segunda-feira, 21 de novembro de 2016

MINHA VIDA, SUA VIDA – CAPÍTULO III






Mas a velha história da mulher que viu sua vida transformar-se ao mudar sua aparência e assumir uma atitude mais positiva, não acontecia para Karen. Um mês após a sua transformação, percorrendo os endereços dos anúncios de jornal, ela não conseguira um emprego. Participara de alguns processos de seleção, mas era sempre excluída no final. Karen tentava manter-se positiva, pensando nas coisas que o chefe lhe dissera, mas a cada dia, via sua esperança morrendo diante de outra negativa. Ainda dispunha de bastante dinheiro, mas o futuro e o que ele poderia trazer-lhe, caso não conseguisse outra colocação, faziam com que ela varasse noites em claro. Estava ficando com olheiras, emagrecera, e frequentemente, dormia durante as viagens de trem em busca de emprego e acabava perdendo a parada. Karen estava à beira do desespero.

Para piorar ainda mais a situação, a proprietária estava pedindo o apartamento de volta, pois ia vende-lo. Após dez anos vivendo ali, e sem conhecer outro lugar que pudesse chamar de lar, Karen sentia-se deprimida e sem expectativas. Em breve, não teria mais onde morar. 

A proprietária dera-lhe um prazo de três meses, que Karen conseguiu esticar para quatro, para que ela deixasse o apartamento. Disse-lhe que lamentava, mas precisava do dinheiro para pagar dívidas. 

Numa manhã de inverno, Karen saiu cedo para comprar o jornal e escolher alguns anúncios. Sentou-se em um banco de parque, pois ficar em casa deixava-a ainda mais deprimida. Sabia que para conseguir um emprego precisava manter uma atitude confiante e positiva, mas não conseguia. As moças que participavam dos processos de seleção eram mais jovens do que ela, a maioria tinha feito faculdade e eram mais qualificadas, além de demonstrarem mais confiança. 

Karen conversara com algumas delas, e descobriu que a maioria morava com os pais ainda, e que apesar de precisarem muito do emprego, não estavam desesperadas. Nenhuma delas estava a ponto de ser despejada, e nenhuma delas tinha dito ser completamente só no mundo. Karen resolveu inventar um passado, e dizia a elas sobre si mesma quase a mesma que escutava: que vivia com os pais, que eram abastados, mas gostaria de ter sua independência financeira. Mentia também sobre sua educação formal, dizendo que tinha diploma de administradora de empresas, mas durante as entrevistas, assim que descobriam que ela não tinha cursado faculdade, ela era descartada. 

Finalmente, ela conseguiu uma colocação em uma lanchonete, para trabalhar na cozinha. Era um emprego totalmente diferente do que ela estava acostumada, e o primeiro dia foi extremamente difícil. Era uma cadeia de lanchonetes famosa, e seu trabalho consistia em ler as comandas e preparar as bandejas para servir. Muitas vezes, tinha que substituir alguém da cozinha, e ajudar a preparar os lanches em horários de pico. O salário era menos da metade do que ela estava acostumada a receber, mas pelo menos, pagava o aluguel. Mas Karen sabia que não conseguiria sobreviver sozinha com um salário daqueles, pois após pagar o aluguel, não sobrava quase nada para as demais despesas. 

Todos os dias, ela voltava para casa exausta, desanimada e cheirando a gordura, e embora trabalhasse quase o dia todo – incluindo finais de semana e feriados -  até tarde da noite, Karen tinha ainda algumas manhãs livres nas quais continuava a procurar outro emprego. Dois meses se passaram, e ela ainda não tinha conseguido nada, a não ser outros empregos como aquele. A proprietária do apartamento concordara, após muita insistência, em dar a ela mais um mês. Mas deixara claro que após o prazo estipulado, seria obrigada a força-la a deixar o apartamento, caso não saísse de bom grado. 

Quatro meses já haviam passado desde que Karen fora formalmente notificada, e ela nem tinha mais um contrato de locação: estava vivendo ali de favor, e pagando um aluguel mais alto do que antes.

O emprego na lanchonete era desestimulante e muito cansativo para alguém como ela, acostumada a trabalhar em um escritório bonito e receber um bom salário. Havia constantemente brigas entre os funcionários, que disputavam o espaço uns com os outros e tentavam desabonar os colegas diante do gerente como se pudessem, através daquilo, tornarem-se presidentes da empresa, o que não era verdade; aquele era um ‘dead-end job’, e Karen sabia disso. O clima era quase insuportável, mas ela, acostumada a ocupar espaços pequenos e ser discreta, conseguia levar sem envolver-se nas contendas do dia a dia e sem participar das fofocas. Era considerada orgulhosa e ‘metida’ pelas outras colegas, mas Karen não se importava, mesmo sabendo que falavam dela pelas costas. Mas todos os dias, após o expediente, ela sentia como se um enorme peso estivesse sobre seus ombros, e chegava em casa sentindo-se fraca, cansada e com dor de cabeça. 

