terça-feira, 22 de junho de 2021

AS ESTRELAS QUE EU CONTEI - Capítulo 3


 Capítulo 3

Lá pelos meus oito anos de idade, quase um ano após minhas estranhas visões com a vovó e as fadas pararem, eu comecei a ter sonhos igualmente estranhos. No primeiro deles, eu me vi andando em um caminho de terra entre árvores altas, e uma nesga de céu muito azul incidia sobre a estrada de terra. Eu não sabia como tinha ido parar ali, naquele lugar improvável, onde tudo era tão real e as cores eram tão diferentes do que eu estava acostumada a ver.  

De repente, vindo ao meu encontro, uma silhueta feminina se desenhou ao longe. Aos poucos, a mulher que se sentava sob a nossa árvore no quintal – minha avó se fez conhecer, sorrindo para mim. Quando ela chegou bem na minha frente, parou e me estendeu a mão, que eu segurei, dizendo:

-Eu sei quem você é. É a minha avó Dora.

-Isso mesmo, minha querida, sou sim. Já nos conhecemos. Está tudo bem com você?

- Tudo... mas você não falava antes.

Ela sorriu:

-Verdade. Mas aqui nós podemos conversar, lá não podíamos. 

Subitamente me lembrei de que aquela mulher que estava falando comigo e eu não pertencíamos ao mesmo mundo, e com a voz trêmula, indaguei: 

-Você... está morta?

Ela ficou séria de repente, e me olhando nos olhos, perguntou-me:

-Pareço morta para você?

Neguei com a cabeça.

-Então eu não estou. Quero que você sempre se lembre bem disso: ninguém está morto de verdade.

As últimas palavras dela se perderam em um eco dentro da minha cabeça enquanto eu abria os olhos para o meu quarto. Eu sabia o que eram os sonhos, e sempre que eu tinha algum sonho ruim e corria para a cama dos meus pais, mamãe afirmava, como qualquer mãe faria, que tudo era fruto da minha imaginação, e que nada daquilo que eu via enquanto eu dormia era real. Mas eu sabia, de alguma forma, que daquela vez não tinha sido apenas um sonho. Eram reais o cheiro das árvores, o céu, as cores, o chão de terra batido sob os meus pés nus, as rugas no rosto daquela que era minha avó e que eu nunca conhecera em vida.  Assim, naquela manhã de domingo, eu me sentei para o café da manhã na nossa mesa da cozinha totalmente absorta em meus pensamentos. Papai estava em casa naquele dia. Todos estavam comendo e conversando alegremente, mas eu não comia nem participava da conversa, até que mamãe me perguntou:

-Que bicho mordeu você, Chiara?

Eu olhei para ela, a boca entreaberta, tentando encontrar as palavras para dizer o que tinha acontecido, quando elas brotaram da minha garganta da seguinte forma:

-Mamãe, me conte sobre a vovó?

Ela e papai se entreolharam. Somente Sara não tinha percebido que o rumo da conversa estava mudando, e distraída, brincava com sua bonequinha, fazendo-a caminhar sobre a mesa.

Mamãe gaguejou:

-Por que você quer saber, filha? Que pergunta é essa, agora?

-Não sei... é que... de repente, me deu vontade de saber a história dela.

Papai brincou:

-Pretende escrever sobre ela em seu caderno de histórias?

Achei a justificativa bem plausível, e afirmei com a cabeça:

-Hum-hum! Mas para isso, tenho que saber sobre ela.

Papai olhou para mamãe, o semblante sério e preocupado, e eu não sabia por que uma pergunta tão simples e direta causara tanto constrangimento. Mamãe pigarreou, e tentou disfarçar, colocando mais um biscoito no prato de Sara, mas eu insisti:

-Vai me falar sobre ela ou não?

Papai interferiu:

- Bem, Vanessa, não acha que a menina tem o direito de saber quem foi a avó dela?

O tom dele era um pouco irônico, e mamãe o fuzilou com os olhos, mas me olhando, respondeu:

-Bem... acho que... não tem problema falar sobre minha mãe para você, afinal, ela era sua avó. Bem, o nome dela era Dora. Ela só teve duas filhas, ficou doente e morreu aos setenta e cinco anos. Isso é tudo.

Bati na mesa:

-E não aconteceu nada no meio? 

