terça-feira, 5 de abril de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XXII - FINAL








O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XXII - FINAL



Regiane adormecera segurando o livro, e quando as freiras chegaram ao porão, encontraram-no às escuras. Irmã Malvina hesitou à porta do quarto que fora do filho, as lembranças dolorosas chegando aos borbotões. Mas ela reuniu forças, e abriu a porta, acendendo a luz apenas para encontrar a jovem deitada na cama, abraçada a um livro. Regiane remexeu-se na cama, despertando de seus sonhos mais doces, e deparou com o rosto duro de Irmã Malvina. Pôs-se de pé em um salto. Irmã Dulce aguardava, do lado de fora do quarto, na entrada. 

Irmã Malvina dirigiu-lhe um olhar de desprezo, dizendo:

-Soube que anda inventando histórias nesta escola. Eu sempre soube que você era uma mentirosa. 
Regiane pôs-se na defensiva, crispando as mãos e tentando não soar ríspida demais:

-Não sei do que a senhora está falando, Irmã.

-Agora que está perto de retirar-se e não precisa mais de nós, começa a inventar histórias sobre estar se encontrando com um homem neste porão, há anos? O que quer com tudo isso? Manchar a reputação de minha escola?

Regiane franziu a testa:

-Não quero nada disso, e nem seria preciso, já que a reputação deste lugar foi construída sobre falsos moralismos e segredos abafados, limitados a este porão.

Irmã Malvina indignou-se com o atrevimento da aluna, e erguendo a voz, respondeu-lhe:

-Eu não vou aceitar ser desrespeitada desta forma, mocinha! Falarei com seu pai!

-E o que dirá a ele, Irmã? Que a filha dele andou se encontrando com um homem entre as paredes desta escola de reputação tão ilibada? O que acha que acontecerá depois?

-Não se atreva a me desafiar!

Irmã Malvina foi até ela, erguendo a mão para bater-lhe, mas Irmã Dulce segurou-lhe o braço antes que ela o baixasse sobre a moça encolhida:

-Chega, por favor, Madre... vamos leva-la até o lugar onde Ricardo – o verdadeiro Ricardo – se encontra agora.

As três deixaram o quarto em silêncio, Irmã Malvina caminhando à frente e segurando uma lanterna que pegara sobre a pilha de tijolos no porão, seguida por Irmã Dulce e uma Regiane confusa e magoada. Elas cruzaram o pátio da escola, já envolto pela semiescuridão da noite que chegava, e encaminharam-se para o pomar. Irmã Malvina abriu o portão de ferro, que rangeu tristemente. Uma névoa esbranquiçada já cobria a vegetação, dando ao lugar um aspecto abandonado e triste. As árvores estavam nuas, os galhos retorcidos desenhados contra o céu avermelhado, pois era outono. Irmã Malvina chegou junto ao muro que separava o terreno da escola do terreno onde ficava um prédio de apartamentos, e parou. Jogou a luz da lanterna sobre uma lápide meio-escondida entre a vegetação. Suspirou profundamente, esquecendo-se de sua raiva. Murmurou:

-Aí está Ricardo. 

E com muita dificuldade, ela pronunciou a frase mais dolorida de sua vida pela primeira vez em público:

-Meu filho.

As três permaneceram em silêncio por alguns instantes. Regiane leu o nome e as datas na lápide, e viu que o rapaz que descansava ali, sob aquela lápide, tinha nascido, vivido e morrido há quase cinquenta anos. Sentiu-se enjoada. Afastou-se, e vomitou junto à raiz de um pessegueiro.
De repente, a constatação de que havia sido enganada. A pessoa com quem ela estava se encontrando não era quem dizia ser. Mesmo assim, ela percebeu, surpresa, que o que sentia por ele não diminuíra; pelo contrário, permanecia intocado, puro, o sentimento mais lindo que ela tinha por alguém a quem aprendera a amar durante toda a sua vida. Aquele homem que a enganara e mentira para ela, ajudara-a a ser uma mulher de verdade; ele a compreendera, secara suas lágrimas, ouvira suas histórias, rira e chorara junto com ela, ajudara-a na escola e em seus relacionamentos, através de seus conselhos amorosos e sábios, e acima de tudo, ele a amara.

