quinta-feira, 1 de junho de 2017

A MÃO & O LAÇO – Capítulo IX







Fiquei estarrecida ao ouvir aquilo. Shirley estava disposta a proteger um assassino – o assassino de sua própria irmã, mesmo que ela não a considerasse como tal – apenas por causa de dinheiro! É claro, nós tivemos uma briga feia. 

Ela acabou indo embora da praça, me deixando sozinha. Shirley saiu batendo o pé e chorando muito, e eu ainda fiquei ali, sentada no balanço, dando um tempo até conseguir me acalmar. Eu tinha apenas dezesseis anos, e achava que se contasse aquilo a um adulto, estaria traindo a minha amiga. Ao mesmo tempo, me sentiria péssima se não contasse, pois eu jamais mantivera segredos com minha mãe, e desde que conhecera Shirley, mantinha alguns; por exemplo, eu nunca contara a ela o que aconteceu na noite da minha festa de aniversário – que Shirley tinha transado com um garoto atrás do sofá de minha avó. Ou que ela fumava. Eu tentava me convencer de que manter segredos entre amigas era normal. Nem tudo se contava às mães, as meninas viviam dizendo nas conversas no pátio da escola. Mas eu aprendera que deveria confiar sempre em minha mãe, e que as coisas mais importantes que me acontecessem – até mesmo a minha primeira vez – deveria partilhar com ela. 
Mas aquele segredo não me dizia respeito... ou dizia? Será que eu me tornaria cúmplice de um crime, se não contasse tudo o que sabia à minha mãe? 

A chuva finalmente começou a cair – devagarinho no início. Fui caminhando de volta para casa sem saber o que diria, caso minha mãe percebesse que eu estava estranha.

Quando cheguei ao prédio, reencontrei Noel, o novo vizinho, tentando carregar um sofá de três lugares para dentro sozinho. A chuva já caía com força, e acabei ajudando-o, já que o porteiro do prédio não estava trabalhando naquele domingo. Ele me agradeceu. Quando colocamos o sofá no saguão, nós nos sentamos nele, molhados e arfantes, e rimos um para o outro. Perguntei pelos homens do caminhão de mudanças, e ele disse:

-Foram embora. Deixaram o sofá na calçada, pois queriam que eu pagasse mais pelo transporte até lá em cima, pois ele não cabe no elevador. Eu disse que só pagaria o combinado, e então, eles foram embora. 

-E o que você vai fazer agora?

Ele respirou fundo, secando as palmas das mãos na calça jeans:

-O jeito é esperar até segunda-feira e ver se o porteiro me dá uma forcinha. Ou então pagar o que eles querem.

Ficamos nos olhando por alguns instantes. A chuva lá fora estava bem forte e ruidosa, e já se formara uma enxurrada no meio-fio. Senti meu coração dar um salto, e meu rosto corar. Ele me deixava daquela maneira, como eu nunca tinha ficado antes, nem mesmo na noite em que dancei com Adílio e ele me beijou. Senti que a mesma coisa poderia estar acontecendo com ele, pois de repente, as maçãs do rosto dele também tingiram-se de vermelho. Ele deu um sorrisinho, baixando os olhos. O que ele disse em seguida me pegou de surpresa:

-Acho que eu posso gostar muito de você no futuro, e não me pergunte porque. 

Eu fiquei sem saber o que dizer, pois apesar de sentir a mesma coisa, não queria parecer precipitada. Ao invés de falar, eu ri, olhando para o chão onde as marcas molhadas dos nossos pés  ainda demorariam a secar. Comecei a sentir frio, e me arrepiei. Ele percebeu, e tirando o casaco de nylon que vestia, estendeu-o para mim. Instintivamente, sentei-me ereta, tirando as costas do encosto do sofá, e ele colocou o casaco em meus ombros bem devagar. Sentir ele tão perto de mim daquele jeito, me fez ter vontade de beijá-lo. Mas nós sequer nos conhecíamos! Eu queria dizer alguma coisa para não dar na pinta que eu estava tão constrangida, e acabei dizendo:

-Venha almoçar conosco hoje. Minha mãe vai fazer um empadão de palmito delicioso.


