terça-feira, 4 de junho de 2019

Capítulo XXII, PARTE II - Cristina Fala






PARTE II – CRISTINA FALA

I I– Minha avó

Cria da casa: eis tudo o que eu era, tudo que eu sempre fui. Não é nada fácil não ter uma definição: não ser negra ou branca, e sendo pobre, usar as roupas caras presenteadas por alguém de uma rica família, e sentir-se observada nas ruas com ódio e inveja de pessoas que provavelmente se perguntam como uma negrinha como eu poderia usar roupas como aquelas. Não poder frequentar uma universidade, mas ter à mão os melhores livros já escritos na imensa biblioteca do patrão, que não apenas os empresta, mas também estimula as leituras. Sempre fui a filha da empregada. Qualquer momento que eu possa ter pensado ser outra coisa, não passou de um engano.

De que me adiantou ter nascido bonita e ser desejada, se nunca pude ter o homem que eu amava? Por que sair com a filha do patrão e seus amigos, fingindo que eu era uma deles, quando nenhum dos rapazes que me tratavam bem e faziam com que eu me sentisse “incluída”, “uma deles,” jamais quis me namorar – apesar de terem tentado outras coisas comigo e me difamado quando eu disse não? Eu queria ter nascido bem negra, ou bem branca, porque os negros não me aceitavam por eu não ser uma deles, e os brancos não me aceitavam pelos mesmos motivos. A começar pela história dos meus pais – um branco rico que engravidou uma preta pobre e foi banido do reino para ficar com ela. Poderia tê-la jogado na rua, como tantos outros, mas teve a honra de não abandoná-la e de assumir sua filha, que passou a odiar devido a tudo que teve que renunciar por ela. Ele nunca me incentivou a valorizar a minha parte branca; pelo contrário: enfatizava sempre a minha parte negra, e o quanto eu deveria andar de cabeça baixa por causa dela, respeitando os brancos e não me atrevendo nunca, nunca, a tentar ser qualquer outra coisa, a tentar fazer valer a minha parte branca. Ele também me enxergava como a filha da empregada da casa. Às vezes eu me pergunto se, durante as surras que ele me dava, alguma vez ele se lembrava de que era a sua própria filha que estava ali, sob os golpes do seu cinto de couro, e não a filha da empregada da casa.

Mas se havia uma pessoa naquela casa que me amava de verdade, além da minha mãe, essa pessoa era minha pequena amiga Yara. Dava para ver nos olhos dela o quanto ela me adorava! Uma vez eu li um livro sobre vidas passadas e reencarnação, e fiquei achando que Yara era minha irmã em outra vida. Foi muito doloroso deixar aquela casa sem me despedir dela. Mas eu não ia aguentar vê-la chorar, e acabaria ficando, e se eu ficasse, não teria conseguido tudo o que consegui. Não teria me vingado de minha avó e de todos que me humilharam.

E quando Marcelo disse que era melhor a gente dar um tempo e não ‘forçar a barra,’ eu entendi que até mesmo para ele, eu nunca tinha sido importante. Eu entreguei a ele a minha virgindade, a minha alma, o meu corpo, o meu amor, a minha dignidade. Briguei com meus pais por causa dele. Enfrentei a fúria do meu pai por ele, e ele veio me dizer que achava melhor nos afastarmos por um tempo.

Berta… ela mantinha uma amizade comigo porque fazia uma bela figura junto aos seus amigos liberais e moderninhos. Dava a eles a impressão de que ela era não-preconceituosa, que não enxergava ‘diferenças,’ que não tinha nenhum problema com diferenças de classe social e que defendia algo que seus amigos moderninhos pregavam: a igualdade. Afinal, Os Panteras Negras, Martin Luther-King e Malcolm X estavam na moda! “Black was really beautiful!” Na hora de ficar ao meu lado, ela mostrou quem realmente era. Esqueceu-se rapidamente das vezes em que dançamos juntas noite afora, dos segredos que partilhamos, e de como era andar comigo de mãos dadas pelas ruas e atrair toda a tenção dos garotos mais bonitos, que só ficavam em público com ela, mesmo que me cobrissem de elogios, mas sempre me arrastavam para trás de algum muro. Afinal, eu era só a filha da empregada.

