quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

 





PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA

 

Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio fustigava seus cabelos, fazendo com que eles cobrissem seu rosto de vez em quando. Ela tinha as mãos nos bolsos do sobretudo de lã marrom, que estava um tanto surrado, e vestia calças jeans desbotadas, as pernas justas para dentro das botas longas de camurça. Em volta dela, um grupo de pombos e passarinhos marrons se alimentavam do alpiste que ela jogava no chão de vez em quando.

Já estava sem emprego há quase duas semanas, e a casa ainda não tinha sido vendida. Porém, ela estava otimista, pois naquela tarde, o corretor anunciou que receberiam um cliente em potencial. E ela pensava que estava vendendo sua casa sem sequer ter para onde ir. Pela primeira vez na vida, sentiu um arrepio de medo na base da espinha, e exatamente naquele momento, uma voz que não era dela falou alto dentro de sua cabeça:

-Não se preocupe! Tudo vai dar certo, e você vai ser feliz.

Ela olhou em volta, procurando alguém que pudesse estar por perto, mas não viu ninguém. Estava frio demais, e o parque se encontrava quase vazio. Ela começou a caminhar de volta para sua casa, que não ficava muito longe dali.

Eduína ainda não sabia, mas naquela manhã, seu destino estava sendo desenhado com cores fortes e precisas. Porque na cidade de Pico Negro, um advogado taciturno e idoso preparava uma carta que seria enviada para ela naquele mesmo dia, convidando-a para a leitura do testamento de sua bisavó Évora Siqueira Camargo – de cuja existência Eduína sequer suspeitava.

Tudo então começou a acontecer rápido demais: o visitante adorou sua casa, e na manhã seguinte, foram ao cartório efetuar a transferência do imóvel, pagando à vista. Deram-lhe 30 dias para entregar o imóvel. Mas ela sabia que não precisaria de tanto tempo. Ao mesmo tempo, vendeu também o terreno. E quando ela voltou para casa naquela tarde, encontrou o sóbrio envelope de cor creme na sua caixa de correio. Dentro dele, além do convite para a leitura do testamento, havia uma passagem de avião.

Eduína, que sempre fora uma moça calma e quase fria, de repente se viu em um turbilhão. Não sabia que tivera uma bisavó. E esta bisavó era a avó de sua mãe verdadeira, que ela nunca conhecera. Pensou, pela primeira vez na vida, que em algum lugar, ela tinha ou tivera uma família de verdade, que era sangue do seu sangue, e que eles a tinham mandado embora quando criança.

Ela não estava familiarizada com aqueles sentimentos. Na verdade, ela nunca estivera muito familiarizada com qualquer sentimento intenso, e ela não gostava daquilo. Uma coisa, era ter a impressão de que seu destino estava escrito, e outra, era recebê-lo dentro de um envelope e ter que pegar um avião indo para uma cidade distante e estranha para encontrar alguma coisa que ela ignorava totalmente.

Era a primeira vez que Eduína viajaria de avião. Não tinha medo, estava se sentindo confortável na primeira classe, paparicada pelos comissários de bordo bonitões que flertavam com ela. Quando o avião decolou, ela sentiu um leve arrepio na base da coluna, mas logo se acalmou, e duas horas mais tarde, estava de pé no aeroporto, onde um senhor de idade com a cara fechada segurava um cartaz com o nome dela.

Lázaro carregou a única bagagem da moça para o Buick preto, cumprimentando-a entre os dentes, e Eduína não tentou ser simpática. Seguiram mudos todo o trajeto até a Rua dos ausentes, e ela reparou que por onde passavam, as pessoas seguiam o carro com olhares curiosos. Lázaro estacionou em frente ao portão de ferro da guarita e saiu do carro para abri-lo. O portão rangeu. Enquanto ele dirigia vagarosamente pela Rua dos Ausentes, Eduína contemplava as mansões antigas e sombrias, as árvores centenárias e os paralelepípedos entremeados de musgo verde-escuro aveludado. Era como se estivessem em uma realidade paralela, totalmente diferente do clima alegre e festivo da pequena cidade por onde tinham acabado de passar.