Ele demorou um pouco a responder, e eu fiquei embaraçada. Ora, com certeza um cara como ele tinha uma namorada em algum lugar, e os dois iam almoçar juntos no domingo. Quem sabe, ela já não estava lá em cima, esperando por ele? 

Mas ele aceitou meu convite, dizendo:

-Obrigada pelo convite. Antes, acho que preciso tomar um banho... acha que meu sofá ficará em segurança aqui?

-Com certeza! A portaria fica trancada, e apenas os moradores e seus convidados podem entrar. Vamos empurrá-lo um pouco mais para o canto... assim. Pronto! Agora... vamos subir? Acho que também preciso trocar de roupa...

Chamei o elevador, e entramos juntos. Seguimos os cinco andares sem dizer nada, apenas nos olhando, como se quiséssemos nos agarrar ali mesmo. o elevador parou, e antes de sair, ele perguntou:

-Que horas?

-Que horas o que?

-O almoço.

-À uma hora.

-Estarei lá.

Ele ficou um pouco parado à porta me olhando, antes de deixa-la fechar. Quando o elevador parou no meu andar, notei o que tinha feito: convidado um perfeito estranho para almoçar sem nem sequer pedir à minha mãe. Mas ela achou a ideia ótima, pois gostava de fazer novos amigos, e queria mesmo conhecer o novo vizinho. 

Entrei no meu quarto, e pude extravasar um pouco: recapitulei o que tinha acontecido entre mim e Shirley, as coisas que ela me contara. Eu nem conseguia imaginar o absurdo de tudo que ela passara na vida! Concluí que cada pessoa era uma incógnita, e que quando alguém julga outra pessoa, o faz sem conhecimento de causa. Decidi que não seria eu a julgá-la, mas que faria de tudo para ajudar minha amiga, nem que precisasse esconder algumas coisas de minha mãe. Peguei o celular e digitei uma mensagem para Shirley:

“Seu segredo está seguro comigo. Jamais te trairia, pois acredito em você.”

Minutos depois, ela respondeu: mandou-me uma carinha sorridente. Achei aquilo vazio e um pouco macabro, devido ao tom pesado da nossa conversa e a maneira como ela saíra, e engoli em seco, sentindo um calafrio sem razão. Ainda esperei um pouco para ver se ela digitaria mais alguma coisa, mas ela não o fez.

À uma da darde, a campainha tocou, e eu corri para abrir, saltando do sofá com uma determinação da qual me arrependi, então caminhei devagar até a porta para que minha mãe não notasse meu entusiasmo. Mas assim que abri, e ela colocou os olhos em Noel, tenho certeza, pelo olhar que ela me dirigiu, que ela percebera tudo. 
-Mãe, este é Noel; Noel, esta é minha mãe, Letícia. 

Noel cumprimentou minha mãe com um aperto de mão:

-Muito prazer, Letícia. Espero não estar incomodando. 

Minha mãe conduziu-o para dentro, fechando a porta e levando-o até o sofá. Quando ele estava de costas para nós, ela me olhou, erguendo as sobrancelhas significativamente, e respondeu:

-Você é bem vindo, Noel. Gosto de conhecer quem mora perto de mim. Sente-se, por favor. O almoço está quase pronto. Espero que goste de empadão de palmito.

-Adoro. Eu sou bom de garfo. Muito obrigada por me receber. 

Mamãe serviu-lhe um refrigerante, e pediu licença, dizendo que precisava ir até a cozinha. Ficamos sozinhos, e eu sentada bem em frente a ele, a mesinha de centro entre nós. Ele tomou um gole do refrigerante, colocando o copo sobre o descanso na mesa. Olhou em volta rapidamente:

-Lindo apartamento. Muito bem decorado também. 

