segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

MINHA VIDA, SUA VIDA – CAPÍTULO VII






Nono entrou no carro e sentou-se no banco de trás, como fazia todas as manhãs. Logo em seguida, o motorista começou a dirigir até o escritório, como fazia todas as manhãs. Mas de repente, Nono tomou uma decisão, e ordenou ao motorista:

-Vamos fazer um desvio hoje, João. Leve-me até o cemitério. 

O motorista achou estranho, mas obedeceu às ordens, como sempre fazia. Aprendera que, para manter seu emprego, tinha que saber ver e calar – como nas muitas vezes em que Nono colocava mulheres no carro com ele, mandando que fosse até um apart hotel que mantinha alugado no centro da cidade. Também ouvia calado quando ele conduzia suas negociações não muito lícitas no banco de trás. Ele era apenas o motorista, mas estava satisfeito com seu salário e com seu trabalho, e portanto, aprendera a não ver, não ouvir e só falar quando solicitado.

Nono comprou flores de um vendedor ambulante que estava na porta. Depositou-as nas sepulturas do jazigo da família, onde descansavam sua neta, seu filho e sua nora. Há anos não fazia aquilo. Quando eles morreram, ele sentiu muita dor. Uma dor como nunca havia sentido antes. Mas os negócios esperavam por ele, Edith e Célia esperavam por ele – e também as muitas outras mulheres com quem ele fazia sexo. Afinal, ainda era um homem jovem quando perdeu os três. 
Mais jovem ainda quando ele estava naquele corredor de hospital, esperando suas netinhas nascerem. Célia não estava presente, pois não gostava de hospitais. Ele, seu filho e os pais de sua nora aguardavam ansiosos pela abertura da porta onde há horas, a menina entrara sentindo as dores do parto. Seria uma cesariana – sua nora era muito jovem, e não tinha condições físicas e muito menos psicológicas para parir gêmeas. 

Finalmente, a porta se abriu, e o médico retirou a máscara que cobria sua boca, enxugando com ela o suor do rosto: 

-Está tudo bem com a mãe e as três meninas, mas as bebês terão que ficar no hospital durante algumas semanas, até ganharem peso. 

Nono fechou os olhos, e colocando a mão sobre a tampa do túmulo onde seu filho descansava, pensou em onde ele poderia estar naquele momento – pois não podia acreditar que alguém tão cheio de vida se transformara em um feixe de ossos. 

Depois, ele se levantou com alguma dificuldade – o peso dos anos – e foi até um outro local do cemitério, há alguns metros de distância, onde havia uma pequena sepultura com uma cruz branca encimada por um anjo. Ele mesmo escolhera aquele anjo. Ele mesmo, sozinho. Célia não gostava de cemitérios, e seu filho e sua nora estavam ocupados com as duas gêmeas que sobreviveram. Uma delas, a mais miudinha, acabou morrendo semanas depois, quando os bebês estavam ainda na incubadora. 

O próprio Nono cuidou do sepultamento. Os pais não quiseram ir, pois não queriam ver o bebê morto. Célia não foi, pois não gostava nada de enterros. E quando o coveiro fechou a pequena tumba, aquela criança foi totalmente esquecida. A alegria de ter em casa as duas bebês sobreviventes, logo fez com que seus jovens pais se esquecessem da que morrera, e nunca mais falassem dela. Nunca mais mesmo. Nem sequer para as irmãs. 

Mas agora, anos depois, aqueles dias afastados voltavam a persegui-lo na imagem da estranha que estava morando com sua neta. 
Mas não era possível; ele mesmo vira o bebê morto. Aquela moça era apenas parecida com sua neta, e tudo não passava de uma coincidência. 

Na casa, Mafalda pegou a carteira de trabalho de Karen a fim de registrá-la. Ficou surpresa ao ver que tinham nascido no mesmo dia. 
Levada por um impulso inexplicável, Karen ligou para a farmácia local e encomendou uma caixa de tintura para cabelos de cor ruiva – a cor natural de seus cabelos. Passou a tarde trancada no quarto, sem ver ninguém. 

Enquanto isso, Karen passeava pelos jardins da casa, acompanhada de Edith. As duas caminhavam lado a lado, e Edith – como se fosse a dona da casa – ia mostrando tudo: sabia o nome de cada flor, e conversava com os jardineiros, dando-lhes ordens como se ela fosse a proprietária. Karen percebeu o quanto ela gostava que eles pensassem que ela era. Subitamente, Edith parou sua caminhada, segurando o braço de Karen suavemente:

-Queria dizer uma coisa a você, mas não sei como, pois não quero feri-la, Karen.