A rua era quieta, e ela não via viva alma. Os casarões silenciosos pareciam guardar segredos. Eram como pessoas idosas de olhos fechados, mas prontas para despertar a qualquer momento. Ela falou pela primeira vez, dirigindo-se a Lázaro:

-Não mora ninguém aqui? As casas estão todas vazias?

Lázaro grunhiu uma resposta:

- Algumas estão vazias, outras não.

Ela quase perguntou uma outra coisa, mas foi interrompida por ele:

-Chegamos. É esta a sua casa. Foi devidamente pintada e limpa, e a despensa e o freezer estão abastecidos. O advogado a espera na sala de estar. Pode entrar, a porta está aberta. Se precisar de alguma coisa, moro na casa branca junto à entrada.

Eduína olhou para a casa imponente e quase ameaçadora, e não conseguiu acreditar no que via.

-O senhor disse ‘minha casa?’

Lázaro saiu do carro e colocou a bagagem de Eduína na entrada, junto ao portão. Depois, entrou no carro e saiu sem despedir-se dela.

A moça respirou profundamente. Reparou na beleza do lugar, que embora sombrio, parecia seguro. Havia muitos pássaros nas copas das árvores, e eles pareciam observá-la. Também avistou alguns esquilos, e junto ao portão, encontrou um gatinho preto que a seguiu para dentro da casa. Ela empurrou a pesada porta de madeira, que rangeu, saudando-a.

Adentrou o living de piso de mármore preto e branco, onde deixou sua bagagem, e caminhou vagarosamente pela sala de estar, onde uma grande  lareira que ocupava toda uma parede tinha sido acesa. Em volta dela, sofás de veludo verde escuro, e uma escura mesa de centro de madeira pesada, cujos pés imitavam patas de leão. As paredes pintadas de creme suavizavam a austeridade da mobília. Ela olhou para sua esquerda, onde viu um senhor de costas para a porta, sentado à mesa da sala de jantar examinando documentos. Ele parecia ser muito idoso. Eduína pigarreou a fim de chamar sua atenção, e ele se levantou vagarosamente, apoiando-se na mesa.

-Boa tarde, senhorita Eduína! Sou o Dr. Ferdinando Alves. Prazer em conhecê-la.

Ela ensaiou um sorriso que não surgiu nos lábios:

-Olá, como vai?

Ele fez sinal para que ela entrasse na sala de jantar, e se sentasse em frente a ele. Eduína percebeu que suas mãos estavam geladas, e torceu os dedos sob a tampa da mesa. Dr. Alves deu início à leitura do testamento. Equanto ele lia, ela olhava em volta e via retratos pintados de uma mulher, que concluiu que deveria ser sua avó quando jovem, e de algumas outras pessoas que presumivelmente, eram membros de sua família desconhecida. Todas as pinturas retratavam pessoas sérias e elegantes.

Ao final da leitura, ele limpou os óculos:

-Você tem alguma pergunta?

Eduína escutou um relógio bater quatro horas da tarde. A sala começava a escurecer.

-Então... esta casa é minha, e tudo que tem nela me pertence? E também todo esse... dinheiro, propriedades, e até mesmo um avião? Eu sou uma mulher rica?

Ele acenou com a cabeça, concordando, enquanto recolocava os óculos.

-Mas... e os demais membros da minha família? Onde estão?

-Uma coisa de cada vez, mocinha. Por enquanto, instale-se e descanse. Alguém virá amanhã de manhã para assumir os cuidados com a casa, uma arrumadeira e uma cozinheira. Elas já trabalham aqui há muito tempo, desde que sua mãe nasceu. Com o recente passamento de sua bisavó, elas se retiraram por alguns dias. Mas logo estarão de volta.

