quinta-feira, 17 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVII











O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVII




Era uma tarde de domingo, e Regiane tinha ido visitar as tias no casarão a fim de contar-lhes a novidade sobre os irmãos recém-descobertos. Fiorela não deixou por menos: ao saber da carta que a sobrinha recebera de São Paulo, informando-a da existência de seus irmãos, ficou apavorada diante da possibilidade de um escândalo, e tentou convencer Regiane de que seria melhor não conhece-los:

-Ora, pense bem, Regiane: estes meninos – como é mesmo que se chamam? Pedro e Antônio, não é? Foram criados longe de você, nunca a viram e você nunca soube deles antes, portanto, não sentiu-lhes a falta; por que remexer neste passado tão confuso e sofrido? Você tem agora quinze anos – oficialmente, dezessete; o que significa que estes meninos tem treze e onze anos hoje, tão mais novos que você... que tipo de amizade poderia surgir daí? Melhor deixar o passado no passado!

Regiane mal podia acreditar no que estava ouvindo, mas não ousou responder a tia. 
Rosa tricotava um casaquinho para a pequena Cléia, e franziu a testa ao escutar a irmã:

-Por que você é sempre tão fria, Fiorela? Você ignoraria a existência de irmãos, caso os descobrisse? Eles são a família dela! E se pensarmos bem, também fazem parte da nossa.

-Ora, não diga bobagens! Era só o que me faltava, se nem laços sanguíneos existem entre nós!

-Mas são irmãos de Regiane, nossa sobrinha. Devem ser tratados com consideração. O que você vai fazer, Regiane?

-Já fiz; escrevi-lhes de volta, dizendo que desejo conhece-los. 

Fiorela ergueu a voz:

-Aqui em casa é que eles não entram!

Regiane, que já tinha suportado mais do que podia, finalmente respondeu a tia à altura:

-Não se preocupe, tia Fiorela; eu jamais os traria aqui para serem ofendidos pela senhora. Já conversei com Dália, e ela disse que ficará encantada em recebe-los. A propósito, eles chegam no próximo sábado. 

Rosa largou o bordado, e foi abraçar a sobrinha:

-Oh, que bom, querida! Estou tão feliz por você. Quem irá trazê-los?

-Irão de trem a Niterói, sozinhos, e papai irá busca-los na estação e os trará até Petrópolis. Mal posso esperar para conhecer meus irmãos! 

Fiorela fez uma expressão de escárnio, encolheu os ombros e deixou a sala pisando duro, levando a pequena Cléia no colo. Léa, que estivera por ali escutando a conversa dos adultos, perguntou:

-Prima Giane, posso ir também? Quero conhecer seus irmãos, porque eles são meus priminhos! 

Regiane riu baixinho:

-Adoraria leva-la, prima, mas se sua mãe descobrir, ela nos mata! Imagine só: você, a princesinha da casa, conhecendo os primos-ralé...

Rosa ralhou com Regiane:

-Não fale assim com ela, Regiane. Ela não entende sua ironia. Não seja como a sua tia!

Regiane pediu desculpas, e mudou de assunto:

-O casamento de Dália será daqui a dois meses. Preciso de um vestido! E tem que ser bonito, pois ela me convidou para ser a madrinha. Você acha que papai me dará um?

-Tenho certeza que sim, querida. E eu faço questão de bordá-lo. Posso usar fios prateados na pala... ficará lindo!

-Obrigada, tia! Vou adorar!

-E quem será o padrinho?

-Acho que um dos irmãos de Otávio... estranho, o irmão do noivo como padrinho... mas acho que é porque eles não conhecem mais ninguém por aqui. Otávio é de Curitiba, mora aqui há pouco tempo (apenas um ano) e não é muito sociável... parece muito tímido.

Naquele momento, Fiorela entra na sala novamente. Tinha colocado a pequena para dormir um pouco.

-Bem, espero que seu pai tenha a decência de dar a você um vestido à altura! Não quero que Dália sinta-se envergonhada.

-Pode deixar, tia Fiorela. Não vou envergonhar sua querida prima, mesmo sabendo que se ela me convidou, é porque gosta de mim, e não se importa com a roupa que eu irei usar. Nem todo mundo é igual a senhora. De qualquer forma, caso papai não possa me dar um vestido, tenho certeza de que posso contar com sua bondade, a fim de não envergonharmos a pobre Dália.

Rosa cobriu a boca com a mão e deixou escapar uma risada abafada, deixando Fiorela ainda mais enfezada:

-Você está muito respondona, menina! Vou falar com o seu pai. Ele precisa ensiná-la a ter bons modos! E se eu tiver que vesti-la para  a ocasião, tratarei de reformar um de meus vestidos antigos para você. 

-Prefiro ir nua!

Dizendo aquilo, Regiane deixou a sala, indo em direção ao seu refúgio no alto da colina. Subiu as escadas escutando a voz de sua tia Fiorela, que não parava de ranhetar, e quando chegou ao topo das escadas, percebeu, aliviada, que já não mais podia escutá-la. 

Sentou-se em um velho banquinho sob os pessegueiros, que estavam floridos e espalhavam uma rede cor-de-rosa perfumada sobre sua cabeça. Podia ver a torre da catedral, e o céu perfeitamente azul. Sempre sentia-se em paz ali, e lamentava que o pedido que fizera a Fiorela há alguns dias não tivesse sido atendido: deixa-la morar no chalé após o casamento de Dália – não faria sentido ficar vivendo na mesma casa que o jovem casal, embora eles tivesse dito a ela que ela seria sempre bem vinda enquanto precisasse . A tia achou o pedido totalmente absurdo: “Onde já se viu, uma moça morar sozinha em um lugar tão ermo? Talvez, depois que você se casar...” 

Regiane sabia que, no fundo, a tia tinha razão. Ela teria medo de viver naquele chalé sozinha à noite, embora adorasse ficar ali durante o dia. Tia Fiorela era rabugenta e mau humorada, mas no fundo, era boa pessoa e preocupava-se com todos. No fundo, seu pedido tinha sido feito apenas para implicar com a tia. 

Ela estava envolta em seus pensamentos: o casamento de Dália, que se aproximava, o vestido, a chegada dos irmãos, Ricardo... Ainda não tinha desistido de descobrir quem seria a mãe de Ricardo. Embora escutasse as conversas das freiras na escola sempre que podia, fingindo que não estava prestando atenção, elas nunca mencionavam o rapaz que vivia no porão. Certa vez, escondera-se atrás do órgão da igreja a fim de tentar ouvir a confissão das freiras, mas nem assim ela conseguiu escutar alguma coisa que dissesse respeito a Ricardo. Mas Regiane não desistiria.

Ricardo não parecia na escola há quase duas semanas, e ela sentia um desespero enorme por não vê-lo mais. Ele prometera-lhe voltar, e aquela era sua única tábua de salvação. À noite, antes de dormir, Regiane pensava nele, querendo sentir suas mãos sempre tão frias e macias sobre seu corpo. Envergonhava-se daquelas sensações – as freiras diziam que meninas direitas não pensavam em tais coisas e guardavam-se para seus maridos – mas ela tinha certeza que Ricardo seria seu marido, então que mal poderia haver? Estavam adiantando as coisas, isso era certo, mas tinham nascido para pertencerem um ao outro. Regiane nem conseguia pensar na possibilidade de ficar com outro homem. Só de pensar, sentia horror. 

Regiane foi trazida de volta ao momento presente através de uma ventania mais forte, que derrubou em seu colo muitas flores de pessegueiro. Encantada, ela as colheu uma a uma, colocando-as no cabelo. Ao mesmo tempo, ela sentia que as mãos que enfeitavam seus cabelos com as flores não eram suas; eram mãos leves, como se fossem de vento. Regiane sentiu uma presença atrás de si, uma presença doce e maravilhosa, mas ela sabia que se tentasse voltar-se para vê-la, ela desapareceria. Deixou-se ficar assim, totalmente imóvel, absorvendo aquela presença tão querida: Vicentina, sua mãe! Ela a penteava com as mãos, fazendo-lhe uma trança frouxa entremeada de flores de pessegueiro. Junto com o vento, chegou-lhe aos ouvidos uma canção do passado, que ela ouvira muitas vezes quando era pequenina, um bebê ainda: uma canção de ninar cantada por uma voz querida e muito conhecida, que tinha o poder de acalmá-la e fazê-la adormecer, espantando os monstros e clareando a escuridão da noite. Ouviu-a sussurrar em seus ouvidos:

-Filha querida... estou sempre com você... 

-Mãe!

-Sim! Me escute, não posso ficar muito tempo... assim, feche seus olhos e poderá me ver melhor.

E Regiane conseguiu vislumbrar, de olhos fechados, sua mãe, envolta por uma névoa esbranquiçada que escondia-lhe a parte inferior do corpo. A pele alva brilhava, como se estivesse orvalhada. 

-Você terá que ser forte, filha. Não se preocupe, pois tudo ficará bem... eu estou bem. Todos ficam bem.

Regiane pode sentir o toque dos dedos de sua mãe em seu couro cabeludo, e seus dedos eram frios, porém, macios. Ela sentiu um arrepio leve, como um pequeno choque.