-Aconteceu sim, aconteceram... muitas coisas, mas eu não me lembro de tudo e não é bom ficar falando sobre quem já morreu. Atrai assombração.

Papai arregalou os olhos, e Sara finalmente começou a prestar atenção à conversa, enquanto papai ralhou com mamãe:

-Vanessa! Quer assustar as crianças? Ficou doida, é?

Mamãe levantou e começou a fazer o trajeto entre a mesa e a pia, retirando as xícaras sujas e desfazendo a mesa do café, os cabelos vermelhos dela soltos, dançando com o vento que entrava pela janela, os lindos olhos verdes arregalados:

-Não falo desse tipo de assombração, daquele tipo que eu já disse que não existe, mas um outro tipo, daquele que só fica dentro da cabeça da gente, criando minhocas. Entendeu? (Ela levou o indicador à testa, fazendo um movimento giratório para ‘maluco’). 

E a conversa acabou ali, com mamãe dizendo que nós íamos nadar no riacho antes do almoço (havia um riacho a poucos metros de nossa casa, uma pequena queda d’água onde alguns vizinhos se reuniam aos domingos). Aquilo foi o suficiente para me fazer esquecer de minha avó, e eu e Sara fomos procurar nossos biquinis. 

Porém, dias depois, o sonho com minha avó teve uma continuação:

Eu caminhava pela mesma estradinha de terra batida e já sabia exatamente o que aconteceria, que eu iria vê-la outra vez. De novo, ela parou bem diante de mim. Perguntei:

-Por que você está me trazendo aqui, vovó?

Ela se ajoelhou, para ficar da minha altura. Acariciou uma mecha do meu cabelo, afastando-a do meu rosto e colocando-a por trás da minha orelha (eu detestava quando os adultos faziam aquilo, mas fiquei quieta):

-Eu estou aqui porque eu queria conhecer você. E também porque... eu preciso te dar uma mensagem. A mensagem é a seguinte: você vai precisar ser uma garotinha muito, muito forte. E quando estiver triste, lembre-se sempre de ter me visto aqui, e que ninguém morre de verdade.

-Não entendo... 

-Não é agora que você precisa entender, Chiara. Mas no momento certo. Você e sua irmã são muito especiais.

Novamente, eu acordei em meu quarto, com os gatos ronronando sobre minhas cobertas.

Mais tarde, eu ouviria meu pai e minha mãe brigando novamente na cozinha. Aquilo acordou Sara, que pulou para minha cama, abraçando-se a mim. Tentei consolá-la:

-Não se preocupe, Sara, você sabe que eles brigam sempre, mas se adoram.

Ela choramingou:

-Não é isso...

-O que é então?

-É que eu tive um sonho estranho.

E então ela me contou um sonho muito parecido com o que eu acabara de ter.

Nós duas sabíamos que não adiantava contar nada a mamãe; ela tentaria mudar de assunto, ou acabaria nos dando uma bronca, caso insistíssemos. Juntas, chegamos à seguinte conclusão: iríamos perguntar sobre vovó à Tia Samira. 

E foi o que fizemos no final de semana seguinte, quando ela veio nos visitar com tio Helvécio e as crianças. Depois do almoço, tratamos de chamá-la para um canto do jardim longe da casa, enquanto mamãe ia tomar banho e papai e tio Helvécio assistiam a um jogo de futebol na TV. Eu e sara estivéramos ansiosas o dia todo por aquele momento. Os primos estavam em nosso quarto, brincando com um jogo de varetas que eu e Sara ganháramos de papai, portanto ninguém nos interromperia. Pegamos tia Samira pela mão e a levamos até o banquinho sob o pé de goiaba. Ela se sentou, disparando:

-Então, que mistério é esse?

Sara me cortou a fala:

-A gente quer... falar com você. Queremos perguntar uma coisa. Mas tem que ser rapidinho, antes de mamãe sair do banho, ela não pode saber.

Minha tia riu, franzindo as sobrancelhas, e eu continuei:

- Nós estamos sonhando muito com a vovó. Ela vem conversar com a gente. Queríamos saber mais sobre ela.

Tia Samira empalideceu. Balbuciou:

-Já perguntaram à mãe de vocês?

-Já, mas ela não fala nada! Era nossa avó, temos o direito de saber.

Minha tia riu diante da minha fala, acariciando meu queixo angustiado.

- Bem... não sei se devo desobedecer a mãe de vocês. Eu tenho uma ideia: se vocês sonham sempre com ela, por que não perguntam a ela?

