terça-feira, 2 de agosto de 2016

A RESENHA DO MAL – Capítulo XVII - FINAL








Do outro lado do mundo, em uma cidade africana conturbada e paupérrima na qual as pessoas viviam em meio a guerras e violência, Sophie começou sua nova vida. Apenas escreveu aos tios na França comunicando-os de sua decisão, e eles responderam-lhe o e-mail dizendo-se felizes por ela. Depois daquilo, nunca mais se comunicaram.

 No início, ela mal conseguia olhar para tantas crianças famintas e sem esperanças, e pensou que sua infância, apesar de tudo, tinha sido bem melhor que a delas. Depois, ela foi se acostumando e sempre ajudava as que estavam perto. Sabia que se tentasse enviar caminhões com suprimentos ou remédios, eles seriam interceptados pelas milícias e seu conteúdo, roubado. Assim, Sophie passou a comprar e distribuir, ela mesma, toda a comida e remédios que podia em um jipe velho que ela adquirira. Muitas vezes, corria risco de morte, mas ela não tinha medo. Morrer, ela pensava, era o menor dos males da vida. E ninguém se importaria ou sentiria saudades dela, portanto, Sophie não se preocupava. Certa vez, ao ter seu carro interceptado por um homem negro armado com um fuzil, Sophie teve uma reação inesperada: quando ele mandou que seus homens começassem a descarregar o carro, ela pôs-se entre eles, impedindo-o, e dizendo que se quisesse fazê-lo, teria que passar sobre seu corpo morto. Ela mesma não soube explicar o motivo pelo qual aquele homem não a fuzilou ali mesmo! Imediatamente, ele fez sinal para que os homens se afastassem e Sophie prosseguiu viagem. Algo nos olhos dela comoveu-o de alguma forma. Quem sabe, a coragem daquela mulher tão bela, que poderia estar em qualquer parte do mundo levando sua vida, mas que preferia estar ali para ajudar a cuidar daquelas pessoas.

Sophie tinha se tornado uma mulher muito rica após a  morte da mãe e o recebimento da herança de família. Mesmo assim, gastava tanto que seus recursos se esgotavam rapidamente. Aplicava quase todo o seu salário na compra de medicamentos para as crianças que encontrava nos hospitais. 
E foi justamente em um hospital, em meio à morte, doenças, choros e muita infelicidade, que ela conheceu Zaki. Ele movia-se rapidamente entre camas e tubos de soro, usando um jaleco branco encardido. Fazia parte dos Médicos Sem Fronteiras, atuando em seu próprio país. Zaki era negro como ébano, alto e esguio como os membros da tribo a qual pertencia. Sophie apaixonou-se por ele em questão de poucas horas, e foi correspondida ao mesmo tempo. 

A história de Zaki era muito triste, e ele contou-a para ela enquanto estavam sentados à mesa de um bar coberto de poeira vermelha, diante de dois copos de gim, horas após se conhecerem:

- Quando eu tinha oito anos, nossa casa foi invadida pela milícia. Meus dois irmãos mais novos foram mortos, pois eram pequenos demais para que eles os levassem. Durante horas, eu e meus pais passamos pelas mais hediondas formas de tortura e humilhação. Eu não conseguia entender o porquê de minha família estar sendo dizimada daquela forma. Mesmo tendo crescido sempre em meio ao medo, eu preferia acreditar que aquelas histórias horríveis que ouvíamos todos os dias diziam respeito apenas às outras pessoas, nossos vizinhos e conhecidos, até que nós nos tornamos protagonistas de uma delas. 
Minha mãe foi estuprada várias vezes, diante de mim e de meu pai. Ela não resistiu e acabou morrendo. 
Naquela noite, na escuridão do quarto onde estávamos presos, eu escutava o choro e os gemidos de dor de meu pai, e não sabia o que fazer para aliviá-los, já que eu mesmo estava cheio de dor e de medo, e também de ódio pelos homens que fizeram aquelas coisas à minha mãe, irmãos e também a nós. Foi a madrugada mais apavorante e triste de toda a minha vida; depois daquilo, entendi que eu seria capaz de passar por qualquer coisa – qualquer uma – e sobreviver. Eu nem suspeitava o que estava para acontecer na manhã seguinte...

Zaki fechou os olhos antes de continuar, e Sophie colocou a mão sobre a dele. Ele deixou-a ficar. O contraste de sua mão pequena e tão branca sobre a mão tão grande e negra de Zaki pareceu-lhes um arranjo perfeito. Zaki continuou:

-De manhã cedo, eles nos arrastaram para fora, e puseram fogo na casa. Os corpos de meus irmãos e de minha mãe ficaram lá dentro, e eu chorava, pensando que talvez pudessem estar vivos ainda, mas meu pai me consolava, assegurando-me de que eles nada mais podiam sentir. Olhei para o rosto do meu pai, e notei que faltava alguma coisa; sua alma não estava mais lá. Ele tinha parado de chorar, e a secura de seus olhos vermelhos denotavam indiferença. Os homens nos cercaram, e entregaram-me um fuzil, ensinando-me como usá-lo. Quando perceberam que eu tinha aprendido a atirar, mandaram que eu atirasse em meu pai; disseram-me que se eu não o fizesse, teria que assistir enquanto eles o torturavam e cortavam seus pedaços ainda vivo. Olhei para meu pai: ele apenas assentiu com a cabeça, fechando os olhos. Eu sabia que se eu pensasse muito, não teria coragem de fazer o que tinha que fazer, e então eu atirei. Depois daquilo, eles me sequestraram e me obrigaram a segui-los e a tornar-me um deles.
Nas nossas viagens, eu matei muitas pessoas. Atirei em crianças e em mulheres, mas jamais consegui cometer estupro. Eu fazia o que tinha que fazer porque era a única maneira de sobreviver. Eu sentia medo o tempo todo, e eles sabiam que de alguma forma, eu não era um deles, e então me vigiavam o tempo todo.
Até que um dia, após uma noite de muita comida e bebida alcoólica, eles dormiram pesadamente. Eu passara a noite toda fingindo que estava bebendo também, pois eu tinha um plano: matar todos eles. Assim, quando eles finalmente se cansaram e dormiram de tanta bebida, eu peguei uma metralhadora e matei-os todos enquanto dormiam. Ninguém sobreviveu. 

