A RUA DOS
AUSENTES
PARTE 1 – A RUA E A CIDADE
Algumas pessoas acreditam que as casas têm
almas. São vestígios e influências das almas que as habitaram ao longo dos
anos, mas também possuem uma alma própria, uma personalidade, que se cria
independentemente de quem vive ou viveu nelas. O Feng Shui ensina que há vários
fatores que influenciam a energia de uma casa: o local onde ela é construída,
se é voltada para o norte ou para o sul, se os cômodos são harmoniosamente
distribuidos, se os habitantes são pessoas que brigam muito ou se são
pacíficos, se passam veios d’água sob o terreno, etc., e cada um desses e de
outros fatores não mencionados aqui
dirão se uma casa e suas energias são saudáveis ou não.
Para outras pessoas, uma casa nada mais é do
que um lugar para onde se volta à noite após o trabalho, como um dormitório,
uma caixa que os abriga apenas. Não se preocupam sequer em decorá-la ou
limpá-la, nem sentem qualquer vínculo com ela. Ao escolherem uma moradia, levam
em conta somente a conveniência do local onde ela se encontra, sem se
importarem com coisas como a vizinhança, o barulho, se há árvores por perto ou
não. Basta que esta casa ou apartamento estejam situados próximos ao local de
trabalho ou estudos.
As casas da Rua do Silêncio, que ficava na
pequena cidade montanhosa de Pico Negro, eram todas construídas há mais de cem
anos (dizem que, algumas delas, há mais tempo do que isso) são da primeira espécie. Pelo menos, é o que
a história conta. A Rua do Silêncio, segundo dizem, foi escolhida por antigos
membros de uma seita misteriosa devido à sua proximidade com um bosque, que
fica bem ao final desta rua sem saída, e das muitas árvores antigas, que
existiam antes das construções e que foram preservadas até os dias atuais. Era
uma rua larga, de calçadas também largas, e as casas ficavam alguns bons metros
de distância umas das outras. O bosque era cercado por um lago muito profundo,
e a única entrada por terra era através da rua. Devido às lendas que foram
crescendo ao longo dos anos (e de alguns afogamentos que ocorreram no local, de
adolescentes que decidiram desafiar uns aos outros nadando no lago nos anos
setenta), os moradores da cidade evitavam o local, alegando que seria perigoso
ou até mesmo, assombrado.
Também era fato conhecido (embora ninguém mais
se lembrasse de como eles haviam surgido) de que a geometria das casas seguia
uma ordem estabelecida, e que todas elas tinham o mesmo número de cômodos,
dispostos exatamente da mesma maneira. Todas elas eram casas brancas. Todas
elas ficavam no fundo do terreno, tendo a parte dos fundos bem próxima e
voltada para a floresta, totalmente impossível de ser avistadas por quem
passasse na rua (mesmo que apenas os próprios moradores o fizessem). Todas elas
tinham um pequeno lago com uma fonte no terreno do jardim da frente, e a água
de cada fonte jorrava das mãos, jarras ou
bocas de figuras mitológicas, como Pan, Diana, dragões, fadas, etc.
Por causa do grande número de árvores dispostas
em ambos os lados, a Rua do Silêncio não era exatamente uma rua ensolarada e
luminosa. O sol incidia principalmente no verão, entre oito da manhã e cinco da
tarde, sendo filtrado pelas folhas das árvores e indo iluminar os quintais
protegidos por grades de ferro. Já nos meses mais frios – final de outono e
todo o inverno – o grande astro dava o ar de sua presença apenas entre dez da
manhã e duas da tarde, pois passava rente às copas das árvores do bosque. Sendo
assim, o musgo grudava em espessas camadas de veludo verde escuro nos cantos
dos muros, calçadas e troncos de árvores, e a rua tornava-se especialmente fria
e úmida nesta época.
Não era qualquer pessoa que tinha acesso à Rua
do Silêncio; sendo uma rua sem saída, era também uma rua com entrada limitada
por uma guarita, sempre vigiada. Apenas os moradores e seus convidados podiam
entrar. Por esse motivo, e também devido às histórias contadas sobre as pessoas
que lá moravam e a seita misteriosa à qual pertenciam, entrar na Rua do
Silêncio era como um rito de passagem para grupos de crianças e adolescentes,
que apostavam que seriam capazes de circundar a guarita pela mata e de, entrando
na rua, pular a cerca de alguma casa, tocar a campainha e sair correndo antes
de serem descobertos.