Nós duas nos olhamos, frustradas. Sara choramingou:

- Porque não dá tempo. É tudo tão rápido, tia! A gente até se esquece.

Minha tia acariciou a cabeça de Sarah, traçando com os dedos o curso dos seus cabelos até a cintura. Finalmente, ela concordou:

- Ok. Vou falar sobre a avó de vocês. O nome dela era Dora.

- Isso a gente já sabe, - disse Sara. – Queremos saber coisas mais interessantes. Do que ela gostava? Ela era boa? Ela ...

Minha tia a interrompeu:

-Calma, calma! Vamos fazer o seguinte: eu falo e vocês escutam, está bem?

Dizendo aquilo, ela nos puxou para nos sentarmos ao lado dela.

-Bem... minha mãe – avó de vocês - era uma mulher muito forte e determinada.

Interrompi:

-O que é determinada?

- É quando uma pessoa sabe exatamente o que quer fazer, e faz o que quer.

-Então ela era igual à mamãe.

Ela concordou com a cabeça, após pensar um pouco. Tia Samira continuou, os olhos dela se revezando entre as nuvens rosadas do final da tarde e os nossos rostos ansiosos.

- Mamãe também era bastante mandona... às vezes era complicado, até para o avô de vocês, conviver com ela. Mas era uma ótima pessoa, sempre pensando no bem de todo mundo, querendo resolver todos os problemas. 

- Do que ela morreu? – perguntou Sara.

- Ela ficou muito doente, por muito tempo. Foi logo depois que sua mãe e seu pai se casaram. Naqueles tempos, sua mãe estava grávida de você, Chiara. Sua avó morreu pouco antes de você nascer.

Eu tinha oito anos na época daquela conversa, e Sara, sete. Contei nos dedos: oito anos eram toda a minha vida, e parecia um longo, longo tempo. De repente, me ocorreu uma pergunta:

-A vovó estava zangada com a mamãe quando morreu?

Minha tia arregalou os olhos:

-Por que você pergunta isso?

-Porque ela nunca fala da vovó pra gente. Nem quando a gente pergunta. Um dia ela levou a gente lá no cemitério e falou que a vovó estava enterrada ali, mas ela nem chorou, só colocou umas flores e então nós fomos embora. Por que ela está zangada com a vovó?

Minha tia, sem saber o que dizer, olhou no reloginho de pulso:

-Está ficando tarde! Vamos entrar porque daqui a pouco seremos devoradas pelos mosquitos.

Sara insistiu:

-Mas tia, a senhora ainda não nos contou tudo sobre a vovó!

Minha tia engoliu em seco, e tentou sorrir, já se levantando do banco e nos puxando pela mão em direção à casa:

-Vamos entrar. Outro dia eu conto mais. Além disso, daqui a pouco Vanessa vai ficar desconfiada da nossa ausência. Não digam a ela que eu falei sobre a avó de vocês, ou ela vai ficar uma fera... vamos indo, está escurecendo.

E foi tudo o que ela nos contou. Mas com toda certeza, de alguma maneira minha mãe ficou sabendo da nossa conversa. Eu acho que foi papai quem contou, pois quando estávamos chegando na casa, nós o vimos caminhando na nossa frente. Acho que ele escutou parte da nossa conversa. Ele não disse nada, apenas ficou muito calado e pensativo, fuzilando minha tia com os olhos a noite toda. Na manhã seguinte, domingo, a bomba explodiu, e foi no café da manhã, quando estávamos todos reunidos na cozinha. Tia Samira e Tio Helvécio tomavam seu café calmamente, e nós, crianças, já brincávamos do lado de fora, quando ouvimos os gritos de mamãe, que entrou na cozinha feito um furacão:

- Você é minha irmã, mas eu não te dou o direito de interferir na educação das meninas. Sou muito grata a você, Samira, e a você, Helvécio, mas eu não quero saber de interferências. Tem certas coisas que eu não quero contar agora e pronto!

Nós, crianças, nos entreolhamos; já sabíamos o que deveríamos fazer: nos aproximamos da janela da cozinha e nos sentamos debaixo dela, de onde poderíamos escutar toda a conversa. Joana e Décio tiveram um pequeno desentendimento em uma disputa sobre o melhor lugar para se sentarem, e eu os silenciei com um ‘sshh...’ zangado. Tia Samira respondeu:

-Desculpe, Vanessa, não quis interferir... é que elas me pegaram de surpresa e eu não sabia o que dizer.