A brisa deixou de soprar, e ela abriu os olhos: Vicentina se fora. Regiane ficou sentada durante algum tempo, tentando absorver tudo aquilo; teria sido imaginação? Não, fora real demais! E sua mãe lhe falara, pedindo que fosse forte. Mas por que? Para quem? Ela teve um pressentimento ruim, apesar de toda a beleza daquele momento. Será que sua mãe lhe falava de Ricardo? Teria acontecido alguma coisa a ele... ou quem sabe, ao seu pai, que estava em Niterói? Ela deixou escapar um pequeno grito, e levou a mão à boca para contê-lo. Olhou em volta: começava a escurecer. Os pessegueiros projetavam sombras no telhado do chalé abandonado, tornando-o surreal.

(continua...)












segunda-feira, 14 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVI







O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVI



Regiane pediu licença para ir ao banheiro durante a aula de Irmã Teresa. Disse não estar se sentindo bem. Há vários dias procurava por Ricardo, mas não o encontrava. Sua angústia crescera tanto, que sentia os braços dormentes a maior parte do tempo. Mal comia, pois não conseguia engolir, e à noite, não conseguia dormir, revirando-se na cama até que finalmente, percorria descalça os corredores escuros e vazios indo parar no porão, a procura dele. Não o encontrava, e deitava-se na cama onde ambos tinham se amado e, agarrada a um dos livros de Ricardo, chorava por ele. Estava cada vez mais pálida, magra e com aparência cansada, olheiras profundas e lábios caídos numa máscara de tristeza. Morria de medo de nunca mais vê-lo. 

E de repente, ele voltava, sem nunca dizer para onde tinha ido, ou se voltaria novamente. E quando ele voltava, sua vida ganhava forças novamente, e os dias voltavam a ser belos, e suas notas na escola melhoravam, e seu sorriso voltava também, junto com ele. Ela jamais se preocupava em evitar ficar grávida (Regiane já sabia de onde vinham os bebês, pois ele próprio a ensinara); sabia que só ficaria grávida quando ela e Ricardo estivessem casados, morando na tão sonhada casinha branca. A vida lhes sorriria. 

E de repente, ele sumia durante períodos cada vez mais longos. Ela precisava saber onde ele estava, aonde ele ia naquelas horas! 

E foi assim que ela pensou que precisava descobrir quem era a mãe de Ricardo, pois somente ela poderia ter aquela informação. Durante as aulas, tentava olhar para as freiras tentando ver semelhanças entre elas e seu amor. Mas sabia que precisava ser cuidadosa, pois se ela se enganasse, estaria arriscando a permanência de Ricardo naquela escola, revelando sua presença indevidamente e traindo seu segredo. Assim, ela apena observava, e pensava...

Dois dias após a morte de Margarida, Dália perguntou a Regiane se ela iria mudar-se para sua casa. Sentia-se muito só. Assim, Regiane fez suas malas e despediu-se de Ricardo entre lágrimas, prometendo-lhe que entre eles nada mudaria, pois ela estaria na escola todos os dias. Ele tentou mostrar a Regiane que estava feliz por ela. E estava; mas também estava triste, pois sabia que um dia, teriam que despedir-se de verdade, e aquele dia se aproximava, cravando aos poucos as unhas em suas costas como um animal de rapina. 

Na casa de Dália, onde Regiane pode ter seu próprio quarto (passou a ocupar o quarto da falecida Teresa; Dália insistiu que ela não era obrigada a dormir ali, podendo dividir o quarto com ela, mas Regiane não se importava). Apenas trocaram o colchão, a colcha e as cortinas, pintaram elas mesmas as paredes do quarto de azul, fizeram uma boa limpeza e colocaram um vaso de flores sobre a mesinha de cabeceira. Regiane sentiu que aquilo era o mais próximo que ela já tinha estado de um lar de verdade! Ali, sentia-se muito bem-vinda sempre. Dália a tratava como a uma irmã. As duas passavam muitas horas conversando. Às vezes, Regiane tinha vontade de falar-lhe sobre Ricardo, mas resistia à tentação apenas pela promessa que fizera a ele; mas cada vez mais, a língua coçava, a ansiedade chegava até a ponta do abismo... mas ela a recolhia, e calava-se. Certa vez, Dália 
perguntou-lhe:

-Você nunca teve um namorado, Regiane?

Ela sorriu e mentiu, encolhendo os ombros:

-Não...

-Nunca foi beijada?

-Não... mas por que pergunta?

-Ora... você já tem dezessete anos, e está na hora de pensar em casar! Logo estará com dezoito. 

-Bem, na verdade, você sabe que eu tenho quinze... ainda é cedo para pensar nessas coisas.

-Mas... nos seus documentos, você tem dezessete,  é isso que importa.

-Ainda não estou pronta! Prefiro ficar para titia do que me casar com qualquer um sem amor, só por casar!

Elas ficaram em silêncio durante algum tempo, e Regiane indagou:

-Você ama o Otávio?

-Bem... ele é um bom partido, filho de boa família, trabalhador, tem saúde. E é um pão!

Regiane riu:

-Sim, concordo com você, mas... esta não foi a minha pergunta: você ama o Otávio, Dália?

Dália refletiu por um momento antes de responder:

-Aprenderei a amá-lo! Já gosto muito dele, ele é muito bom para mim, é responsável e muito galanteador... e respeitador também! Será um ótimo pai para meus filhos. É tudo o que uma mulher pode querer!

-Quer dizer que vocês nunca?...

-Dália ficou vermelha:

-É claro que não! Essas coisas uma mulher direita só faz depois de casar!

Dália percebeu o quanto tinha sido indelicada (conhecia a história de vida da mãe de Regiane) e desculpou-se, constrangida:

-Eu sinto muito, eu não quis ofendê-la, querida.

-Eu sei! Não se preocupe. Mas você em disse que ele é tudo o que uma mulher pode querer; mas ele é o homem do seus sonhos? Você está apaixonada por ele?

-Dália caminhou até a janela, debruçando-se por um pouco de tempo antes de responder:

-Minha mãe dizia que quando se casou com meu pai, não o amava, mas aprendeu a amá-lo. Ele era um homem bom, e a tratava com carinho e respeito. Ela me ensinou que uma mulher precisa encontrar um bom homem, e ao encontra-lo, casar-se com ele. Precisa ser uma boa esposa, mãe e dona-de-casa dedicada. Este é o papel de uma mulher na sociedade. Ela também me disse que a paixão só faz as pessoas perderem a cabeça, e contou-me de uma amiga que se perdeu por causa de uma paixão. Ficou com a reputação arruinada, e nunca mais arranjou marido. 

-Como a minha mãe?

-Eu não quis dizer isso, Regiane...

-Mas é a verdade. Foi o que aconteceu à minha mãe. Quando penso nela, eu às vezes sinto muita raiva de meu pai. E dos pais dela, meus avós, que nunca conheci, só vi passar na rua. E das minhas tias, que nunca a ajudaram, e não me acolheram depois que ela morreu.

Dália aproximou-se e sentou-se ao lado de Regiane, segurando sua mão:

-Querida, a raiva e o ressentimento são coisas horríveis que a gente não deve alimentar! As pessoas erram. Todos erramos. É preciso perdoar e seguir em frente, pois se formos eliminar e odiar todo mundo nas nossas vidas pelos erros que cometeram, acabaremos totalmente sós! E a vida é tão curta!
-Engraçado, você me dizer isso. Uma pessoa já me disse a mesma coisa, há algum tempo.

-Quem?

-Um amigo. 

-Você quer dizer um amigo? Um homem?

Regiane percebeu que despertara suspeitas na amiga, e mentiu a fim de desconversar:

-Sim, mas já não o encontro mais... ele costumava ir à escola quando visitava a irmã, aos domingos, mas ela foi embora, e ele nunca mais voltou. Foi há mais de um ano... mas Dália, você é tão boa! Gosto muito de você e fico feliz que tenha aparecido em minha vida. E gosto muito de Otávio também. Vocês vão ser muito felizes juntos. 

Dália concordou com a cabeça, mas alguma coisa dentro dela estava diferente após aquela conversa. Muitos anos depois, enquanto ela esperava Otávio chegar em casa em uma das noites nas quais ele saía sem dizer aonde ia, ela lembrou-se daquele dia, e daquela conversa. E manteve-se forte, sem fazer perguntas, pois aprendera que era a mulher a responsável pela manutenção do casamento, pelo bem dela mesma, dos filhos e da sociedade, e que por isso, deveria evitar fazer perguntas demais ao homem ou questionar seus motivos. Uma mulher verdadeira, uma boa esposa, acatava as vontades do marido e ignorava seus defeitos. E foi assim que ela ensinou suas filhas a se portarem, lembrando-as sempre que o amor era uma coisa que surgia coma convivência, com o tempo. Porém, ela nunca aprendeu a amar o marido, como pensava que aconteceria com o tempo. Olhava para ele, enquanto ele lia o jornal, ignorando a presença dela, e via nele o retrato do próprio pai. Via em sua vida a vida da própria mãe. Agora, só agora, ela compreendia. Só esperava não ter o mesmo fim que a mãe tivera.

