sexta-feira, 1 de junho de 2018

O Lar de Ofélia - Parte II






O |Lar de Ofélia - Parte II


Assim que entrou na casa e acendeu as luzes, Ofélia teve uma sensação de tontura. Apoiou-se nas costas de uma poltrona para não cair. Ao mesmo tempo, sua mente foi invadida por flashes de cenas e  pensamentos que pareciam lembranças, mas como poderiam ser, se ela não os tinha vivido?
Ofélia viu uma mulher na sacada da casa, brincando com uma criança. As duas olhavam para baixo, para o jardim, que era belo e cheio de flores, onde um homem em trajes antigos sorria e acenava para elas. Ofélia pôde ter o mesmo sentimento de alegria que as acometia, e viu com detalhes as plantas e passarinhos na jardineira da sacada como se estivessem diante de seus olhos. Mas de repente, a sua visão ficou turva, e tudo começou a girar como em um redemoinho, e a visão se desfez. 

Ofélia respirou fundo, recuperando-se da tontura e do efeito das visões. Olhou em volta: a casa realmente precisava de cuidados! As paredes eram velhas e descascadas, mas deixavam entrever delicadas pinturas de paisagens feita à mão, embora as cores estivessem desbotadas. A sala de estar ficava logo após o pequeno e estreito hall de entrada, onde se encontravam as pinturas. Havia poucos móveis, todos antigos e empoeirados. Ela pensou que precisaria examiná-los para ver se valeria a pena mandar reformá-los para usá-los na decoração da casa, mas faria aquilo mais tarde. O piso era de madeira, coberto por grossas camadas de sujeira. 

Mas apesar do abandono, havia alguma coisa na casa que a aterrorizava e fascinava ao mesmo tempo. Era como se a casa tentasse comunicar-se com ela. E ela  sentia como se estivesse voltando ao seu verdadeiro lar após muito, muito tempo. 

Examinou a cozinha, ampla e antiga. Parecia que tudo na casa era original, e que ela nunca tinha passado por uma reforma que a modificasse. Subiu as escadas e foi ver o andar superior. Ao entrar no quarto principal, que se encontrava vazio, ela caminhou devagar até a sacada e ficou estarrecida ao abrir as portas - que emperraram no começo, mas que logo cederam, como se a casa  desse a ela permissão: a sacada era exatamente igual àquela que vislumbrara durante a sua visão! 

Devagar, Ofélia chegou até ela, apoiando as mãos e olhando para baixo. A jardineira ainda existia, embora estivesse sem plantas. Ela viu o sol se aproximando do horizonte ao longe, e passarinhos que cantavam nas árvores próximas. Teve a exata sensação de já ter estado ali. Acariciou a amureta, e um leve choque percorreu seus dedos. Ofélia retirou a mão, e entrou na casa de repente, fechando a janela.  

Pegou seu tablet na bolsa e começou a tirar fotografias e fazer anotações. Queria começar logo a reforma. Ofélia foi de cômodo em cômodo, e sempre encontrava algum objeto que, antes que entrasse no cômodo, aparecia em sua mente. Chamou-lhe e atenção um velho abajur que estava sobre a cabeceira de uma cama de criança, coberta por uma colcha cor-de-rosa muito desbotada. Ela sentou-se sobre a cama. Deixou-se ficar ali, olhando o abajur, e visualizou uma mão infantil e uma pulseirinha de bolinhas miúdas de pérolas, que apagavam a lâmpada. Ouviu um nome ser sussurrado em seu ouvido: "Brenda."  

Ela assustou-se, e naquele momento, um sentimento de perda e tristeza apareceu com tanta força, que Ofélia teve vontade de chorar - e chorou. Foi quase como no dia em que perdeu sua mãe, só que bem mais forte. A morte da mãe fora, de certa forma,  um alívio para ela, pois além de terminar com os sofrimentos pelos quais a mãe passava, garantiu a sua liberdade. Mas aquela perda, aquela criança desconhecida...

Ofélia secou as lágrimas, achando tudo aquilo muito absurdo. Talvez estivesse ainda vivendo o luto pela morte da mãe; afinal, fora há apenas um ano e alguns meses. Caminhou até a porta do quarto, e olhou para dentro antes de fechá-la vagarosamente. 

Na sala de estar, examinou suas anotações antes de sair e trancar a casa. 

