Queria mais ser filho da Lana, seu irmão por inteiro. 

Aquelas palavras penetraram fundo no coração de Décio, acostumado a manter-se sempre à salvo de sentimentalismos. Ele levantou-se da mesa, deu uns tapinhas desajeitados no ombro de Brian e levou os copinhos – agora, ambos vazios – para a lixeira da cozinha. Quando voltou, decidiu estabelecer algumas regras:

-Ok, você pode ficar. Mas se – e somente se – seus pais permitirem. E com a condição de não ficar no meu pé, nem me atrapalhar quando eu estiver trabalhando. Agora pegue o celular e telefone para eles. 

Brian animou-se:

-E quanto tempo você vai ficar aqui?

-Não sei. O tempo que for preciso para terminar meu trabalho. Algumas semanas, talvez. 

-A Rafaela me contou sobre o que é. Parece legal, maneiro mesmo!

Décio pensou no quanto gostaria de estrangular Rafaela, mas não disse nada.

-E você já entrevistou a velha, quero dizer, a tal Endora matadora?

-Já, e passei a noite na casa... 

-Conheceu a filha dela?

Décio pensou no quanto Brian e Rafaela tinham se conhecido para que o irmão soubesse tantas coisas.

-Conheci.

-É gata?

Ele riu.

-É. Muito.

-Pegou?

-Eu estou começando a achar que você pegou a Rafaela... ou melhor, ela pegou você, já que é bem mais velha. 

Brian deu uma gargalhada, bem mais relaxado.

-Não, não peguei ela não, nem ela me pegou, mas notei que ela adora falar de você e de tudo que diz respeito a você. Sai fácil feito água da moringa.  Mas fala aí, pegou a moça?
Décio não gostava de discutir sobre as mulheres que passavam sobre sua vida, e mudou de assunto:

-Vai ligar para a Patrícia. Agora. 

Enquanto Brian falava com a mãe, Décio conseguia ouvir os gritos de protestos e os choramingos dela pelo telefone. Por trás, a voz do pai dizia que ela se acalmasse. Décio ouviu, e Brian afastou o telefone do ouvido naquele momento: “Venha já para casa!”  Mas Brian respondeu:

-Você não manda mais em mim,, mãe. Já tenho quase dezessete anos, e posso cuidar de mim mesmo. Você tem... “outros assuntos” com que se preocupar. Além disso, o pai disse que eu posso ficar, e eu estou com o meu irmão mais velho. Quer saber? Vá catar coquinhos. Voltarei quando eu quiser. 
E ele desligou o celular, olhando para o irmão em busca de aprovação. Décio levou a mochila dele para o segundo quarto, junto à cozinha, mas quando Brian viu que ele não tinha janela, disse que ia dormir no sofá. Assim, ele deitou-se no sofá, caindo no sono quase que imediatamente, enquanto Décio, abrindo seu computador, começou a ouvir as gravações da entrevista com o fone de ouvido e fazer anotações. 

A tarde passou daquela maneira, e o trabalho avançou bastante. Após algumas horas, Décio ouviu seu estômago roncar, e achou melhor arranjar alguma comida decente no mercadinho da cidade, já que tinha companhia. Deixou o irmão dormindo, e com o sol já se pondo, pegou o carro e foi até o mercadinho, onde comprou algumas frutas, biscoitos, macarrão, queijo, arroz, café, açúcar, leite em pó, pão, chocolate e alguns legumes. Também pegou algumas salsichas e um pedaço de frango. Chegou em casa e notou que o irmão ainda dormia. Guardou as compras e ia acordá-lo para lanchar. 

Foi quando seu celular tocou. Era Sophie. A voz dela soou como uma ordem, mas Décio já estava se acostumando com a maneira de falar das mulheres daquela família:

-Ela quer que você volte amanhã. 

-Ela está melhor?

-Sim... mas está de cama. 

Ele percebeu um leve tremor na voz dela. Queria poder segurar sua mão, abraçá-la e dizer que estaria com ela sempre que precisasse, e ele achou aquela vontade muito estranha. 

-Quer que eu... quer que eu leve alguma coisa amanhã?

Ela ficou muda, pensando no que ele queria dizer com aquilo, mas respondeu:

-Não, obrigada, temos tudo aqui na fazenda, e se eu precisar, mando um dos empregados trazer.

Ele sentiu que a dispensa dela estava cheia de orgulho, e teve a intenção de colocá-lo ‘em seu lugar,’ ou no lugar onde ela achava que ele deveria ficar. Ela desligou sem despedir-se, deixando-o na linha muda. Esquecera-se de perguntar se poderia levar Brian com ele. 


(continua)












Um comentário:

  1. QUE BABADO HEIN. AGORA BRIAN NA COLA.
    GOSTEI DE VER ELE JÁ GOSTANDO DO IRMÃO.

    MUITO LEGAL ANA.
    BJS.

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