Mas o dia de seu casamento foi lindo, e inesquecível! 
Vestido de cauda que caía em volta dos pés como se fosse um glacê de cetim perolado... grinalda de flores brancas e véu comprido, que após a chegada da noiva ao altar, esticava-se até a porta da igreja. O buquê de rosas brancas e flores de laranjeira, símbolo de sua pureza, que ela guardara para entregar ao homem que a desposara. O Grande Dia inesquecível, o mais feliz de sua vida, a fotografia sobre o aparador da lareira para a qual ela olhava todas as noites, lembrando, e se perguntando o que teria sido de sua vida se...


.     .     .     .     .     .     .


Um mês após sua mudança para a casa de Dália, Regiane recebeu uma carta, que foi-lhe entregue por uma das freiras da escola, Irmã Catarina, a que era responsável pelas correspondências. Ela percebeu que a mesma tinha sido aberta, e pelo olhar da freira ao entrega-la, viu que ela fora a pessoa que a tinha lido... mas o que fazer? A freira percebeu seu olhar de desgosto, e comentou:

-Carta vinda de remetente masculino precisa ser fiscalizada, para sua própria proteção.
Regiane nunca recebera uma carta antes. Cheirava o papel, passava os dedos sobre os selos. Estava morta de curiosidade para abri-la, mas queria fazê-lo na presença de Ricardo. Esperaria até o dia seguinte, após as aulas. Colocou-a sob o travesseiro e ficou pensando quem seriam aquelas pessoas que lhe escreviam – Pedro e Antônio.

No dia seguinte, ela mal pode prestar atenção às aulas, e Irmã Teresa chamou sua atenção várias vezes. Acabou ficando de castigo por trinta minutos no final da aula, quando todas se foram para o refeitório. Trazia a carta no bolso da saia, o papel farfalhando ao roçar contra o tecido e incitando sua curiosidade. Finalmente, cumpriu sua punição e teve licença para retirar-se e almoçar, o que ela fez rapidamente, mal engolindo a comida.

Ao chegar ao porão, bateu à porta e Ricardo mandou que ela entrasse:

-Veja, Ricardo! Recebi uma carta! Queria que você a lesse comigo.

Ele a abraçou, olhando a carta que ela entregou a ele e dizendo:

-Ora, será que tenho um rival?

Ambos sentaram-se lado a lado sobre a cama, e ele começou a leitura:

“São Paulo, 23 de agosto de...

Cara Srta. Regiane,

Esperamos que esta lhe encontre em perfeita saúde. 
Somos Antônio e Pedro, vossos irmãos. Acho que a senhorita não sabe da nossa existência. Nossa mãe biológica, Vicentina Leme, não podendo tomar conta de nós, mandou-nos para esta fazenda onde fomos adotados por um maravilhoso casal que cuidou de nós e nos tratou como filhos legítimos, adotando-nos. A senhorita, disseram-nos nossos pais, era ainda muito pequena quando tudo isso aconteceu, e talvez nunca tenha ouvido falar de nós; porém, sendo nossa irmã por parte de mãe, gostaríamos de conhece-la. Nós temos 
Seu genitor, o senhor Régis Costa, esteve aqui na fazenda acompanhando sua patroa, madame Fonseca, ocasião em que nós o conhecemos e ficamos sabendo de sua existência. Ficamos muito curiosos e ansiosos para saber se estás bem. Se for de vossa vontade conhecer-nos, por favor, responda-nos esta carta, e ficaremos muito felizes. Pretendemos fazer-lhe uma visita em sua cidade assim que pudermos.
Sem mais para o momento, nos despedimos carinhosamente, e assinamos:

Antônio e Pedro Figueiredo,

Vossos irmãos.”


Enquanto escutava a leitura, vinham à memória de Regiane cenas imprecisas de sua mãe com uma grande barriga passando diante de seu berço. Cenas que ela jamais lembraria, não fosse aquela carta, pois era muito pequena ainda quando aqueles fatos se deram. Ficou muito feliz, e lágrimas vieram-lhe aos olhos:

-Eu... afinal, eu tenho irmãos, uma família, Ricardo!

Ele sorriu:

-Parece que sim, Regiane. Vai responder a carta? 

-Sim, imediatamente! Você me ajuda?

Ele hesitou:

-Não sei se posso... preciso ...

Ele se levantou da cama, ficando de costas para ela:

-Eu não sei se estarei por aqui nos próximos dias... talvez nas próximas semanas...

Regiane caminhou até ele, obrigando-o a olhá-la de frente:

-Você não ficou feliz, quero dizer, não gostou que eu tenha irmãos?

-Não, não é nada disso... é que eu terei que ficar ausente durante algum tempo...

-Mas... para onde vai? Por que?...

-Eu não posso dizer ainda, mas prometo que voltarei assim que puder. Você não vive dizendo que eu preciso sair daqui um pouco, tomar sol...

-Sim, mas... por que não pode me dizer aonde vai? Por que?
-Regiane, querida... há coisas que não posso contar a você, e preciso que me entenda e confie em mim... 

Ela novamente sentiu o fantasma de um segredo sobrepondo-se entre eles.

-É alguma coisa com sua mãe, não é? Ela descobriu sobre nós?

-Não... ela...

-Ricardo, quem é sua mãe?

-Eu já disse, é uma das freiras...

-Mas qual delas?

-Não me pressione, Regiane, por favor. Não posso dizer, preciso protegê-la de um escândalo.

-Não confia em mim? E pede que eu confie em você? Se sua mãe o amasse, não o obrigaria a passar a vida dentro deste porão!

Ele tornou-se ainda mais pálido, a respiração alterada:

-Não diga isso! Não fale de coisas que não sabe! Não seja leviana.

Ao ouvir aquela palavra saindo da boca de seu amor, Regiane sentiu-se como quem leva um soco no rosto. Ela sentiu a face esquentar, e as lágrimas turvaram sua visão. Virou as costas e saiu do porão, sem olhar para trás.

Estava decidida: descobriria quem era a mãe de Ricardo, de uma vez por todas, e acabaria com todo aquele mistério que só os separava. Estava tão aborrecida, que se esquecera da carta por um momento. Pediria a Irmã Dulce que a ajudasse a responde-la. 


(continua...)





sábado, 12 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XV









O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XV




Numa manhã de domingo, Rosa chegou aos portões da escola, pedindo para ter com a sobrinha. Regiane, surpresa (as tias quase nunca a visitavam) pensou que algo pudesse ter acontecido ao pai. Aflita, ao receber a notícia de que a tia a esperava no jardim, saiu correndo pelos corredores da escola. Ao chegar diante de sua tia, ela estancou:

-Tia! A senhora por aqui? Papai está bem?

Rosa sorriu:

-Sim, querida, não se preocupe. Estou aqui porque queria leva-la a um lugar. Desejo que conheça alguém.

Regiane pegou o vestido de passeio e o sobretudo que a tia trouxera para ela, e após trocar-se no dormitório, ambas saíram de braços dados na manhã nublada e fria de domingo. Após caminharem durante algum tempo, chegaram à subida do bairro Duchas, e subiram a ruazinha úmida de paralelos. Regiane notou que havia Impatients brancas ao longo do caminho, e achou-as lindas. Rosa explicou que aquelas flores gostavam de pouco sol e muita umidade. Pararam para descansar um pouco antes de terminarem de subir a ladeira, e a menina quis saber:

-A quem vamos visitar, tia?

-Quero que conheça uma pessoa que está de volta à cidade após viver algum tempo estudando no Rio de Janeiro. É filha de uma prima nossa. O nome dela é Dália. Precisou voltar para cuidar da mãe, que está muito doente, e não pretende voltar para o Rio, pois está noiva e vai casar-se daqui a alguns meses. Dália é órfã de pai, e como sabe do estado terminal da mãe, gostaria de alguém que a acompanhasse, pois não deseja ficar sozinha na casa. Falei de você, e ela ficou muito contente. 

-Mas... ainda não terminei meus estudos!

-Bem, você pode terminar como aluna externa! E passar a viver com ela... mas só se você quiser. 
Regiane olhou em volta e gostou daquela ruazinha florida, com poucas casas e muitas árvores, fria e cheirando a ciprestes. Ao mesmo tempo, pensou em seu querido Ricardo; seria capaz de ficar longe dele? Mas... continuando na escola, ainda poderia vê-lo, e quem sabe, ele pudesse visita-la aos domingos?

Chegaram à casa – uma residência branca de janelas cinzentas, simples mas bem-cuidada, que ficava no meio de um pequeno jardim. Não havia cercas, e um caminho de pedras conduzia da calçada à porta. Ao caminhar por aquela trilha pela primeira vez, mesmo antes de chegarem á porta, Regiane sabia que ainda faria aquilo muitas e muitas vezes. 