Ele fixou o olhar em um relógio antigo na parede oposta, e de repente se levantou, caminhando até ele:

-É muito bonito!

-Foi dos meus tataravós. Estão na família há muito tempo. Nem sei como ainda funciona. Meu pai costumava lubrifica-lo sempre que podia... às vezes, nos domingos de manhã, antes de sair para jogar tênis. 

A lembrança repentina de meu pai deu um tom melancólico à minha voz, e ele percebeu. Eu evitava falar sobre papai, porque sabia que faria com que minha mãe se lembrasse dele, e que ela ficaria triste. Eu pensava muito nele, principalmente antes de dormir, e sempre dizia ‘boa noite’ para o teto antes de adormecer, na esperança de que ele pudesse me ouvir. Mas jamais falava nele. Noel virou-se para mim, estudando meu rosto:

-Seus pais são separados?

-Não. Meu pai faleceu há dois anos.

Meu olhar se dirigiu para a foto de meu pai, que estava sobre o aparador da lareira, e os olhos dele o seguiram. Ao deparar com a fotografia do meu pai, notei que Noel teve um lampejo de reconhecimento- provavelmente, porque ele já vira o rosto dele nos jornais e noticiários da TV na época do escândalo e do suicídio. Ele arregalou os olhos por um segundo, a boca entreaberta. Pensei que teria que dar alguma satisfação ou responder a perguntas que eu não queria responder, mas ele se recompôs, e após dizer: “Sinto muito”, não voltou a tocar no assunto. Fiquei aliviada. Mamãe entrou naquele instante, anunciando que o almoço estava servido na sala de jantar. 

Comemos, falando de coisas triviais. Descobri que Noel era também muito próximo de seus pais, tinha uma irmã mais velha, e que ele que adorava escalar montanhas e fazer trilhas em meio à natureza. Adorava música, e tocava piano e violão. Já tinha feito parte de uma banda quando adolescente, mas quando se formou, teve que largar a banda para estudar para o vestibular. Noel era uma pessoa de riso fácil, muito educado, encantador. Minha mãe gostou dele imediatamente, e os dois se deram muito bem. O pai possuía um escritório de advocacia e queria que trabalhassem juntos, o que Noel achava que acabaria acontecendo, mas senti um tom de relutância conformada em sua voz ao dizer aquilo, o que me levou a perguntar:

-E o que você realmente gostaria de fazer?

-A pergunta o pegou de surpresa, e ele me olhou, confuso:

-Hã... como assim?

-Você acaba de dizer que seu pai quer que trabalhem juntos; mas o que você quer?

Mamãe me olhou do outro lado da mesa, cerrando os lábios, e percebi que tinha ido longe demais, fazendo uma pergunta um tanto indiscreta. Fiquei envergonhada, e me desculpei, mas ele disse:

-Não, não precisa se desculpar. Você tem razão. O que eu queria mesmo, de verdade, é ser músico. Mas... meu pai tem razão quando diz que isso não garante o futuro de ninguém a não ser que se nasça ‘virado para a lua.’  Por isso decidi estudar Direito e trabalhar com meu pai. A decisão foi minha. Sabe, acho que nem sempre podemos escolher. 

Eu não concordava com ele; mesmo assim, fiquei calada. Já tinha causado alguns constrangimentos para uma primeira vez. 

Após o almoço, ajudamos mamãe a arrumar tudo; Noel ofereceu-se para enxugar a louça, enquanto mamãe lavou e eu guardei tudo. Percebi que estava realmente adorando aquela tarde com ele. Mais tarde, nos sentamos no sofá e tomamos café. Mamãe nos olhava em silêncio, enquanto falávamos sobre matérias da escola. De repente, ela nos cortou, perguntando a ele:

-Quantos anos você tem, Noel? Desculpe a pergunta, mas você me parece bem mais velho que Jordana. 