Ele olhou para Sophie. A mão dela ainda estava sobre a dele, encorajando-o:

-Eu nunca contei essa história a ninguém. Não sei por que eu a estou contando a você, Sophie. 

Ela disse:

-Termine sua história, e logo saberá por que. 

- Passei a perambular pelas ruas da cidade, apavorado e doente, onde passei fome e sede durante dias até que uma equipe dos Médicos Sem Fronteiras me resgatou. Eu tinha quinze anos então. Eles me colocaram em um hospital e trataram de minha desnutrição e dos meus ferimentos. Eu cresci naquele lugar, e logo manifestei meu desejo em ser médico como eles. Mark, um médico americano negro cujo pai tinha uma grande fortuna, escreveu à sua família, e eles me acolheram em sua casa nos Estados Unidos, onde financiaram meus estudos e me hospedaram como se eu fosse filho deles. Pela primeira vez na vida, eu me senti seguro e protegido. Meu destino mudou desde então. Enquanto morei nos Estados Unidos, compreendi que era possível me tornar feliz e resgatar a minha alma de todas as atrocidades que tinha sido forçado a cometer. 

-Você nunca falou com eles – seus pais americanos – sobre elas, não é?

-Nunca, pois tive medo de que me rejeitassem. Eu tinha planos de terminar os estudos e permanecer nos Estados Unidos durante algum tempo, e só então voltar à África. Era como se eu estivesse tirando férias. Porém, dois meses depois que terminei a faculdade, Mark foi morto, e eu voltei à África com os pais dele. Não sei bem o motivo, mas eles decidiram me adotar depois daquilo. Sabe, eu tive muita sorte. 

-E onde eles estão hoje?

-Voltaram os Estados Unidos, e vivem na Flórida. Sempre nos falamos, e uma vez por ano, vou visita-los. Bem, esta é minha história. Qual é a sua?

Após ouvir a história da vida de Zaki, Sophie compreendeu o motivo de sua atração por ele: eram almas gêmeas. Ambos tinham sofrido muito quando ainda eram crianças, e tinham cometido atrocidades em nome da própria dignidade. Na África, enquanto ajudavam outras pessoas, tinham a chance de lavar suas almas e expulsar os fantasmas que os perseguiam. Sophie se deu conta de que desde que começara a ajudar outras pessoas, sua vida deixara de ser sempre tão pesada. Já não tinha mais pesadelos, e os fantasmas da família Damata literalmente não a perseguiam mais. 

Depois que Zaki ouviu a história dela, eles se beijaram, e tudo foi perfeito. Casaram-se meses depois. Com a herança de Sophie, fundaram um centro de reabilitação para crianças amputadas. Também compraram uma pequena casa na qual Sophie deu à luz ao filho deles, que foi batizado como Taú em homenagem ao pai de Zaki. Ela continuou seu trabalho como fotógrafa, e recebeu muitos prêmios.

Um ano e meio após todos aqueles acontecimentos, Décio finalmente lançou seu livro, “A Resenha do Mal,” que tornou-se um best-seller. Poucas horas antes da noite de autógrafos, enquanto Rafaela se arrumava no quarto e ele a aguardava na sala, Brian aproximou-se dele tirando do bolso do terno uma revista dobrada:

-Achei que você gostaria de saber, mano.

Décio olhou a capa, na qual viu Sophie e sua nova família em uma reportagem. Ela acabara de vencer o prêmio Pulitzer de fotografia. 




FIM






















4 comentários:

  1. Olá Anita!
    Até senti pena que tivesse terminado, mas estava na altura certa, com todos os personagens "arrumados."
    Gostei muito, uma obra cheia de emoções, maldade,ódio, amores e desamores, e até o retrato da guerra esse monstro hediondo que parece ser eterno.
    Parabéns, pela sua sensibilidade e competência.
    Beijinho.
    Dilita

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  2. a debater-me com a egoísta vontade de querer mais.

    gosto, Ana, parece-me justo e necessário que o manifeste, para além da presença constante. admiro, bastante, a sua capacidade de surpreender e cativar, pela versatilidade, pela imaginação/criatividade e pelas emoções, tanto na construção dos personagens como na construção da própria história. parabéns!

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  3. Cara amiga Ana, você sabe conduzir uma estória. Um abraço daqui do sul do Brasil. Tenhas um ótimo dia.

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  4. Boa noite, Ana, amei a condução e o desfecho da história, muito emocionante!
    Se pra tudo há uma razão, quando passamos por tantas provações, é mesmo para nos preparar para o melhor, que você soube conduzir perfeitamente.
    Gratidão, Ana, amei, felizes dias, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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