Uma moça de olhar tristonho, olhos escuros e nariz um pouco grande, abriu a porta e mandou que elas entrassem. Mal colocou os pés dentro da casa, ambas sentiram o odor ativo de formol, álcool e remédios. Rosa fez as apresentações, e o olhar triste de Dália fez com que Regiane se entristecesse também. Regiane logo percebeu que Dália, mais velha que ela, não era uma moça bonita, mas gostou dela imediatamente. Ambas ficariam amigas ao longo de toda a vida, mas naquele instante, elas não sabiam disso. Dália preparou um café com biscoitos, que elas comeram à mesa da cozinha, sendo observadas por cães pequineses. A porta dos fundos aberta dava para uma área de serviço, onde havia um viveiro grande, cheio de periquitos. Regiane sentiu pena deles por estrem engaiolados, mesmo sendo bem-tratados. 

Após o café, Rosa tocou no assunto que as trouxera ali.

-Bem, Dália... Regiane vai formar-se na escola, e precisa dar um rumo à sua vida quando sair de lá. Você está precisando de companhia... 

Dália entusiasmou-se:

-Oh, se ela quiser, pode mudar-se hoje mesmo! 

Regiane sorriu:

-Sim, eu quero, gostaria muito de morar aqui, mas.. se você não se importar, quero primeiro terminar o semestre na escola, Dália. Tenho um... ou melhor, uma a miga que me ajuda muito nos estudos, e preciso muito dela, estou tendo dificuldades em uma das matérias. 

Dália aquiesceu:

-Mas é claro, Regiane, eu entendo. 

Depois do café, foram ao quarto da doente a fim de conhece-la. Seu nome era Margarida. Regiane ficou com muita pena dela, pois sabia que estava sofrendo muito. Margarida, que estava muito fraca, ficou contente ao saber que a filha teria companhia até casar-se, e disse ter gostado muito de Regiane:

-Agora posso ir mais tranquila. 

-Não diga isso, mamãe! A senhora ainda vai viver muito...

Margarida tossiu:

-Nós duas sabemos que não, minha filha... eu estou no fim... mas quero que você esteja feliz e segura...

Dizendo aquilo, Margarida mergulhou em sono profundo. Dália tocou-lhe o pescoço com os dedos e viu que ainda respirava. Aliviada, fez sinal para que saíssem do quarto em silêncio. No corredor, explicou:

-Ela agora fica assim, dorme a maior parte do tempo. Parece que está se desligando...

-O que ela tem, Dália?

-Ela tem a doença ruim. Já se espalhou pelo corpo todo. O médico disse que é uma questão de poucos meses, quem sabe, dias... (ela enxugou uma lágrima).

-Eu sinto muito... meu pai é rezador. Se quiser, peço a ele que venha. Pode trazer algum alívio para ela!

-Obrigada, Regiane. Ele já esteve aqui. Ele vem todo final de semana, desde que soube que ela estava doente. Engraçado... quando ele vem, e reza por ela, impondo as mãos, ela fica mais calma, e diz que sente menos dor. Mistérios de Deus!

Regiane percebeu que ela também tinha sido criada em colégio de freiras, como ela.

-Onde você estuda?

-Eu estudo no Colégio Nossa Senhora da Ajuda, no Rio de Janeiro... digo, estudava. Quando mamãe ficou viúva, mandou-me para lá, pois precisava trabalhar e não podia ficar comigo.

-Que coincidência! Já estive lá duas vezes, e não nos vimos.

-É uma escola muito grande.

-Você era interna?

-Sim. Mas vinha para casa nas férias, e foi assim que conheci Otávio, meu noivo. Vamos nos casar daqui a alguns meses. E você? Tem um namorado?

Regiane corou, baixando os olhos e pensando em Ricardo:

-Não... não saio daquela escola, como poderia?

Rosa, satisfeita, percebia a amizade que estava nascendo entre as duas. Teve uma ideia:

-Que tal se ficássemos para o almoço? Eu poderia preparar uma massa! Você tem trigo e ovos?

-Sim, claro! Ah, que bom, prima Rosa! Eu ia comer um sanduíche... a mamãe só toma sopa bem líquida. Não gosto de cozinhar só para mim.

E foram todas para a cozinha. Rosa e Regiane cuidavam do preparo da massa, que foi esticada em um varal improvisado com barbante na cozinha, e Dália descascava os tomates para o molho. Tiveram uma tarde agradável, até que, após o almoço, Margarida sentiu-se mal e Dália precisou virá-la de bruços para cuidar de suas feridas. Rosa e Regiane ofereceram-lhe ajuda, mas Regiane não estava preparada para o que ia ver: as costas da mulher estavam todas cobertas de feridas tão profundas, que o osso aparecia em alguns pontos. Pacientemente, Dália lavou os ferimentos e cobriu-os com pó de sulfa. Deixou-os respirar um pouco, e então voltou a por gazes limpas. Regiane, que não aguentou ficar no quarto, esperou-as na sala, e chorava copiosamente. Nunca pensara que alguém pudesse ficar naquela situação, como se apodrecesse em vida. Jamais se esqueceria do cheiro adocicado de decomposição que sentira – o mesmo exalado por sua falecida mãe, cujos ferimentos ela nunca vira, e cujo sofrimento ela finalmente compreendeu naquele instante. 

De volta à escola, correu ao porão para contar as novidades, mas não encontrou Ricardo. Regiane estava triste e alegre ao mesmo tempo. À noite, quando suas duas amigas voltaram, contou-lhes que iria morar em uma casa. Elas a olharam, a princípio com um pouco de inveja, e depois, ficaram felizes por ela.

Regiane só conseguiu encontrar Ricardo quase uma semana depois, no sábado à noite. Escapou do dormitório já bem tarde, aproveitando que poderia dormir mais algumas horas na manhã de domingo. Percorreu descalça os corredores, a fim de não fazer nenhum barulho. Cruzou o pátio iluminado pela luz do luar, sentindo o frio da noite. Assustou-se com os olhos brilhantes de um dos gatos, e depois, riu de si mesma. Entrou no porão e bateu à porta do quartinho, e uma luz se acendeu. Ele a abriu.

-Ricardo, você sumiu! Eu tive tanto medo!

Eles se abraçaram com força. Ela percebeu que o rapaz parecia triste. 
-O que aconteceu? Por onde esteve, e por que tem sumido assim?
Ele sentou-se na cama, em frente a ela, que ocupou a poltrona, jogando as pernas e os pés descalços sobre o braço da mesma. Ricardo parecia ainda mais branco do que antes. Ela temeu que ele estivesse doente.

-Eu ... talvez eu precise ir embora, minha amiga. 

O coração de Regiane deu um salto, e ela levantou-se bruscamente da poltrona, indo sentar-se ao lado dele, tomando-lhe as mãos geladas entre as suas:

-Não! Eu ... eu... me leve com você!

Ele sorriu tristemente:

-Fiquei sabendo que você também já tem planos, e que vai partir também.

-Mas... não é agora, é só daqui a alguns meses, e vou continuar estudando aqui. Vamos nos ver sempre, eu prometo! Ricardo, eu jamais deixaria você... 

Um silêncio cortado pelo pio agourento de uma coruja lá fora. As batidas do coração dela totalmente descompassadas, tanto, que ela sentia vontade de tossir. As mãos dele mexeram-se entre as dela, as palmas virando-se para apertar seus dedos. Eles se deixaram fica ali, em silêncio, os dedos entrelaçados e os corações cheios de medo e ansiedade pelos caminhos curvos e paralelos que a vida estava lhes propondo.  Ela murmurou:

-Não importa o que aconteça, eu nunca vou deixar você.
Ele disse, um tom de tristeza profunda na voz:

-Regiane... você não sabe o que está dizendo. Às vezes precisamos fazer coisas que não queremos fazer, porque não há outro jeito, não é uma escolha que temos. 

-Mas, olha, me escute, eu...

-Eu tenho que ir embora, menininha. Não posso mais ficar aqui, não posso passar a minha existência toda aqui!

-Mas você não vai!... Logo estarei morando em uma casa, e você poderá ir visitar-me; poderá ter um emprego, e nós vamos nos casar, e moraremos juntos, e teremos muitos filhos... 

Ele soltou as mãos dela, caminhando até o outro lado do quarto. Encostou-se à parede. Uma angústia sem medidas e uma batalha que ele jamais venceria o atormentavam. Ela percebeu. Havia uma coisa que ele não podia dizer a ela. Finalmente, o segredo que o mantinha sempre a um passo dela, estava a ponto de deixá-los a tantos passos de distância um do outro, que talvez não houvessem no mundo passos suficientes que os reaproximariam. 

Ela decidiu fazer a sua última tentativa de conservá-lo perto; ergueu-se, e foi até ele estava, parando diante dele. A frase que ela finalmente compreendeu que poderia expressar seus sentimentos confusos por ele escapou-lhe da garganta num sussurro: 

-Eu amo você!

Eles se abraçaram num ímpeto de paixão e desespero. E ele murmurou, de encontro aos cabelos dela, a mesma frase. 