Ele respondeu, após uma breve pausa:

-É verdade... não sei quanto anos ela tem, mas eu também já fiz esta comparação. Bem, eu tenho 22 anos. E você, Jordana?

Fiquei com vontade de mentir minha idade, achando que, ao saber que eu tinha apenas 16 anos, ele perdesse o interesse por mim. Mas mamãe me olhava, testando minhas reações, e tive que dizer a verdade:

-Dezesseis.

Mamãe acrescentou:

-Recém-completados. 

Ele concordou com a cabeça. Me olhou de rabo de olho rapidamente, e corou. 

-Na verdade, achei que ela tinha dezoito. 

Meu coração murchou. Por que mamãe tinha que ter tocado naquele assunto, logo agora? Não poderia ter deixado que eu me sentisse feliz por mais tempo? Eu tinha certeza de que ele perdera totalmente o interesse por mim, quando mamãe acrescentou: 

-Eu e o pai de Jordana também tínhamos uma diferença de idade. Meu marido era doze anos mais velho que eu. Mas posso dizer, sem sombra de dúvida, que nós fomos muito felizes, a não ser no final...

A voz dela travou, e ela respirou profundamente, rindo e mudando de assunto: 

-Vou levar estas xícaras para a cozinha. Com licença! Fiquem à vontade.

Depois que ela saiu, ficamos em silêncio. Ele olhou o relógio de pulso. Eu pigarreei, tentando quebrar a distância entre nós. Achei melhor procurar por um assunto logo, antes que ele decidisse ir embora. Comecei a falar, mas ele também começou a falar ao mesmo tempo, o que nos fez rir. Ele pediu:

-Você primeiro.

-Não, fale você.

-As damas primeiro. 

Eu achei que o que eu ia dizer já não ia fazer nenhum sentido:

-Nada importante... ia falar de um filme, só isso. E você?

-Qual o filme? 

- Na verdade, menti. Queria perguntar a você por que está começando a faculdade mais tarde, mas isso não é da minha conta. Já fui bem indiscreta por hoje. 
-Sem problemas, eu respondo: acho que tentei investir na banda antes. Mas não deu certo. Eu... desisti. Não queria chegar aos 30 anos sem uma profissão, e achei melhor escutar meu pai. 

Balancei a cabeça, concordando com ele.

-Agora você. O que ia dizer?

-Na verdade, eu ia te convidar para ir ao cinema mais tarde. 

Minha alegria voltou, e eu respondi, sem conseguir esconder um pouquinho que fosse a minha alegria:

-Se a minha mãe concordar, eu quero, sim. 

“Se a minha mãe concordar” me soou infantil e inapropriado, e eu corei mais uma vez. Ele fingiu não perceber:

-Ótimo. Vou pedir a ela agora mesmo.

Eu não esperava por aquilo e não tive tempo de dizer nada, ficando sentada no sofá, boquiaberta, enquanto ele ia para a cozinha. Ouvi suas vozes, sem conseguir compreender o que diziam, e cinco minutos depois ele voltou, balançando os braços de maneira forçosamente infantil, um sorriso maroto nos lábios:

-Ela deixou. Te pego às nove?

Concordei com a cabeça. Ele me deu um beijo no rosto, disse que ia para casa dormir um pouco e que passaria para me pegar às nove. 

Eu deveria ter me erguido do sofá e levado Noel até a porta, como uma pessoa bem educada teria feito; deveria ter dito alguma coisa, mas não consegui. Ele saiu pela porta, fechando-a atrás de si. Minha mãe veio da cozinha, dirigindo-me um olhar maroto, e pegando a bolsa e passando direto por mim, anunciou:

-Vou sair, as meninas ligaram enquanto você estava fora e me convidaram para uma partida de Bridge. Tchau! Não chegue muito tarde. 

(continua...)



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