Karen sentiu-se apreensiva, mas respondeu:

-Só há uma maneira: dizendo. 

-É sobre Mafalda. Ela comentou comigo que sentiu-se mal quando você a chamou para ir até o jardim.

Karen sentiu um incômodo estranho, mas ficou calada.

-Gostaria de pedir a você que não mais fizesse tal coisa. Não é bom para ela, minha menina não pode sair de casa. Ela não consegue, entende? Por isso, desencadeou aquela crise.

Karen percebeu que a doçura daquele sorriso e daquela voz aveludada estavam cobertas por um açúcar um tanto falso. Parecia uma crosta grudenta e fora do lugar, que ela via pela primeira vez. Sentiu calafrios na espinha, mas mesmo assim, achou melhor não contestá-la:

-Tudo bem. Peço desculpas, pensei que estivesse ajudando.

-Não tem do que se desculpar, meu bem. 

Mais tarde, ela perguntaria a Mafalda o verdadeiro motivo pelo qual a crise tinha sido desencadeada. Tivera a impressão de que Edith não lhe contara a história 
toda. 

Após lavar os cabelos, e enquanto os secava com o secador, Mafalda via seu velho rosto ressurgindo. Usava os cabelos tingidos de castanho há tanto tempo, que nem se lembrava mais dele. Queria ser outra pessoa, alguém que não passara por todas as coisas que ela passara, e por isso, cortara e tingira o cabelo. Mesmo depois de notar que sua aparência exterior não poderia modificar o que ela era por dentro, resolveu manter seu cabelo daquele jeito. Na verdade, o que ela não gostava, era de olhar-se no espelho e ver sua irmã Bella. Eram idênticas. Mas lá estava ela novamente, olhando-a de volta!

Mas não; não era Bella quem estava ali, olhando-a de volta. 

Naquele momento, Karen chegou no quarto de Mafalda, e parou atrás dela. As duas imediatamente entenderam. Olharam-se através do espelho. Alguma coisa tinha acontecido. Estavam ligadas de alguma forma. Ninguém poderia negar que eram muito parecidas – quase iguais. 

Edith continuava sua caminhada pelo jardim, e parecia muito aflita. Sua doçura habitual dera lugar a uma carranca de preocupação. Pensava em Nono. Pensava no quanto o amava, e em tudo o que tinha feito de sua vida para ficar ao lado dele. Sabia que ele jamais se separaria de Célia, mas mesmo assim, ficara ao lado dele durante todos aqueles anos – mesmo sabendo que ele tinha outras mulheres além dela. Várias vezes sentira perfumes diferentes e vulgares nele, enquanto o beijava, e também encontrara, certa vez, uma peça íntima em um de seus bolsos. Pensou em deixa-la ali para que Célia a encontrasse, mas depois retirou-a sem nada dizer, pois se Célia desconfiasse de alguma coisa, provavelmente eles teriam que se separar, pois ela ficaria mais atenta. Nono não arriscaria tudo se Célia desconfiasse de sua existência: ele a mandaria embora de sua vida. 

Desde a chegada de Karen, a vida de Edith transformara-se em um verdadeiro inferno, embora ela soubesse disfarçar muito bem. A presença da moça fez com que ela desenterrasse lembranças do passado, e a maneira como ela e Mafalda imediatamente se entenderam e ficaram amigas, a incomodava. 

Edith sentou-se em um dos muitos bancos do jardim, e longe da casa, ficou admirando a construção. Nunca tivera muitas coisas na vida: um casamento fracassado com um bêbado que batia nela, e antes, pais que batiam nela quando criança e que a ignoraram depois de adulta. Aquela casa e Nono eram as primeiras coisas bonitas que Deus lhe dera. E também Mafalda, a quem ela sinceramente passou a amar como se fosse sua neta. Sua. De alguma forma, sentia-se como um membro da família, sem desconfiar que seu sentimento não era retribuído da mesma forma. Mafalda a aturava, pelo avô, a quem ela amava. 

Às vezes gostava dela, mas na maior parte do tempo, era polida porque tinha pena dela. Afinal, como não ser gentil com alguém que lhe dedicava tanta atenção e carinho? Alguém que várias vezes passara noites em claro cuidando dela durante as suas crises?

Edith olhava a casa que sentia como sua: seu lar. O lugar onde seu amado a visitava. Não queria nada mais além daquilo. Tinha a vida que desejava, era feliz, e de repente, sua felicidade estava ameaçada pela chegada daquela estranha. 
Há muitos anos, quando trabalhava de enfermeira em uma maternidade luxuosa, Edith cuidou de três bebês, que uma menina dera à luz. Uma menina rica e mimada. 