Aconteceu, naquele momento, o primeiro beijo. Sem planejamentos ou ensaios, sem ter sido sequer sonhado antes, foi simplesmente natural que as bocas se encontrassem e selassem aquela verdade. E naturalmente, as mãos dele percorreram devagar o corpo dela, nu e solto sob o tecido grosseiro da camisola larga, que escorregou pelas suas pernas, enquanto sensações totalmente novas, estranhas e maravilhosas a percorriam. As mãos dela acariciaram a nuca e os ombros, vagarosamente, descendo para o peito, a cintura e os quadris. Ela não sabia mais como ir adiante. Não tinha ideia do que deveria fazer. Ele parecia preso no mesmo impasse. Então, beijaram-se novamente. E o beijo sussurrou-lhes o restante do caminho que eles percorreram devagar, pausadamente, saboreando cada sensação nova e estranhamente maravilhosa. 

A primeira luz da manhã encontrou-os entrelaçados na cama, os corpos tão próximos, que nem mesmo um fio de palha poderia estar entre eles. Regiane sentiu que mesmo entre seus braços, e no calor das cobertas, o corpo dele era quase frio. Mesmo assim, era um arrepio que ela amava sentir. E por amar senti-lo, ela o beijou novamente, e eles repetiram os encantos daquela madrugada.

Quando ela acordou, estava sozinha. Um misto de alegria e tristeza, amor e dor, fizeram com que ela tivesse certeza de alguma coisa nela estava irremediavelmente diferente, e que a Regiane que conhecia tinha desaparecido naquele quarto, dando lugar à outra que ela ainda precisava conhecer, mas da qual ela já sentia que gostava mais. 
Ele voltou lá de fora, trazendo nas mãos algumas frutas que ofereceu a ela. Não as comeu, porém. Ficou observando-a enquanto ela matava sua fome , e depois que ela terminou, ele lembrou-a de que ela precisava ir. Não podiam correr o risco de serem encontrados ali. mas Regiane sentiu um medo percorrer-lhe  a espinha:

-Mas você estará aqui quando eu voltar?

Ele olhou para ela muito sério:

-Tenha certeza de que eu sempre estarei aqui para você, meu amor, minha querida, mesmo que você nunca me veja de novo. Eu sempre estarei aqui, com você, para você e em você. 

-Não!... Não fale assim, me dá um medo enorme... eu não sei porque, mas me dá um medo enorme ouvi-lo falar assim, Ricardo. Quero que me prometa que estará aqui sempre, até que possamos determinar nosso caminho juntos, lá fora!

Ele sorriu:

-Desculpe, não queria assustá-la... eu prometo que estarei por aqui sempre.

-Até a próxima vez?

-Até a próxima vez.

-E a próxima, e a próxima?...

Ele beijou-a de novo.

-E a próxima, e a próxima. Para sempre. Com você.

.     .     .     .     .     .

Régis continuava tentando manter contato com Vicentina em vários centros espíritas, mas sem obter qualquer sucesso. Chegava às vezes de madrugada. Madame Fonseca o esperava chegar com um bule de chá, e de camisola. Às vezes passavam a noite juntos, e a paixão era intensa, mas ela percebia que nunca seria como a mulher-fantasma que ele tanto procurava. 

E foi numa noite que Vicentina lhe veio, enquanto ele dormia. Ele se viu em um lugar que não conhecia, uma casa no alto de uma colina solitária, de onde se via apenas montanhas e mais montanhas azuladas sob um céu pesado e cinzento. O vento soprava em rajadas que passavam por ele assoviando. Régis estava ainda atordoado, se perguntando como tinha ido parar naquele lugar, quando escutou um farfalhar de saias atrás de si, a ao virar-se, deparou com Vicentina de pé junto dele. Após recuperar-se do susto, pode reparar nela com mais cuidado.

Vicentina não estava mais doente. Usava  um vestido negro e longo, e tinha os cabelos soltos sobre as costas. Nunca a vira tão bonita! A pele, muito branca, denunciava sua condição de fantasma, mas ao mesmo tempo, apesar de tão diferente do que ele se lembrava dela em vida, era a mesma Vicentina de sempre, a que ele tantas vezes amara, enganara e abandonara. A mãe de sua filha. Régis percebeu que só podia tratar-se de um sonho, e prestou bastante atenção aos detalhes. Ela usava um par de brincos de pedras azuis, que pendiam quase até os ombros, e estava descalça. Em volta de um dos braços, havia uma pulseira cravejada de pedras iguais às dos brincos. Ele pode perceber o quanto eram bonitas e brilhavam naquele cenário fosco e tristonho. 

Ela lhe falou, e a voz dela sobrepôs-se ao ruído inclemente do vento: 

-Por que você me procura, Régis? O que quer de mim?


Ele ficou procurando pela resposta certa, e descobriu que não a tinha. Ela mesma respondeu:

-Você sente culpa pelo que me aconteceu. Mas saiba que a culpa é mais minha do que sua. Fui eu que segui meus instintos ao invés de pensar. Eu poderia ter resistido a você.  Eu poderia ter escolhido outro caminho. 

Ele sentiu as lágrimas começarem a rolar, e então, jorrar de seus olhos.

-Mas eu a abandonei, Vicentina... eu a deixei só com uma criança... e depois a deixei novamente naquele bordel onde você precisou trabalhar para sustentar a nossa filha... não há perdão para mim. 

-Chore, Régis, e depois tente dar seguimento à sua vida. 

-Eu perdi a mulher dos meus sonhos! Só quando era tarde demais eu compreendi que você, Vicentina, era a mulher certa para mim!

-A mulher certa para você não sou eu, Régis. Nunca fui eu. Mas ela estará usando estes brincos e esta pulseira quando você a encontrar. Agora... ACORDE!

Com um sobressalto, Régis acordou, sentando-se na cama, coberto de suor. Estava em seu quarto, na mansão. Tentou lembrar-se do sonho, que anotou em um caderno com todos os detalhes. 

Estranhamente, não havia mais a angústia que por tantos anos ele carregara em seus ombros. Sentia-se leve. Não havia mais culpas ou arrependimentos. Régis entendeu que fizera aquilo que sabia fazer, aquilo para o qual sua alma estava evoluída e preparada para fazer naquele momento de sua vida, e teve certeza de que, se naquele momento estivesse passando pela mesma coisa, teria agido de outra forma. Sentiu que amadurecera muito naqueles anos. Mas mais ainda em uma só noite. 


(CONTINUA...)





quinta-feira, 10 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XIV







O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XIV





Durante as férias de 1947, o pai não pode ir vê-la. Precisou acompanhar Madame Fonseca em uma viagem, pois ela desejava vender uma de suas propriedades, uma fazenda em São Paulo. Mal sabia ele que, lá chegando, veria o rosto de sua falecida mulher, Vicentina, mãe de sua filha, no rosto de outras duas crianças, dois meninos! Ao conversar com o casal que era responsável pela manutenção da fazenda, foi logo perguntando sobre as crianças, e a mulher confessou que os meninos tinham sido adotados quando ainda eram bebês, e lá deixados por uma linda jovem de Petrópolis que nunca mais voltara. Ao ouvir tal história, Régis não pode deixar de se emocionar, pois sem querer, encontrara os irmãos de Regiane! Explicou ao casal o que descobrira, contando-lhes parte de sua história. Quando terminou sua narrativa, todos – inclusive Madame Fonseca – tinham lágrimas nos olhos. Os dois meninos, alheios a tudo o que os adultos conversavam, brincavam no pátio lá fora, correndo atrás das ovelhas e cães. Régis sabia que eles não eram seus, e que nenhum direito tinha sobre eles; também sabia que eram amados, e que talvez tivessem uma sorte melhor do que sua própria filha, pois eram meninos, e jamais sofreriam discriminação por causa de sua origem, porque tinham sido oficialmente adotados por um casal de pessoas honestas, tornando-se filhos legítimos. Madame Fonseca não sabia que seus empregados tinham as duas crianças, e ao constatar que a venda da fazenda faria com que suas vidas fossem totalmente modificadas, decidiu não vendê-la mais, enquanto os meninos precisassem dela. Aumentou o salário do casal, dando-lhes o cargo de administradores. Régis agradeceu-lhe efusivamente. Antes de partirem, Régis deixou com os pais dos meninos um cartão com seu endereço em Niterói, caso um dia eles desejassem ir à cidade de Petrópolis e  conhecer sua irmã.

Na viagem de volta, enquanto estava sentado diante de Madame Fonseca no trem, aproveitou-se do fato de que ela estava olhando a paisagem à janela do trem,  e passou a reparar melhor em sua patroa. Viu que, apesar de ser quase quinze anos mais velha que ele, Madame Fonseca ainda era uma bela mulher. Tinha cabelos fartos e castanhos, sempre presos em um coque comportado, o rosto alvo e quase sem rugas, lábios cheios e sensuais e olhos esverdeados encimados por longos e grossos cílios. O corpo era bem cuidado, forte e esguio. Madame gostava de manter-se sempre bem vestida e penteada, e cuidava da dieta. Usava cremes que vinham de Paris e também conhecia receitas caseiras para a pele, que ela mesma preparava na cozinha da mansão. Régis pensou no quanto seu patrão tinha sido tolo ao abandonar tal mulher, sempre tão forte e tão bondosa!