Dona Mirtes e ‘seu’ Nelson, os patrões de meus pais; aqueles que, quando chegavam, colocavam uma cama de armar no quarto das meninas para que eu fizesse companhia para elas e as distraísse, mas que quando iam embora, trancavam a casa à chave e recomendavam aos meus pais que não me deixassem brincar lá dentro. Quantas vezes eu quis assistir TV colorida e não pude! Ah, quantas vezes eu olhava para aquelas janelas trancadas e me lembrava daquela enorme banheira cheia de espuma, que eu não tinha autorização para usar!

E eles faziam questão de dizer a todos que éramos como se fôssemos da família… como se fôssemos… só que não éramos. Nunca fomos.

Não me lembro de nenhum deles tentando me encontrar quando eu fugi; não me lembro de nenhuma vez em que algum deles tentou interromper enquanto meu pai me batia. A não ser pela Yara. Nem sei se, após crescer e adquirir maturidade o suficiente, ela seria corrompida pelo mesmo preconceito da família, mas enquanto criança, Yara tinha o maior coração de todos. Durante os longos anos em que estive fora, era só nela que eu pensava, era só dela que eu sentia saudades.

Na verdade, antes mesmo de ir embora, fui escorraçada daquela casa. Proibiram minha entrada na sala. Todos esqueceram que eu existia. Nunca mais eu me sentei junto com a família. Só porque eu sorri, numa tentativa de ser gentil, para o noivo da patroinha. Dali em diante, ela me denominou “Cria da Casa.”  Mas o que mais me doeu, foi quando meus pais afirmaram que eu tentei seduzir Sebastian, o noivo da patroinha! Nem eles acreditaram em minha inocência. Talvez porque eu tinha fama de namoradeira. E eu era namoradeira sim. Eu me tornei aquilo que todo mundo esperava de mim. Era para trás de um muro que todos os meninos me levavam, e era para lá que eu achava que tinha que ir. Era ali que eles gostavam de mim, era ali que eu me sentia admirada. E mesmo eu só permitindo alguns amassos e beijos, eles saíam contando coisas que eu nunca tinha feito com nenhum deles, mas quem acreditaria em mim?

Eu cresci vendo Marcelo crescer, e acho que desde sempre eu fui apaixonada por ele. Mesmo quando ele não passava de um menino magro, alto e desengonçado, cheio de espinhas, eu já gostava dele. Ele só passou a me enxergar depois que eu fiquei mais velha, e ele também. Fomos apresentados um ao outro através dos nossos hormônios. Marcelo foi o meu primeiro homem, e eu fui sua primeira mulher. Perdi a conta das vezes em que ele afirmou que me amava, que era totalmente louco por mim e que se casaria comigo, e com nenhuma outra. Juramos amor eterno inúmeras vezes. Mesmo antes de fazermos amor. E eu acho que era sincero, pelo menos, eu achava. Era sincero da minha parte, e era sincero da parte dele também. A gente se amava. Mas Marcelo foi fraco, e teve medo do que os outros iam pensar, do que a mãe dele ia dizer – Aurora, aquela araponga empinada.

Fui embora, e aquela foi a melhor coisa que eu já fiz. Deixei para trás aquilo que todas as pessoas sempre me disseram, deixei de seguir o caminho que elas apontavam para mim, me recusando a caminhar por ele. Eu não deixaria que determinassem qual era o meu lugar. Fui procura-lo eu mesma.

Assim, quando deixei aquela casa apenas com a roupa do corpo e alguns trocados que eu economizara por anos da mesada que meu pai me concedia, segundo ele, para os meus alfinetes, eu fui parar direto na grande casa de fazenda de minha vó Helena. Ela nunca me vira, e eu nunca a vira. Pelo que percebi, os empregados sabiam da minha existência – deu para ver na expressão deles quando me apresentei como sendo neta de Dona Helena. Exigi que anunciassem a minha presença naquela casa.

Enquanto esperava em uma sala imensa, reparei no chão encerado e brilhante como espelho. Havia quadros nas paredes – pinturas que representavam a família em uma série de rostos que eu não conhecia, mas identifiquei características de meu pai, bem mais jovem, em um deles. Havia um que logo percebi serem de meus avós, juntos, ambos muito sérios. Ela tinha sido uma mulher bonita, mas de semblante frio. 