E assim tem sido por muitos anos, desde que a
rua existe, e muitas das histórias contadas (ou inventadas) sobre os moradores
e suas casas vinham dessas visitas furtivas feitas pelos adolescentes – embora
com a total desaprovação dos pais destes.
As treze casas eram daquele tipo de casas dos
tempos em que as construções eram obras de arte: o esmero estava presente em
cada detalhe, grade, formato de telhado (todas elas tinham a fachada de chalés
vitorianos, com algumas variações) e jardins. As casas tinham roseiras de
várias cores, e também folhagens exóticas que não eram encontradas facilmente
entre as plantas locais. E tudo parecia crescer e florescer sem muito esforço,
assim como o musgo nos caminhos de pedras que levavam do portão às portas de entrada
das casas. Havia total harmonia entre as construções, mas mesmo assim, mas
dizia-se que cada casa tinha a personalidade de quem nela morava.
Sim, o verbo está no passado. Porque nos dias
de hoje, dizem que ninguém mais vive na Rua do Silêncio – a não ser Lázaro, o
vigia, um homem muito velho, de cuja idade ninguém se lembra mais, porém cada
pessoa daquele bairro afirma têlo conhecido quando criança, e ele já era velho
desde então. Em tempos antigos, Lázaro era visto na mercearia, nas farmácias,
nos mercados e demais estabelecimentos comerciais, sempre dirigindo um elegante
Buick preto cuja origem era desconhecida – (alguns diziam que tinha sido presente
de um dos moradores da rua), fazendo compras e cumprindo tarefas que lhe eram
encomendadas. Porque os habitantes não eram de sair muito, nem de se relacionar
com outras pessoas que não morassem na Rua do Silêncio. Lázaro respeitava a
privacidade de seus patrões e jamais tecia qualquer tipo de comentário sobre
suas vidas. “Era mais fiel do que um cão,” as pessoas diziam. Talvez por isso
tivesse mantido seu emprego há tanto tempo.
E nos dias de hoje, todos afirmam que o vigia
atual é outra pessoa, pois não seria possível que alguém vivesse por tantos
anos, já sendo tão velho. Ninguém se lembra mais quando Lázaro tinha começado a
trabalhar como vigia na Rua do Silêncio, ou quem cumpria sua função antes dele,
e quando alguém toca no assunto, durante as conversas tardias nos bares do
bairro, ou nas calçadas onde mulheres seguram suas vassouras e fingem estar
varrendo, as pessoas ficam estranhamente confusas e acabam mudando de assunto.
Os antigos dizem que os moradores das treze
casas da Rua do Silêncio eram pessoas muito misteriosas. Era difícil ver uma
delas, pois quando saíam de casa, era quase sempre no final da tarde ou à
noite, em seus carros luxuosos cujas janelas estavam sempre fechadas. Ocasionalmente,
porém, alguém dizia ter visto um deles, dizendo ser pessoas muito elegantes
que sempre vestiam marrom, preto ou
cinza. Mas quando alguém pedia mais detalhes sobre eles, ninguém conseguia se
lembrar de mais nada. Era estranho.
Dizem que havia crianças em algumas casas, mas
elas não frequentavam as escolas locais, nem tinham amigos na vizinhança.
Duas gerações viveram e morreram naquele
bairro, e por isso, a Rua do Silêncio foi aos poucos sendo esquecida,
tornando-se uma lenda muito vaga, uma história que os antigos contavam, algo
como uma lenda urbana, e apesar da presença constante na guarita de um homem velho com cara de poucos amigos
que diz chamar-se Lázaro, ninguém tem mais paciência de ficar especulando sobre
mais nada. E assim, todos concluíram que os moradores das treze casas da Rua do
Silêncio já tinham ido dessa para melhor ou se mudado para outros locais, e que
as casas estão todas desabitadas, e que os herdeiros, desinteressados nos
antigos mausoléus cuja manutenção deveria custar muito caro, mantém Lázaro na
guarita apenas para vigiar o que resta do seu patrimônio até que as casas sejam
vendidas. Mesmo assim, ninguém parece interessado em comprá-las.
Apesar da placa enferrujada onde se lê “Rua do
Silêncio,” as pessoas se referem ao local apenas como Rua dos Ausentes,
justamente por acreditarem que ninguém mais mora ali, a não ser Lázaro, que
habita uma casinha modesta no começo da rua, junto à guarita.