Também trabalhava, na mesma época, em um hospital público que ficava a apenas duas quadras daquele, onde mulheres muito pobres davam à luz em condições precárias, e por falta de atendimento adequado, muitos bebês adoeciam e acabavam morrendo. E isto aconteceu com uma das bebês prematuras que estava sendo cuidada por ela. A mãe também era muito jovem, e estava sozinha. Não sabia do pai da criança, e não tinha família na cidade. Amara o pequeno bebê, e dissera a Edith que aquela criança era sua esperança de dias melhores, sua força para continuar e o milagre que a fez desistir de cometer suicídio. Como Edith poderia contar a ela? 

Foi numa madrugada chuvosa que a criança morreu. Edith era a única plantonista no berçário do  hospital público naquela noite. A mãe ficara no hospital a fim de amamentar a pequena. Não era como a outra mãe, tão imatura, rica e mimada, que fora para casa, deixando suas meninas no hospital para serem alimentadas por mamadeiras. 

Edith tomou uma decisão naquela noite: embrulhou a bebê morta e saiu do hospital com ela, dizendo que voltaria logo. Chegou ao outro hospital, e trocou a bebê morta por uma das gêmeas saudáveis – a menorzinha, que tinha mais probabilidades de morrer. A outra mãe ficaria feliz, e a menina mimada ainda teria duas meninas para brincar de boneca. Não pensou nas condições financeiras da mãe que ficara no hospital público. Pensou apenas que estava fazendo a diferença na vida daquela jovem mulher, e que daria a ela as esperanças e a força que precisava para continuar com sua vida. Bebês prematuros eram sempre tão parecidos, e ninguém notaria a diferença. Além disso, os bebês, por coincidência, tinham o mesmo tipo sanguíneo. 

Deus fazia justiça por caminhos tortos, pensou ela. 
Jamais ficou sabendo o que acontecera com a bebê viva que ela trocara pela morta. Mas quando soube que os pais sequer foram ao sepultamento da própria filha, pensou ter feito a coisa certa. Pelo menos, a menininha seria amada de verdade, mesmo que sendo criada em um ambiente pobre. O que ela não soube, é que a mãe amorosa abandonou a bebê – que chamou de Karen, devido a um personagem de filme americano que ela gostara – poucos dias depois, ao ver o quanto a criança chorava de fome, e o quanto seria difícil a vida com ela, pois ninguém dava-lhe um emprego quando ficava sabendo da existência da menina. 

Mas o mundo pode ser redondo demais, e fazer com que pessoas que foram separadas no passado se juntem novamente no presente. 
Edith sabia que cometera um crime aos olhos dos homens, mas que Deus a perdoara, pois Ele próprio dera a ela aquela missão. E foi naquele mesmo hospital que ela conheceu Nono, e se apaixonou pelo jovem avô. Ela considerou aquilo um prêmio de Deus por ter ajudado aquela mãe. 

Nono tirou-a do emprego, e passou a cuidar dela. Deu-lhe coisas com as quais ela jamais sonhara. Contratou uma pessoa para ensinar-lhe boas maneiras e para ajuda-la a vestir-se melhor. Ele estava apaixonado pela linda enfermeira que conhecera. Sabia que a amava, mais do que amava a sua esposa. Mas sempre disse a ela que jamais pediria o divórcio, e Edith concordou, dizendo que dele ela só queria o que ele pudesse lhe dar. 

E ele lhe dera tudo – inclusive, uma família. Mafalda era a sua menina. 
E ela pensou, e repensou naquela história. Na verdade, ninguém poderia traçar aquela separação até ela. Ou será que poderiam? Mas ela nem estava de plantão naquela noite, e tinha tomado o cuidado de entrar quando o berçário estava vazio; fizera a troca rapidamente, saindo logo em seguida pela porta dos fundos, por onde tinha entrado. E havia também outras enfermeiras – duas delas, já falecidas – que poderiam ser as culpadas, ao invés dela, e que estavam de plantão naquela noite. Tomara o cuidado de cobrir a cabeça com um lenço que tapava suas feições, caso alguém a visse passar pelos corredores. 

De repente, ela estava se preocupando à toa; era isso. A semelhança entre as moças era apenas coincidência! Edith riu de suas fantasia loucas, e voltou caminhando para casa, após colher flores frescas para colocar no vaso sobre a mesa da sala de jantar. Sua menina adorava aquelas flores. 

Mas ela deixou cair a braçada de flores quando abriu a porta, e deu com as duas moças ruivas sentadas lado a lado no sofá da sala. 


(Continua...)





Um comentário:

  1. Intrigante e soberbo seu conto!!

    Agradeço sua visita em minha página cara amiga Ana.

    Feliz Natal!

    Bjs!

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