Era a primeira vez que Régis a olhava daquela forma. Estava tão absorto em seus pensamentos, que quando voltou a si, deu com os olhos dela cravados nele. Faíscas percorreram a distância entre os dois. Foi ele quem baixou os olhos primeiro, sentindo o rosto avermelhar. Régis estava confuso, pois nunca na vida uma mulher causara-lhe aquela reação. Era sempre ele quem determinava o rumo da relação, início, meio e fim, e era sempre ele que colocava o ponto final. Mas tinha tanto respeito e admiração por aquela mulher, que sentia-se alguns níveis abaixo dela. Ao olhá-la novamente, viu que ela ainda não parara de olhar para ele, e sustentou o olhar por mais tempo. Um solavanco nos trilhos fez com que ambos desviassem os olhos.


.    .    .    .    .    .


Regiane, após um final de semana na companhia dos tios e primas, percebeu que seu grande sonho de morar com eles não era mais verdadeiro. Amava os tios e primas, e gostava dos momentos em que passeavam juntos pelas calçadas da Avenida Koeller e Rua Ipiranga, olhando as mansões tão bonitas, ou de quando ajudava Tia Rosa a preparar macarrão caseiro, pendurando a massa em varais pela cozinha para que a mesma secasse. Gostava da companhia deles, mas não desejava mais viver no casarão. Acostumara-se à escola. Não sentia mais aquela casa como sendo seu lugar, e nem aquelas pessoas como parte de sua família. Crescer fez com que ela percebesse que há coisas dentro das pessoas que as crianças ignoram – e que só passam a compreender quando elas próprias tornam-se adultas. Regiane sentia cada vez mais a rejeição que sofrera por parte deles quando ela mais precisava. Não a quiseram vivendo naquela casa. Não abraçaram sua infância, não a protegeram das tantas coisas ruins que aconteceram a ela; coisas que poderia ter sido evitadas, dores das quais ela poderia ter sido poupada, não fosse a omissão de todos. Aquele amor morno que lhe dedicavam servia-lhe apenas nos dias de férias, nas horas vagas. Era um amor com regras (eu a aceito se você for boa e obediente), um amor que não tocava em assuntos que ela precisava discutir.
Regiane sentia-se acolhida no velho porão, na presença de Ricardo, que a envolvia em uma nuvem de amor, compreensão e acolhimento. Ele era a sua verdadeira família, o seu refúgio. Fora ele quem a acalmara quando, numa manhã de domingo, ela acordou para descobrir que seu lençol estava coberto de sangue. Assustada, ela caminhou pelos corredores vazios, mas ainda era cedo demais – estava escuro – e todos dormiam. Percebeu de onde o sangue vinha, e pensou que fosse um castigo pela sua condição de filha de uma prostituta, e que aquele fluxo a acompanharia pelo resto de sua vida, a não ser que Jesus viesse até ela e fizesse um milagre, como na Bíblia, naquela passagem na qual ele salvara uma mulher que sofria de um fluxo de sangue.

Ela precisava pedir perdão. Foi até a capela vazia, e sem acender as luzes, postou-se de joelhos diante do altar, e chorou. O sangue, que manchara suas pernas, estava sob suas unhas, e sem perceber, ela sujara a camisola branca. Havia uma grande mancha sobre suas nádegas, como se fosse alguma coisa cômica, algo do qual as pessoas teriam rido naquele circo onde as irmãs a levaram há alguns anos. Então ela se lembrou de Ricardo, e atravessando o pátio gelado em plena madrugada, bateu à sua porta. Mal ele a abriu, ela agarrou-se em seu corpo magro e frio. Ele tentou acalmá-la, notando as manchas de sangue e imediatamente, compreendendo o motivo de tanto desespero. Mandou-a entrar, colocou um cobertor sobre seus ombros, abriu um de seus livros e mostrou a ela a causa de tudo aquilo, e aos poucos, ela foi se acalmando, compreendendo melhor a função da menstruação. Ele abriu uma outra página, e Regiane descobriu, maravilhada, de onde vinham os bebês. Não houve sinal de constrangimento por ser Ricardo quem estivesse explicando-lhe aquelas coisas; pelo contrário, aquela parecia ser a coisa mais certa do mundo. Quando Regiane já estava bem calma, Ricardo mandou que ela fosse tomar um banho, mas antes procurasse uma das irmãs e pedisse alguma coisa que ela pudesse usar a fim de conter o sangue no lugar certo. Irmã Dulce abraçou-a, e deu-lhe uma toalhinha higiênica forrada com um pedaço de plástico, e mostrou-lhe como ela deveria costura-la na calcinha, trocando-a quando estivesse molhada demais. Também disse que ela agora era mulher, e que deveria tomar muito cuidado com meninos, mas não deu detalhes (porém, ela já sabia de tudo). Mostrou-lhe um tanque escondido atrás do pomar, dizendo a ela que lavasse ali suas toalhinhas, longe da vista de todos. Naquela semana, ela foi dispensada das aulas por quatro dias, e não deixaram que ela lavasse a cabeça durante o banho.

Ricardo era seu amigo, irmão, pai, professor. Ajudava-a com as lições da escola, ouvia seus pensamentos, dava-lhe conselhos. Mas Regiane sentia que ele era muito mais que apenas amigo. Porém, ela não sabia explicar nem a si mesma o que sentia por ele. Apenas passou a perceber que gostava de olhar para ele, o que passou a fazer com mais intensidade. Quando estavam muito próximos, ela sentia uma coisa estranha que nunca sentira antes, quando era só uma menininha. Era uma espécie de calor, um aceleramento das batidas do coração. Se ele a tocasse por acaso, ao virar a página de um livro, ela se arrepiava. E Ricardo percebia aqueles sentimentos brotando, mas não parecia querer corresponde-los, embora fossem mútuos. Ela chegava com seu uniforme, e sentava-se na cama dele displicentemente, a saia erguendo-se até os joelhos, e então chamava-o para que se sentasse ao lado dela, e encostava seu ombro no dele, colocando os pés sobre os pés dele, como fazia quando era criança. E ele sentia seu hálito cheirando a pitangas, maçãs e laranjas do pomar. Às vezes, ela chegava mastigando folhas de hortelã. Ele começava a ler para ela uma de suas muitas histórias, e ela às vezes dormia, a cabeça deitada sobre seu peito. Ele achou que precisava fugir, afastar-se de Regiane um pouco, fazer com que ela percebesse que ele nada tinha a oferecer-lhe. Por isso, ela passou a não encontrá-lo mais com tanta frequência quando ia ao porão. Batia à porta que não era atendida, e ao olhar sob a greta, não enxergava nenhuma luz. Voltava mais tarde, e a mesma coisa ocorria, até que, dias depois, para seu alívio, ela o encontrava. Aqueles dias sem vê-lo, ao invés de arrefecerem seus sentimentos, apenas os incendiava. Ele abria a porta e ela jogava-se sobre ele, os braços em volta de seu pescoço, num longo abraço de saudades do qual ele gostaria de poder esquivar-se.

Ela tinha apenas treze anos, mas a natureza, talvez pelo fato de ela estar há tanto tempo acrescentando dois anos à sua idade real, tinha acelerado seu crescimento, e ela passava tranquilamente por uma moça de quinze, com todos os sentimentos, ânsias e desejos de uma adolescente. Ela resolveu assumir a sua idade de mentira, e com o tempo, tratou de se esquecer sua idade real. E foi assim que ela chegou aos quinze anos reais – dezessete anos oficiais. Aquilo significava que, dentro em breve, ela teria que deixar a escola, pois eles só mantinham meninas até os dezoito anos. Regiane sabia que não poderia simplesmente dizer às freiras que tinham mentido sobre sua idade, e que ela, na verdade, tinha apenas dezesseis anos, o que lhe daria mais dois anos na escola. Assumira seu segredo, e teria que conviver com aquela decisão.

Em uma de suas visitas à casa das tias durante as férias escolares, Regiane saiu para um passeio com Régis. Era uma linda e iluminada manhã de verão, e ambos caminhavam pelas ruas Petropolitanas, onde o clima ameno convidava as pessoas a um passeio à pé. Algumas carruagens e carros passavam vagarosamente, seus ocupantes desfrutando a beleza da paisagem. Régis comprou-lhes dois algodões doces, e sentaram-se em um dos muitos banquinhos da Praça da Liberdade para comê-los. Ele olhou para a filha, e viu que ela transformara-se em uma cópia quase exata da mãe, só que ainda mais bela. O destino dela muito o preocupava. Queria ter certeza de que sua filha seguiria por um bom caminho, e não seria envolvida por um crápula como ele mesmo fora em sua juventude. Régis pensava em uma maneira de casar sua filha, mal ela deixasse a escola, e já tinha em vista alguns rapazes que julgava serem bons candidatos. Ele não sabia que Regiane tinha planos bem diferentes. Arriscou tocar no assunto:

-Filha, oficialmente, este é o seu último ano na escola Nossa Senhora da Ajuda, e no ano que vem, deverá deixa-la. Precisamos discutir o seu futuro. Suas tias disseram que a aceitarão no casarão, o que é uma ótima notícia!
Regiane pegou um bom pedaço do doce e deixou que derretesse na boca antes de responder:
-Quando eu mais precisei, elas não me quiseram naquela casa. Agora, que Lea cresceu e foi mandada para um colégio interno luxuoso, não represento mais nenhuma ameaça para a moral e os bons costumes, não é?
O pai ralhou com ela:

-Não seja mal-agradecida, Regiane! Se elas não a aceitaram antes, foi porque não podiam cuidar de você. Não gosto que fale assim de suas tias!