O restante do bairro tinha sido invadido pelo
progresso, mas a Rua dos Ausentes conserva-se intacta, imutável, com todos os
seus mistérios e segredos imaginados e inimagináveis.
Se há algum poder mágico sobre a rua que faz
com que os moradores da cidade a deixem em paz nos dias de hoje, é controverso.
Alguns acreditam que sim, há alguma coisa estranha a respeito da rua; já
outros, menos supersticiosos, declaram que é tudo bobagem, uma lenda criada
pelos próprios moradores para que ninguém invada suas propriedades.
Se você chegasse junto à guarita nos dias de
hoje e olhasse através das grades de ferro, veria além delas uma curva fechada
em rua larga de paralelepípedos cobertos de musgo, ladeada por pinheiros e
eucaliptos. Mal conseguiria vislumbrar a ponta do telhado da primeira casa, que
fica à direita. E é claro, veria também a casinha branca encardida pelo musgo e
pelo passar dos anos onde habita nosso controverso Lázaro (ou seja lá quem
for). Há, quase sempre, fumaça saindo pela chaminé. Raramente alguém vê Lázaro
na cidade nos dias atuais, pois dizem que ele se rendeu à tecnologia e faz a
maior parte de suas compras de casa, através da internet. Mas ninguém tem
certeza. As pessoas adoram especular sobre a vida alheia. Os mais imaginativos
afirmam que Lázaro se alimenta de caça e pesca, e de algumas coisas que ele
mesmo cultiva. Na verdade, ninguém sabe.
A Rua dos Ausentes (vamos usar este nome, o
mais popular, daqui em diante) e suas histórias estiveram adormecidas por
muitos anos, desde que o último morador foi visto. Mas ela não morreu; suas
casas permaneceram adormecidas (quem sabe, seus estranhos moradores também
estivesse imersos em um profundo sono), esperando que alguma coisa acontecesse.
Quase esquecida, a rua aproveitou-se da passagem do tempo para criar novo
fôlego. E na calada da noite, enquanto a cidade dormia, algo estava em ebulição
dentro daquelas casas, saido pelas chaminés e subindo pelos troncos das
árvores, indo mergulhar nas profundezas verdes do lago.
E foi em uma manhã fria de junho, sexta-feira
13, que a cidade ainda sonolenta de Pico Negro viu chegar um antigo carro
fúnebre preto reluzente, dirigindo vagarosamente pelas ruas geladas pelas temperaturas baixas da noite,
indo em direção à Rua dos Ausentes. As crianças que estavam a caminho da escola
paravam boquiabertas, apontando para ele. Os donos das pequenas casas
comerciais, mercadinhos e padarias chegavam até as portas de seus
estabelecimentos, seguidos por funcionários mais afoitos que logo eram enxotados
de volta para os seus postos de trabalho, todos eles tecendo comentários
especulativos em voz baixa.
Sr. Antônio, português de nascença, um homem de
sessenta e dois anos que vivia com sua esposa Maria e proprietário da Padaria
do Pão Português, torceu o bigode, e sua esposa (mais velha que ele alguns anos
e que ostentava um buço considerável) repetiu o gesto do marido.
Logo, o Mario’s único pub da cidade, estava
cheio àquela hora nada usual. As doze mesas de quatro cadeiras cada e o velho
balcão de madeira escura com dez assentos encontravam-se totalmente lotados, e
algumas pessoas permaneciam de pé, espalhadas em grupos de três ou quatro,
todos bebericando cafés e chás batizados com licores e rum.
E foi por volta do meio-dia que o carro fúnebre
passou de volta, cruzando novamente o centro da cidade em direção à estrada. As
pessoas deixaram seus afazeres novamente para observar a fumaça do cano de
descarga desaparecendo em direção ao sol.
Não posso deixar de te agradecer; obrigada por me seguir. Amei, de verdade!!!!
ResponderExcluirBju!
Olá, Ana
ResponderExcluirQue história maravilhosa e, ao mesmo tempo, misteriosa. Sim, há pessoas que acreditam que as casas detêm as características das almas das pessoas que nelas viveram. E que a disposição em que as construções são feitas também tem influência.
A Rua do Silêncio e depois a Rua dos Ausentes tem muito que se lhe diga. Virei ver no próximo episódio para onde se dirigirá o tal carro fúnebre. E se ficamos a saber do segredo de Lázaro, que afinal já não será Lázaro nos tempos actuais.
Beijinhos
Olinda