No centro daquela sala havia uma grande mesa com lugar para doze pessoas, e bem no meio dela, uma terrina de porcelana que parecia ser bem antiga. Era uma linda peça, e me aproximei para ver melhor, passando o dedo suavemente pela tampa onde estava retratada uma cena campestre. E foi assim que escutei a voz dela pela primeira vez, bem atrás de mim, me despertando com um susto, cortando o silêncio daquela sala, ecoando entre as paredes e indo bater no meu rosto feito um tapa.

-Quem é você? - ela disse. 

E eu me virei para encará-la. Uma mulher idosa, mas muito alta e de postura ereta, me fitava. Seus olhos azuis eram frios, e ela tinha cabelos totalmente brancos, presos em um coque na nuca. Engoli em seco, mas não perdi a coragem; empertiguei-me para encará-la, e respondi, sem tremor na voz:

-Sou Cristina, sua neta. 

Reparei no vestido preto que ela usava, de mangas compridas e abotoado até o queixo, apesar do tempo quente. Ela era magra e elegante, bem diferente do que alguém imagina sobre a avó que nunca conheceu. Helena era uma mulher forte. Uma mulher que não se dobraria facilmente, assim como eu, sua neta. Ficamos nos encarando longamente, até que ela finalmente disse:

-O que você quer de mim?

Sem hesitar, respondi:

-Conhece-la. Fiquei sabendo que estava viva há pouco tempo.

Ela pareceu relaxar um pouco, e fazendo sinal para que a seguisse, sentei-me ao lado dela em um sofá de assento de palhinha, muito antigo e desconfortável. Havia uma distância de mais ou menos um metro entre nós. Uma distância segura, eu diria. Helena olhava-me insistentemente, e o que ela estaria pensando era totalmente incógnito para mim. Seu rosto era inescrutável. 

Ela mexeu-se e alcançou um pequeno sino na mesinha ao lado do sofá, tocando-o levemente, e uma mulher de meia-idade apareceu:

-Jandira, traga-nos um refresco e algumas fatias de bolo. 

Jandira concordou com a cabeça e saiu em silêncio, sem me olhar. 

Lá fora passarinhos cantavam, e o sol estava alto. Dentro da casa, uma penumbra e um silêncio sepulcrais. A luz do sol entrava pelas frestas das venezianas fechadas, e por uma banda de janela entreaberta do outro lado da sala. Jandira voltou, depositando uma bandeja com suco e fatias de bolo na mesinha em frente a nós. Helena ficou me olhando, e ordenou que ela saísse, e depois disse para mim, secamente:

-Sirva-se. 

Agradeci, e com toda a sede do dia anterior, no qual viajara de ônibus a noite toda para chegar ali, enchi o copo duas vezes, mas não consegui comer nada, apesar da fome que sentia. Minha garganta estava seca, e eu sabia que não conseguiria engolir. Quando depositei o copo de volta na bandeja, ela falou novamente, e desta vez, a voz estava mais controlada e quase gentil:

-Seu pai telefonou para mim ontem, após tantos anos... confesso que foi estranho ouvir a voz dele. 

Fiquei surpresa ao saber do telefonema de meu pai.

-Ele me disse que talvez você aparecesse aqui, e me pediu para recebê-la em minha casa. Eu pensei muito. Decidi, a fim de resgatar os nossos últimos anos de distância, aceitar o pedido dele. Afinal, ele nunca me pediu nada, depois que... depois que ele foi embora desta casa. 

Tomei um gole de suco, tentando aliviar a secura na minha garganta. Minha avó me fitava insistentemente, sem a menor discrição. Pousei o copo de volta na bandeja, após esvaziá-lo. Não sabia muito bem o que dizer a ela, e tive a impressão de que estava sendo tão difícil para ela quanto para mim. Eu só tinha certeza de uma coisa: precisava convencê-la a me deixar ficar, pois eu não tinha para onde ir, nem dinheiro para pagar um lugar onde ficar. Mas ela mesma me poupou o esforço:

-Seu pai me contou sobre você. Disse que é muito impulsiva, exatamente como ele costumava ser. Engraçado como a história se repete! Você, apaixonada pelo patrãozinho branco...