-É... o senhor tem razão! Quando passo o final de semana com elas, sou sempre muito bem tratada, e também não faltam tarefas caseiras. Da última vez, deram-me uma pilha de lençóis para passar, e tive que lavar os banheiros da casa. Quem sabe, elas queiram uma empregada, não é, meu pai?

Régis perdeu a paciência, erguendo um pouco a voz:

-Quando foi que você aprendeu a ser assim, tão ingrata e irônica? As mulheres são responsáveis pela limpeza da casa, e já que elas a aceitaram como hóspede, é seu dever ajudar nas tarefas.

Regiane não se intimidou:

-Pai, quero um dia poder cuidar da minha própria casa. Da minha própria família, e não ser uma intrusa na casa dos outros! Não quero viver com minhas tias.

-E o que você sugere, então? Só há uma saída: casar-se! Ou então virar freira.

Regiane engoliu em seco. Não queria casar-se apenas por não ter outra alternativa, e não tinha fé o suficiente para tornar-se uma religiosa. Havia muito da vida que ela queria descobrir. Desejava viajar, ter uma profissão, ser uma mulher independente.

-Eu quero ser independente, ter minha casa e meu dinheiro, pai.

Régis riu com desdém:

-Independente? Que coisa é essa, filha? Quem foi que pôs essas ideias absurdas na sua cabeça? Mulheres nasceram para casar e ter filhos! Devem cuidar dos maridos e de suas casas.

-Minha mãe nunca se casou! Graças ao senhor.

Aquelas palavras tiveram o impacto de um forte soco em Régis. Regiane percebeu a força negativa de suas palavras:

-Desculpe, pai... eu não queria...

-Cale-se! Não quero mais ouvir nada de você hoje.  (Ele ergueu-se do banco, jogando o algodão doce em uma lata de lixo próxima) Quando terminar seu doce, vá para casa.

Dizendo aquilo, Régis afastou-se. Regiane ficou sentada no banco da praça, segurando o doce, e acabou jogando-o fora. De uma coisa o pai tinha razão: ela precisava decidir o que fazer de sua vida. Tinha apenas um ano e dois meses na escola. E ainda havia Ricardo... será que, caso deixasse a escola, nunca mais o veria? Aquela possibilidade deixava-a cheia de pavor! Queria ter uma vida inteira com ele; gostaria de leva-lo para fora daquele porão, e passear de mãos dadas com ele pela calçada. Queria sentar-se com ele em um banco de praça como aquele, e dar muitas risadas, e fazer planos de terem uma pequena casinha branca de janelas azuis, onde poderiam criar seus filhos.

Apenas com Ricardo aquela possibilidade existia, e era algo feliz.

Mas por dentro, Regiane sabia que havia muitas coisas sobre Ricardo que ela não imaginava, e que aqueles segredos que ela tanto temia poderiam afastá-los um do outro. Cada vez mais, desejava saber quem era a mãe de seu amigo, e por que ele tinha sido condenado a permanecer ali para sempre, perdendo sua infância e parte de sua juventude em um porão escuro e sem janelas, saindo apenas à noite ou quando ninguém estivesse por perto, tornando-se tão esquivo a ponto de virar uma lenda, um fantasma que habitava a imaginação das pessoas.


(continua...)









segunda-feira, 7 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XIII






O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XIII


Uma semana após a aventuras de Regiane, e muita ansiedade por parte da menina - para uma criança, uma semana é tempo suficiente para sentir-se decepcionada ao não ter um pedido realizado-, algo aconteceu. Irmã Malvina interrompeu a aula a fim de fazer um comunicado. Pela primeira vez, ela não parecia carrancuda ou disposta a ser insuportável. Trazia uma expressão contente e satisfeita, o que fez com que as crianças relaxassem ao vê-la (sempre que ela adentrava a sala de aula fora do período em que deveria estar administrando suas temidas aulas de matemática, todos tremiam, pois boa coisa não poderia ser).

Ela comunicou que a escola recebera uma honraria muito grande: o Presidente da República em pessoa desejava fazer-lhes uma visita. Ela acabara de receber um documento expressando seu desejo, e no tal documento, que ela leu em voz alta para que todos ouvissem, ele dizia sobre uma carta que recebera de uma das alunas (não declinara o nome da mesma) demonstrando que as condições da escola deveriam ser melhoradas. Assim, ele determinara que a partir do dia de sua visita, a escola Nossa Senhora da Ajuda passaria a receber mensalmente, ajuda financeira a fim de melhorar o cardápio das crianças e instalar chuveiros com água quente.

Ao ouvirem as novidades, as meninas aplaudiram; menos Regiane, que decepcionada, não tivera seu maior pedido atendido. Ele não dizia que lhe daria uma casa de presente. Nem sequer mencionara seu nome, e ela sabia que mesmo que revelasse a todos que tinha sido ela a autora da carta, ninguém acreditaria nela. 

Naquele final de semana, seu pai fora visita-la. Chegou com um grande pacote cheio de doces: havia goiabada cascão, doce-de-leite de corte, balas coloridas, e duas grandes fatias de bolo confeitado da Padaria Alemã, embrulhadas em papel encerado. Regiane agradeceu pelos quitutes, mas não demonstrou nenhum entusiasmo. Régis percebeu que a menina estava triste:

-O que aconteceu, filha? Está tudo bem?

Ela fez uma pequena carranca:

-Mais ou menos... sabe que o Presidente da República vem nos visitar na próxima semana? 

-Ah, sim, Irmã Margarida me falou sobre isso enquanto estava esperando você chegar... que grande honra, não é?

-É... agora teremos chuveiros quentes e a comida vai melhorar também... mas...

-E isso não é maravilhoso? Você não ficou contente?

Regiane começou a chorar. Surpreso, o pai passou o braço em volta da menina:

-Mas por que você está triste, filha?

-Porque ninguém acreditaria em mim!

-Mas... o que?...

Ela enxugou os olhos na manga da blusa, e virando-se para o pai, revelou:

-Fui eu quem escrevi a carta. Mas só que eu não pedi nada disso! Pedi uma casa para morar com você!

O pai tentou compreender o que Regiane estava tentando dizer, e então, mal crendo no que acabara de ouvir, admirou-se:

-Você quer dizer que escreveu uma carta ao Presidente da Nação?

-Sim, eu escrevi... mas parece que ele não lê muito bem, ou então alguém leu no lugar dele e fez tudo errado!

-Mas... como assim?

-Eu queria uma casa. Irmã Dulce disse que ele era o homem mais poderoso e mandão do país todo, e pensei... pensei... (ela recomeçou a chorar). Eu bem que falei que as coisas aqui na escola não eram muito boas, mas meu pedido foi a casa!

-Filha... o que você fez foi maravilhoso! Pense bem: você prestou uma grande ajuda não apenas às Irmãs, mas também e principalmente às outras crianças. Agora, elas desfrutarão de mais conforto por sua causa.

Regiane ficou pensando no que aquilo significaria, mas não conseguiu ver vantagem nenhuma para si. Resolveu não falar mais no assunto. Ao invés disso, perguntou:

-E você conseguiu falar com a mamãe, pai?

Régis entristeceu-se:

-Não, querida... nós tentamos, mas ela não pode vir. Quem sabe, mais tarde...

A menina concordou com a cabeça. Gostaria de dizer ao pai que tinha um amigo de verdade, mas lembrou-se de sua promessa de jamais falar a ninguém sobre a presença de Ricardo. Mas não faria mal fazer outro tipo de perguntas, e ela disse:

-Papai... freiras podem ser mães?

-Claro que não, Regiane! Elas são casadas com Jesus, eu já disse isso a você. 

-E Jesus não pode ser pai?

-Ele já é o Pai de todos nós, filha!

-Então... nós somos irmãos?

-Espiritualmente, sim; somos todos irmãos. Eu já expliquei a você. Mas não somos irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, fisicamente falando.

-Mas... então... se uma das freiras tivesse um bebê eu seria irmã dele também?

-Mas que história é essa, filha? É... bem... seria sim, você seria irmã espiritual desse bebê... mas eu já disse, freiras não tem bebês, não podem, são casadas com Jesus – de maneira espiritual, é claro.

-Mas... e se elas tiverem um bebê sem ninguém saber?

-De onde você tirou essa ideia absurda, menina?

Sem responder ao pai, ela continuou:

-Mas se elas tivessem um bebê, com certeza o esconderiam em algum lugar onde ninguém achasse, não é? E se alguém encontrasse esse bebê, seria muito ruim para todos, não é?