Tinha apenas quinze dias para deixar o apartamento, e começou a procurar outro lugar para ficar, mas todos os aluguéis de apartamentos como o dela custavam o dobro, e ela descobriu que o seu não era tão caro porque o contrato era antigo. Karen não tinha condições de alugar outro conjugado como aquele, e então ela começou a visitar lugares bem piores em bairros bem mais pobres e distantes. Achou algumas vagas em pensão, mas os quartos eram divididos com outras pessoas, o que a desagradou. Desanimada e com muito medo, Karen passava as noites em claro, olhando para as paredes conhecidas de seu velho abrigo, sabendo que em breve não teria mais sua privacidade. 

Certa noite, ela abriu o laptop e acessou seu blog. Escreveu uma longa carta, contando toda a sua história, a verdadeira história. Falou de sua orfandade, de sua vida solitária, do escritório de onde tinha sido demitida, da sua situação atual e do medo constante que sentia. Karen tinha um pseudônimo: Lana. Era através dele que ela publicava seus poemas sem precisar identificar-se. 

Após escrever sua história, Karen ficou olhando para a tela do computador durante um longo tempo, antes de pressionar o botão de ‘enviar.’ Não sabia o que aquele desabafo poderia lhe trazer, a não ser, quem sabe, a solidariedade de estranhos, mas precisava desabafar de alguma forma. Mesmo que depois daquilo ela se atirasse da janela do apartamento – possibilidade que desenhava-se cada vez mais real em sua cabeça, e que a perseguia durante a noite toda. Às vezes, Karen tinha tanta certeza de que se jogaria da janela na véspera do dia que teria que mudar-se do apartamento, que até olhava para baixo e imaginava onde cairia. Seria de madrugada, pois durante o dia, havia muitas pessoas passando sob a sua janela, e ela não desejava ferir ninguém. Seu corpo seria encontrado por algum bêbado de passagem, e ele vasculharia seus bolsos antes de chamar alguém para removê-la. Depois, ela seria sepultada como indigente, e ninguém ficaria sabendo, ou se soubessem, ninguém se importaria. Talvez suas ex-colegas de escritório lamentassem durante alguns segundos, mas logo voltariam ao trabalho. Na lanchonete, as pessoas dariam risadas daquilo. Talvez a chamassem de covarde e dissessem que sempre souberam que ela era esquisita. 

E o que aconteceria com seu blog? Poderia ficar no ar durante mais alguns anos. As pessoas o acessariam, leriam seus poemas e no final, a sua história. Poderia escrever uma carta de despedida ao mundo antes de jogar-se, e seus poucos leitores saberiam quem ela realmente fora e o que acontecera com ela. Mas um dia, o provedor apagaria todos os seus escritos, e também, qualquer memória que restasse de sua vida. 

Estava decidido: Karen começaria a escrever sua carta de despedida na manhã seguinte. 

Ela apertou o botão e publicou sua história – ainda usando o pseudônimo de Lana -  e para sua surpresa, viu que o número de acessos crescia a cada hora durante aquela noite. A maioria das pessoas deixavam mensagens de estímulo para Karen, ou seja, para Lana, dizendo a ela que não desistisse, pois “Deus estava guardando para ela algo maravilhoso.” Ela ia lendo as mensagens, e sentindo o vazio daquelas palavras, que não a consolavam nem a ajudavam a resolver seus problemas. Algumas pessoas a xingavam, outras riam dela e de sua situação, chamando-a de ridícula. Um homem não identificado ofereceu-lhe dinheiro para passar a noite com ele. Ao final da madrugada, sua postagem tinha mais de quinhentos acessos – metade do número de acessos que todas as suas postagens juntas jamais tiveram. 

E Karen continuou sentindo-se tão vazia quanto antes. 

Na manhã seguinte, não foi procurar emprego; começou a escrever sua carta de suicídio, que publicaria dali a treze dias. 


(continua...)

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2 comentários:

  1. Que história envolvente, prende o leitor do início ao fim. Ana adoro ler essa histórias e as suas são muito bem elaboradas.

    Vou ler o início;

    Bkjs!

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  2. Uma historia instigante.
    Gostei.
    Ana, prometo que vou aumentar a letra, rsrs.
    Boa terça cheia de paz e luz.
    Beijos

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