Eduína finalmente acreditou que tudo aquilo era verdade: aquela casa, onde sua mãe tinha nascido e que pertencia à sua família há mais de duzentos anos, agora era sua. Mas por que ela tinha sido deixada em um orfanato, para que alguém a adotasse, já que eram todos tão ricos?

Após a saída de Dr. Alves, ela decidiu conhecer a casa.

Aquele que seria seu quarto tinha sido arrumado e limpo, e lençóis frescos e perfumados cobriam o colchão de molas macio. Encimando a arrumação da cama, um belíssimo edredom de penas de ganso totalmente branco e travesseiros que de tão macios, pareciam nuvens. A lareira do quarto tinha sido acesa. Uma muda de camisola e robe de cetim tinha sido deixada sobre a cama, junto com um par de pantufas emplumadas cor de creme.

Ela foi até o banheiro, e ao avistar a enorme banheira de louça bem no meio do cômodo, imediatamente começou a enchê-la; sentia-se em um cenário de filme. Entornou na água os sais de banho perfumados e também o líquido sedoso e perolado que produziu uma espuma branca  e densa. Eduína deixou-se ficar ali, e acabou adormecendo. Acordou uma hora e quinze minutos depois, e deu com o gato preto que entrara na casa sentado em frente a banheira, fitando-a calmamente.

Ele a seguiu de volta para o quarto, esperando no tapete enquanto ela se vestia. Seu estômago deu sinal, e Eduína lembrou-se que ainda não comera o dia todo, e já tinha anoitecido. Ela foi para a cozinha, seguida pelo seu novo amigo silencioso. Ao abrir o armário para encontrar ingredientes para um sanduíche, deparou com latas de comida para gatos arrumadas em uma prateleira. Eram dezenas delas. O gato miou, a cauda erguida, andando em volta dela. Eduína serviu-o, pensando que ele morava ali afinal, e deveria ter pertencido à sua bisavó.

Ela encontrou uma terrina de sopa ao abrir a geladeira, e torrando o pão do armário, aqueceu a sopa e começou a comer. Nunca tinha comido algo tão maravilhoso, e era apenas uma simples sopa! “A fome é o melhor tempero”, ela pensou.

Ao terminar de comer e passar pelo corredor, casualmente olhou-se no espelho e percebeu que estava diferente: ainda era a mesma Eduína de sempre, mas incrivelmente, sua beleza aumentara. Ela não sabia explicar o que havia acontecido, apenas que sua pele estava imaculada, sem nem mesmo as sardas discretas que ela sempre tivera sobre o nariz. Os olhos tinham um brilho mais vivo, e os cabelos, que já eram bonitos, estavam mais cheios e sedosos que antes. O contorno do seu corpo também mudara, tornando-se mais elegante. Eduína pensou: “Já faz tanto tempo que eu realmente não me olhava no espelho, que nem tinha reparado no quanto sou bonita. É isso.”  Mas ela sabia instintivamente que não era só aquilo. Havia alguma coisa estranha com aquela casa e aquela rua. E até mesmo, com aquele gato, que a seguia religiosamente aonde quer que ela fosse.

Eduína sentou-se um pouco no sofá de veludo verde da sala de estar, olhando as brasas da lareira ainda estavam acesas. O gato sentou-se na poltrona em frente a ela, as patas dianteiras sob o corpo como um perfeito iogue de olhos entreabertos. Ela o chamou, fazendo sinal para que ele se aproximasse, e ele imediatamente pulou da poltrona e subiu no sofá, acomodando-se ao lado dela, a cabeça em seu colo. Eduína acariciou-o até que ele adormecesse.

Ela acabou adormecendo logo em seguida.

Despertou de repente, mas em torpor, sem conseguir abrir totalmente os olhos ou mover o corpo. Vislumbrava pessoas cochichando em volta dela, e rostos opacos que se aproximavam do rosto dela, observando-a, mas ela não conseguia falar ou se mover. Mas não sentia medo. Estava tranquila, pois estava em família. Nada tinha a temer. Sabia que tomariam conta dela. E o gato velaria por seu sono.


(continua...)


 

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