Começava a escurecer; o céu estava coalhado de fiapos de nuvens rosadas e alaranjadas. Ofélia desceu as escadas da varanda e deu a volta pela casa, circundando-a e examinando o jardim. Não tinha sobrado nada dele; teria que ser totalmente refeito. Tudo estava morto e seco. Não havia sequer uma folha de grama viva, ou uma única folha verde - a não ser pelas árvores antigas. Ela achou aquilo muito estranho, já que tinha chovido bastante nos últimos dias, mas encolheu os ombros, tirou mais algumas fotografias e guardou o tablet na bolsa. 

Foi quando notou uma pequena porta que levava ao porão, na lateral direita da casa. Forçou-a, e ela prontamente cedeu. Ofélia teve a impressão de que poderia abrir qualquer porta daquela casa, mesmo se não tivesse as chaves. A casa a acolhia. As paredes , portas e janelas se abriam à vontade dela. Experimentou sair e trancar a porta, procurando a chave no molho que o velho Alcides lhe dera; depois, sem destrancá-la, forçou a maçaneta, e a porta se abriu imediatamente. Boquiaberta, ela repetiu a operação várias vezes, obtendo o mesmo resultado. Da última vez, ao tentar certificar-se de que realmente tinha trancado bem a porta, Ofélia acabou ferindo o dedo na fechadura. Foi um corte pequeno, mas que começou a sangrar profusamente. 

Ofélia praguejou baixinho, enquanto olhava o sangue surgir do ferimento.

Ela abriu a bolsa com a outra mão para procurar um lenço de papel, e o sangue começou a pingar no chão. Ao encontrar a caixa de lenços e um band-aid, ela enrolou o dedo no papel, limpando o sangue, e colocou o curativo. Teria que lavar bem as mãos para evitar algum tipo de contaminação ou até mesmo tétano, mas ao ter aquele pensamento, escutou a mesma voz que dissera o nome da menina em sua cabeça, dizendo: "Não se preocupe com isso."  Ofélia guardou a caixa de lenços, olhando em volta: será que os meninos das bicicletas estavam tentando pregar-lhe uma peça?

Mas a voz que escutava não era masculina. Era uma voz diferente. Também não era uma voz feminina, não podia dizer com certeza. Escutou uma risada, como se alguém estivesse troçando dela. Olhou em volta, gritando:

-Quem está aí? Isso não tem graça nenhuma!

Apurou os ouvidos e escutou, mas não houve qualquer resposta. 

Ela abriu a porta do porão e olhou para dentro: queria dar uma olhada, mas estava muito escuro. Tateou em busca de um interruptor, mas ao encontrá-lo, nada aconteceu: a lâmpada deveria estar queimada. Virou-se para sair, mas de repente, a claridade às suas costas a fez virar-se: o porão estava iluminado. A luz havia acendido. 

Com o coração aos pulos, Ofélia começou a ficar realmente assustada. Mesmo assim, entrou no porão. O que ela encontrou fez com que soltasse uma exclamação de surpresa: encostada à parede, bem em frente à porta de entrada, havia uma pintura. Retratada nela, a mulher de sua visão, e a cena à sacada que ela vira. 

Ofélia aproximou-se, observando o quadro. Notou que ele tinha mais ou menos um metro de altura. Ela tocou a tela, sentindo a aspereza da tinta à óleo ressecada. Teve, imediatamente, novas visões: ela entrava ali, em uma outra época (uma outra vida?) e via um homem de costas, pintando exatamente aquele quadro. Ela estendia a mão para tocar as costas dele, e ele se virava para ela, o rosto sorridente, segurando o pincel. A visão daquele rosto fez com que Ofélia sentisse uma dor profunda, imensa. 

Ainda secando as lágrimas, ela saiu do porão. Ao tentar trancar a porta, a mesma trancou-se sozinha. 

Quando ergueu os olhos e olhou para o jardim à sua frente, Ofélia não teve palavras ou pensamentos para explicar o que via: a partir da pequena poça de sangue no chão, uma trilha verde começara a formar-se, expandindo-se para todos os cantos do jardim. Arbustos floridos e grama verde e saudável brotavam em todos os cantos; roseiras de todas as cores e tamanhos surgiam e floresciam, espalhando um maravilhoso perfume, e canteiros de margaridas, lírios e agapantos roxos cresciam em toda parte. 

Ofélia ficou parada no meio daquela beleza, tentando entender o que estava acontecendo. Estaria sonhando, ou tendo alucinações?


(continua...)



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