Naquele momento, escutamos uma risada sarcástica de papai:

-Você, sem saber o que dizer, Samira? Você sempre tem o que dizer, mesmo quando nada lhe diz respeito.

Tio Helvécio tentou apaziguar a situação:

-Calma, pessoal, as crianças vão ouvir! Não briguem, discutir nunca é a melhor solução. Samira fez apenas o que achou melhor, e já pediu desculpas.

Tia Samira ralhou com ele:

-Não precisa me defender, Helvécio, isso é assunto de família.

Ela sempre fazia aquilo:  toda vez que tio Helvécio tentava dar uma opinião em questões familiares, ela fazia questão de lembrá-lo do quanto ele era ‘de fora.’  Mas ela nunca dizia nada daquilo em relação a papai, mesmo não gostando dele. Apesar de ser bem criança naqueles tempos, eu ficava com muita pena de Tio Helvécio, pois percebia que ele se sentia muito magoado, apesar de nunca tentar se defender ou responder. Minha mãe disse, já mais calma, referindo-se à irmã e ao cunhado:

- Vocês sabem o quanto mamãe foi contra meu casamento com Pedro. Sabem que tive que cortar relações com ela, e que por causa disso, ela nunca sequer nos visitava. Vivia dizendo que eu seria infeliz no casamento. Nem mesmo depois que adoeceu ela deixou que Pedro chegasse perto dela. Por que trazer à tona coisas tão desagradáveis para as crianças?

Samira respondeu:

- Talvez porque elas vêm sonhando com ela quase todas as noites? Porque elas estão fazendo perguntas? Ou então... porque elas têm o direito de saber a verdade.

- Você não entende? Chiara tem apenas oito anos, e Sara, sete! São muito pequenas ainda.

- Mas então por que elas andam sonhando com a mamãe? Você sabe, eu sempre achei que elas... principalmente Chiara... são médiuns.

Mamãe ergueu novamente a voz:

-Eu não quero saber dessas coisas aqui, já bastava a mamãe. Vivia falando em espíritos, fantasmas e coisas do gênero. Crescemos assombradas pelas crenças dela. Minhas filhas são crianças normais.

-Sim, tão normais, que Chiara enxergava fadas no jardim.

Papai riu novamente:

-Ora, crianças têm imaginação. Deve ser por causa dos livros que a professora lê para elas na escola.

-É? – disse Tia Samira - Então por que as minhas crianças nunca viram nada disso?

Fez-se um silêncio mortal, e nós só escutamos cadeiras sendo arrastadas – eles estavam se sentando novamente; o pior da tempestade já havia passado. Nós crianças nos entreolhamos e decidimos que não haveria mais nada de interessante a ser ouvido, e pé ante pé, nos afastamos da janela, curvados, para não sermos vistos.

Então, naquele dia, ao ouvir a conversa, ficamos sabendo de parte da história: vovó não queria que nossos pais se casassem, e por isso, afastou-se de mamãe e de nós todos. Ela achava que meus pais não seriam felizes. E eu pensei, por um momento, após me lembrar de ter escutado tantas brigas dos dois, que talvez ela tivesse razão. Mas quando minha mãe e meu pai se olhavam, dava para sentir o quanto eles se amavam. A relação deles era apaixonada e tumultuada, feita de altos e baixos – mais baixos do que altos, ok, mas eles se amavam, e quanto a isso, não havia dúvidas.

A fim de não causar mais brigas de família, achei melhor seguir a sugestão de tia Samira e perguntar à vovó as coisas que eu desejava saber. Assim eu fiz, na próxima vez que eu a vi em um sonho, e ela me disse:

- Eu só queria tentar fazer com que sua mãe não fosse infeliz. Queria poder ter evitado o que está para acontecer. Só isso. Eu errei: não se pode ir contra o destino.


 (continua...)





2 comentários:

  1. Such a beautiful and touching story😊
    I'm so enjoying reading this, and am really looking forward to the next instalment!
    Thank you so much for sharing your wonderful talent with us.😊😊
    Have a good day, dear Ana!

    Hugs xxx

    ResponderExcluir

Obrigada por visitar-me. Adoraria saber sua opinião. Por favor, deixe seu comentário.

A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...