Régis decidiu não ir muito fundo no assunto, pois sempre ficava constrangido quando a filha fazia tais perguntas. Vacilou ao responder:

-Acho que sim... mas vamos mudar de assunto: como estão suas notas na escola? 
E assim passaram o tempo de visita, falando sobre as notas da escola, as matérias e as coleguinhas de Regiane. Sempre que ela tentava voltar ao assunto do ‘bebê de freiras’, Régis mudava o rumo da conversa.

Após rever sua filha, Régis foi fazer uma rápida visita às irmãs e sobrinhas antes de voltar a Niterói, de onde só voltaria a sair no mês seguinte. Madame Fonseca estava muito deprimida, e exigia sua presença mais do que normalmente o fazia. Parecia não se importar mais com os comentários dos demais empregados. Ficavam horas conversando na varanda, e naqueles momentos, ela falava de sua infância, de sua família e do quanto fora triste não ter conseguido ser mãe, e que provavelmente, por aquele motivo, seu marido a deixara. Demonstrou sentir muitas saudades de Paulinho, e disse que gostaria muito de saber o que acontecera com ele, aonde estava o menino, se ele era feliz. Régis acabou fazendo também algumas confissões íntimas; falhou-lhe de Vicentina, e da desgraça que se abatera sobre a vida dela depois que ele a conheceu. Não se isentou de responsabilidades, foi verdadeiro e demonstrou estar profundamente arrependido. Madame Fonseca chorou ao ouvir a história de Vicentina, e teve muita pena dela. Ele achou que talvez aquela seria uma boa hora para voltar a falar-lhe de Regiane, e pedir a ela mais uma vez que permitisse a vinda da filha para a mansão; mas ela continuou firme em sua decisão: não queria apegar-se mais uma vez a uma criança que não era sua, que não lhe pertencia e que poderia desaparecer de sua vida a qualquer momento.  

Após a visita de Getúlio Vargas – na qual o nome de Regiane nem sequer foi mencionado – a vida na escola voltou ao normal, mas com condições bem melhores para as crianças. Receberam uniformes novos, as refeições melhoraram e novos cobertores e roupas de cama foram comprados. Além disso, passaram a receber frutas todos os dias, após as refeições. Às sextas-feiras, as freiras escolhiam um grupo de meninas para ir passear pela cidade, e elas ganhavam doces da padaria. Também passaram a passear pelos jardins do Museu Imperial, e em algumas ocasiões, três ou quatro meninas (as que se comportavam bem e tinham as melhores notas) eram escolhidas para passear no Rio de janeiro, quando as freiras tinham que visitar a matriz da escola. Regiane foi selecionada uma vez, e adorou a viagem!

Sempre que voltava de algum passeio, ela dava um jeito de, na primeira oportunidade, ir até o porão e contar tudo a Ricardo. Ele a escutava com atenção, fazendo perguntas e comentários. Em uma destas ocasiões, Regiane perguntou-lhe:

-Você conhece o Rio de Janeiro?

-Não... como já disse, não saio muito.

-Você não gostaria de conhecer?

-Na verdade, poderia, se quisesse... mas não. Prefiro ficar por aqui mesmo. Acho que todos os lugares são iguais, ou seja, há pessoas, casas... e as pessoas sonham coisas iguais dentro de casas parecidas, aborrecem-se sobre as mesmas ninharias, criam e resolvem seus conflitos...
(ele percebe o olhar confuso da menina)

-Mas... fale-me mais sobre o Rio de Janeiro!

Regiane, que era uma menina insistente, pareceu não ter escutado, e continuou:

-Você me disse que sua mãe é uma freira; qual delas?

-Você faz muitas perguntas, Regiane. Há certas coisas sobre as pessoas que devemos respeitar. Isso se chama m privacidade. Existem assuntos sobre os quais não se deve fazer perguntas, é falta de educação.

Ela ficou muito vermelha, e baixou a cabeça. Ele percebeu, e tentou animá-la:

-Mas deixe isso pra lá, menina! Fale sobre o Rio.

Ela ergueu os olhos e olhou para ele com certa tristeza:

-É que... eu pensei que fossemos amigos.

-Mas nós somos!

-Amigos partilham tudo. Eu contei a você sobre o meu pai, e sobre as coisas que vivi, e das coisas que eu gosto. Você nunca fala de você mesmo.

-É que eu não tenho muitas coisas para contar, Regiane. Não saio nunca daqui. Você tem uma vida bem mais interessante.

-Você acha? Eu não acho... gostaria de poder ter uma casa, e morar com meu pai. Gostaria de estudar na outra parte da escola, onde estão aquelas meninas que tem uniformes mais bonitos, sapatos de verniz...

Ele fez uma carícia nos cabelos dela:

-Mas se fosse assim, não teríamos nos conhecido.
Ela pareceu pensar:

-É mesmo! Bem, então eu prefiro estudar deste lado aqui. Mas um dia, ainda quero ter  a minha casa. Você acha que eu vou conseguir?

-Acho, sim.

-E se eu conseguir, você acha que pode vir morar comigo?

Ele riu:

-As coisas não são simples assim, Regiane.


-Por que? Qual o problema?

-Você já percebeu que faz perguntas o tempo todo, menina? As pessoas não gostam de certos comportamentos. Ninguém leva um estranho para viver dentro da própria casa. São as regras sociais. Meninas não podem morar com meninos, a não ser que sejam casados.

-Então você pode se casar comigo!

Ele ficou perplexo, e respirou fundo. Regiane o deixara constrangido. Tentou disfarçar com um sorriso amarelo, e deixou uma resposta vaga, pois se dissesse não, sabia que ela faria ainda mais perguntas.

-Quem sabe, não é? Um dia...

E assim a vida corria entre as paredes daquela escola.  Regiane aprendia sobre o pecado e a culpa. Estudava as matérias, procurava tirar boas notas e não fazer tantas perguntas – embora esta parte fosse a mais difícil. Lá fora, seus primos cresciam. Os irmãos que ela não sabia que existiam, cresciam também. Seu pai continuava a tentar contatos com sua falecida mãe, que nunca se manifestou, e as tias Rosa e Fiorela, e o tio João,  levavam suas vidas no casarão, que recebia sempre muitos gatos perdidos dos quais elas cuidavam. Alguns desapareciam, outros adoeciam e morriam, e poucos envelheciam.

A amizade com Ricardo fortalecia-se cada vez mais. Ela levava suas angústias até ele, e ele a 
escutava e aconselhava. Lia os livros que ele lhe mostrava, e ambos discutiam as histórias e personagens, o que fez com que Regiane adquirisse muita sagacidade e espírito argumentativo, o que lhe rendia algumas broncas durante as aulas, pois ela não aceitava os dogmas religiosos que as freiras impunham, e queria sempre saber com detalhes os porquês das coisas. 

E foi assim que ela chegou aos seus quinze anos de idade (na verdade, treze). O pai procurava prepara-la para ser uma boa esposa e mãe, uma mulher direita, de família, pedindo que as freiras focassem nas lições de economia doméstica, corte e costura e administração do lar, mas a ideia de casar-se com qualquer outro homem que não fosse Ricardo  não a agradava. Regiane não desejava casar-se. A não ser que Ricardo aceitasse casar-se com ela. Mas ela sabia (e ele estava sempre lembrando-a) que não podia revelar a ninguém que ele estava ali, ou então, poderia perdê-lo para sempre, e então, como poderiam casar-se? Achava que o tempo resolveria aquela questão.

Ela as vezes ficava observando as freiras, fingindo prestar atenção às aulas, e imaginando qual delas seria a mãe de seu amigo: será que Irmã Regina poderia guardar aquele segredo? Não... ela era velha demais, assim como Irmã Malvina, que além de velha, era muito beata. Talvez Irmã Teresa... não; era muito jovem! Quem sabe, Irmã Carmina? Podia ser, se ela não fosse tão negra. Ricardo era branco, tinha a pele mais alva que ela já vira, e cabelos loiros. Irmã Dulce? Talvez; ela era a que mais tinha o perfil de mãe. Não sabia qual era a cor de seus cabelos, escondidos sob o hábito, mas ela tinha os mesmos olhos azuis de Ricardo. E sempre que pensava naquilo, Regiane ia adquirindo a certeza de que seu pensamento era correto, apesar de haver uma outra freira na escola do Rio de Janeiro que também se parecia com Ricardo, e tinha a idade certa para ser sua mãe... ele nunca dissera se sua mãe permanecia naquela unidade da escola.

Respeitava o segredo de Ricardo, mas cada vez mais, achava que precisava fazer alguma coisa para ajudar seu amigo que morava no porão. Notava que ele não crescera muito em relação a ela, e pensava ser a falta de sol e exercício físico as causas de sua palidez e aparência demasiadamente jovem para a idade que tinha: vinte e dois anos. Ele nunca comia na frente dela, não aceitando as guloseimas que ela lhe trazia, alegando ser alérgico a doces e a trigo. Talvez por isso fosse tão magro. 

Regiane sabia que os rapazes deviam estudar e procurar um emprego. Como poderiam casar-se, se ele não trabalhava? Ela às vezes perguntava aquilo para ele, mas Ricardo apenas ria tristemente. Se ela insistisse, ele mudava de assunto. 

(continua...)

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...