Os olhos dela pareceram se perder de repente em recordações que eu não alcançava, e eu vi dor neles, por isso deixei passar a ofensa. Ela continuou:

- Vítor... - seu avô – era um homem muito severo e muito ligado em tradições. Sempre preocupado com o que a sociedade iria dizer. Quando nos casamos, eu era apenas uma menina tola e apaixonada pelo belo homem bem mais velho e de aparência forte, e foi melhor que eu estivesse apaixonada, pois meu pai já havia decidido que eu me casaria com ele. Ele determinava as ordens na casa. Ele expulsou seu pai daqui, e minha única alternativa, foi concordar. 

Sem saber bem o motivo, perguntei:

-Vocês foram felizes?

Ela respirou findo antes de responder, e sem me olhar, disse:

-E o que significa ser feliz? 

Só então ela me sorriu muito levemente. Eu encolhi os ombros, e não respondi, pois notei que ela não esperava uma resposta. Minha avó tocou novamente o sino, e Jandira voltou à sala, parando junto dela e aguardando as ordens. Minha vó disse:

-Prepare o quarto de hóspedes. O azul. 

E virando-se para mim, determinou:

-Você vai ficar comigo. Vai morar aqui, mas terá que trabalhar para se manter. A escola fica muito longe daqui, então contratei um tutor para ensiná-la aqui em casa a partir do próximo semestre. Estudará de manhã e trabalhará na casa durante a tarde. Fará o que lhe for mandado, e não questionará nada, entendeu?

A ideia de ficar presa naquele lugar ermo, sendo uma empregada, me apavorou. Eu não queria nada daquilo para mim. Eu queria a chance de ter uma vida diferente, uma vida melhor. Não queria voltar a ser uma empregadinha. Levantei-me:

-Agradeço, mas não vou ficar. Só queria conhece-la. 

Ela me olhou da cabeça aos pés, e após algum tempo, sem levantar-se, comentou:

-Você é mesmo muito bonita. Muito mais bonita do que seu pai me falou. Uma moça como você não pode ficar por aí, à toa. Logo será uma garota perdida na vida. Sente-se.

Não costumo obedecer a ninguém, mas eu me sentei. Minha face queimava, e minha garganta doía do esforço que eu fazia para não chorar na frente dela. 

-Você será o meu resgate. Sou uma mulher velha, e já cometi muitos erros na vida. Você é a oportunidade que Deus está me oferecendo de resgatar a minha entrada no paraíso, que pode ter certeza, não demorará muito mais tempo. Só por isso eu a deixarei ficar aqui em minha casa. Não pense que nutro por você qualquer tipo de afeto. Todo o amor que eu sentia foi-se embora desta casa no dia em que seu pai... meu filho... se foi com aquela... aquela...

Os lábios dela tremeram.

- Agora vá. Parece cansada, e precisa de um banho. Logo será chamada para que aprenda suas novas funções. Jandira estará no comando, e você deve obedecê-la em tudo. 

-E o que eu ganho com isso?

Ela se levantou, e mesmo que eu também tivesse me levantado, ela era bem mais alta que eu, e sua aparência era intimidadora. Ela ergueu o tom de voz, e o que disse ecoou pelas paredes da sala:

-O que você ganha? Casa. Comida, instrução. Um nome. Mas um teto sobre sua cabeça já seria o suficiente. Porém, nesta casa todos trabalham, pois ninguém come de graça. E você não será nenhuma exceção.  

Após um minuto de silêncio, ela voltou a falar no tom de voz normal, que era frio e decidido:

-Todos os empregados aqui já devem saber quem você é (ela ergueu a voz); Eles tem mania de escutar atrás das portas. (Nesse momento, ouvi um leve farfalhar e passos que se afastavam da porta da cozinha). Mas todos eles sabem também que você não é mais importante que nenhum deles, portanto, trate de se enturmar, se é que me entende. 

(Continua...)




4 comentários:

  1. Gostei da leitura:)!
    Beijos e um dia feliz.

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  2. Olá amiga!
    Passando para apreciar sua maravilhosa postagem e desejar-lhe um final de semana com muita saúde, paz, amor e felicidade.Bela história! Muito criativa, parabéns! Abraços da família RH.

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  3. Such an engrossing story, Ana...your amazing writing always lifts me above my ordinary daily life!
    Brilliant!!😊😊

    Big Hugs xxx

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  4. Boa tarde Ana,
    Gostei muitissímo do conto, forte, envolvente e elegantemente narrado. Vc é ótima, gosto de ler suas potentas inspirações.
    Votos de uma ótima semana
    Abraço

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