quarta-feira, 10 de maio de 2017

A MÃO E O LAÇO – CAPÍTULO VI







Diana foi encontrada morta, à beira da represa da cidade. A polícia pensou em suicídio, mas após encontrarem indícios de uma pancada na cabeça, a hipótese foi descartada. Pedro, o pai, era suspeito. 

Fiquei sem saber como contar à Shirley. Sabia que precisava fazê-lo antes que alguém mais soubesse e contasse a ela de qualquer maneira.

Era sábado. Abri a janela e pensei no quanto a vida era uma história enfadonha e absurda. Lá em baixo, na nossa rua pouco movimentada, os velhinhos chegavam para sua partida de bingo no primeiro andar. O carro da proprietária do apartamento do quarto andar estava parado junto ao meio-fio. A rua dos Ipês continuava encantadora, com suas árvores altas e magníficas, o vento assoviando entre as folhas. E havia uma menina morta, deitada sobre o alumínio frio de uma sala de necrotério, esperando que a mãe a fosse reconhecer. Seus cabelos estariam molhados e penteados para trás. Seus olhos poderiam estar abertos, fitando o teto. Talvez as mãos estivessem ao longo do corpo. Roxas. Ela estava morta. 

E o mundo não sabia. As pessoas continuavam vivendo suas vidas, até que a vez delas chegasse. Haveria festas, música, casamentos, viagens, passeios. As férias começariam. As pessoas que conheceram Diana a esqueceriam. Ela seria enterrada, e não sobraria nada do corpo dela, do seu belo rosto, da sua história. Ela viraria pó. Teria sido amada por alguém? Será que sua mãe a amara, pelo menos? 

Quando Shirley chegou, encontrou-nos com os olhos vermelhos. Ela entrou, e sentando-se à mesa do café, perguntou, pegando um pãozinho e espalhando geleia sobre ele:

-O que aconteceu? Vocês andaram chorando?

Fui cuidadosa:

-Shirley... a gente precisa de contar uma coisa. 

Ela parou de comer. Sentei-me perto dela, e minha mãe sentou-se do outro lado da mesa. Eu disse:

-Encontraram Diana. Ela está morta. Foi assassinada. 

Shirley arregalou os olhos, e as lágrimas brotaram, caindo em fileiras salgadas. Ela parecia muito emocionada. Talvez, pensei, ela tivesse achado que teria mais algum tempo com a irmã, agora que as coisas estavam mudando. Mas era tarde. 

Abracei-a, e ela perguntou:

-Mas... como, assassinada?
-A polícia suspeita de Pedro... seu pai, amiga. 

Ela tapou a boca com a mão. Minha mãe estendeu-lhe uma xícara de café. Notei que mamãe permanecera calada durante todo o tempo, olhando muito para Shirley. Conhecendo minha mãe muito bem e sabendo que ela não gostava de Shirley, achei injusto o olhar de  desconfiança dela, principalmente naquela hora tão difícil.

Shirley pegou a xícara, e tomou um gole do café. Estranhamente, vimos quando ela pegou o pãozinho e continuou a comer. 

A escola compareceu em peso ao velório. As amigas de Diana choravam muito. 
Fizeram uma homenagem para ela, cantando uma de suas músicas preferidas. Doralice também chorava muito. Após o enterro, mamãe levou-a de volta à clínica, dizendo que continuaria a pagar pelo tratamento mesmo assim. Ela jurou à polícia não saber do paradeiro do marido.

Shirley chorou também. Ela segurava a minha mão. As mãos dela estavam muito frias. Ela quase desmaiou na hora da despedida final. Achei que ela estava realmente abalada. Talvez a maneira que ela tinha de sentir as coisas fosse daquela forma estranha mesmo, entre o riso e o choro, entre o comentário animado sobre a novela e o comentário triste, ao lembrar da irmã. 
Após o velório, eu estava descansando em meu quarto quando a campainha tocou. Shirley tinha ido para casa, dispensando a mim, Adílio e Laura, dizendo que preferia ficar sozinha.  Escutei mamãe abrir a porta, e vozes abafadas. Logo, mamãe estava à porta do meu quarto:

-Filha, há algumas meninas à porta querendo falar com você, quer que eu as mande embora?

-Quem são, mãe?

-Ninguém que eu conheça. Dizem que são da escola. 

Respirei fundo, e após alguns minutos me recompondo, fui atender. Fiquei surpresa ao reconhecer duas amigas de Diana, as esquisitas que haviam rido de mim e me perturbado em meu primeiro dia de aula. Fiquei parada, olhando para elas. Uma delas usava roupas totalmente pretas – não que estivesse de luto, pois na escola, ela sempre se vestia assim – e tinha um horrível piercing no nariz. A outra, de cabelos curtos e espetados, tinha um traço borrado de delineador preto em volta dos olhos. Usava uma minissaia muito curta e meias raladas. Tentei manter a voz firme:

-Pois não?

A de meias raladas falou primeiro:

-Oi, somos Drica e Susi, amigas de Diana.

-Eu sei. O que desejam?

Elas se entreolharam. Fiz sinal para que se sentassem, e ocupei a poltrona diante delas. 

-Soubemos que você e sua mãe estavam tentando ajudar Diana. 

Concordei com a cabeça, e respondi friamente:

-Pois é. Nós estávamos tentando. Coisa que vocês, que se dizem as melhores amigas dela, nunca fizeram. Mas o que vocês disseram que queriam mesmo?

Drica, a menina de preto, balbuciou:

-A gente não sabia. A Diana não falava muito de si mesma. Parecia ser tão forte e decidida...

-O que? Quer dizer que vocês não sabiam de nada? E... como ficaram sabendo? Quero dizer, a gente não contou a ninguém.

Susi respondeu:

-Shirley. Ela nos contou tudo após o velório. 

Achei aquele comentário um tanto estranho, já que Shirley tinha dito que voltaria para casa porque queria ficar sozinha. Mas preferi não comentar. Ao invés disso, perguntei:

-O que ela disse a vocês?

-Contou tudo... que Diana era abusada pelo pai. Que a mãe era drogada – disso a gente já sabia, pois de vez em quando Diana levava umas coisinhas pra gente usar depois da aula, e dizia que eram da mãe. Mas a gente não fazia ideia de que o pai abusava dela. Shirley disse que Diana tinha muita vergonha, e não contava a ninguém, e que tinha proibido que ela contasse à polícia ou a qualquer pessoa. 

Fiquei pasma, pois Shirley contara a elas apenas uma parte da história, omitindo a parte que falava dos abusos sofridos por ela mesma na infância. Mesmo assim, fiquei calada. Susi continuou:

-Viemos agradecer. E pedir desculpas pelo tratamento que demos a você no primeiro dia de aula. Você... é legal. Sua mãe também. São boas pessoas. 

Olhei para ela, balançando a cabeça. Fez-se um silêncio embaraçante, e pensei que tudo já tinha sido dito e a conversa tinha terminado, mas  Drica disse:

-A gente... bem... queríamos contar uma coisa. 

Senti que meus dedos se agarraram ao braço da poltrona com força. Por algum motivo, eu não tinha certeza se queria ouvir o que elas queriam me contar. 

(continua...)





Um comentário:

  1. Continuo a ler com muito interesse e gôsto esta história que para já é triste, e nos alerta para a realidade de que o ser humano tanto pode ser um modelo de virtudes como um horrível canalha. Infelizmente casos destes acontecem.
    A Ana com o dom das suas palavras faz-nos sentir este conto como real.
    Beijinho
    Dilita

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