Ele a tornara uma mulher, e colocara em seu coração todos os sonhos que ela jamais atrevera-se a sonhar. Ele fizera dela algo mais que apenas uma menina perdida, uma órfã que ninguém queria por perto. Ele a ajudara a desenvolver sua autoconfiança e a gostar de si mesma, aprendendo a impor-se, não aceitando o que as pessoas diziam a ela com a intenção de feri-la ou “coloca-la em seu devido lugar.” Ele a ensinara que seu lugar era aonde ela queria ficar, e que sua história estava muito além daquilo que os outros contavam a ela, pois ela mesma poderia escrevê-la, criando para si um belo futuro. Não era obrigada a recolher-se e ser quem a sociedade dizia que ela teria que ser, não importando quem fora a sua mãe ou o que ela fizera de sua vida.

Regiane compreendeu que o amor que ela sentia por aquela criatura, fosse ele quem fosse, não poderia morrer jamais. E que era ao lado dele que ela queria passar o resto de sua vida, mesmo que ele fosse um bandido, um ladrão ou um mentiroso para as outras pessoas. 

De repente, ela lembrou-se de algo importante: havia uma fotografia de Ricardo – o seu Ricardo – dentro do livro que encontrara, e que deixara sobre a cama, no porão. E aquela fotografia era tudo o que lhe restava dele naquele momento. Então, Regiane correu de volta para o porão. As duas mulheres a seguiram, e apesar de ter mais de setenta anos, Irmã Malvina nem sequer sentia-se ofegante, caminhando a passos largos, querendo ver o que a moça “aprontaria” daquela vez.
Encontraram-na sentada na cama, a fotografia diante dos olhos banhados em lágrimas. Irmã Malvina arrancou-lhe a fotografia das mãos:

-Onde a encontrou?

Regiane recuperou-se do susto, e respondeu com voz calma:

-Estava dentro deste livro. Este, é o meu Ricardo!

Irmã Malvina apanhou o livro, e leu o título. 
Aquele era o livro com o qual encontrara o corpo do filho, quando ela despertou naquela horrível manhã, após dormir sentada ao lado da cama dele. Ricardo estivera lendo aquele livro antes de morrer, mas jamais o terminara. Ela olhou para Regiane, e depois, para Irmã Dulce. Em silêncio, as duas freiras deixaram o porão. Irmã Malvina entregou o livro e a foto a Regiane antes de fechar a porta. 

.    .    .    .    .    .    .

Ele não voltava. 

Regiane esperou por ele durante muitos dias e muitas noites, muitas das quais passou em claro. Cada manhã que surgia trazia uma nova dor, fazendo com que mais um fio de esperança se esgarçasse. Ela segurava-se àquela corda fina de esperança que lhe restava, mas quando o dia chegava e ela percebia que, mais uma vez, ela acordara sozinha na cama, naquele porão, ela sentia que mais um fio arrebentara-se. Ela sofria além do que pudesse ser descrito.

O pai tentara leva-la para casa. As tias também tinham vindo, mas ninguém conseguia tentar tirá-la daquele porão sem fazer com que ela se agarrasse aos móveis, gritando desesperadamente a cada tentativa. Os médicos tentaram leva-la à força, mas o pai compadeceu-se dela, e pediu-lhes que a deixassem em paz, pois ele se responsabilizaria por ela e o que acontecesse a ela. Irmã Malvina não deixava que nada lhe faltasse, e Irmã Dulce era uma das poucas pessoas a cuja presença ela não reagia com desespero, concordando em tomar algumas colheradas de sopa e goles de água ou suco todos os dias de suas mãos. 

Regiane ficava por ali, vestida com uma longa camisola branca, os cabelos soltos, os pés descalços, abraçada a um livro e a uma fotografia. Os dias transformaram-se em semanas, que transformaram-se em meses. 

O pai vinha sempre, acompanhado de Petra, que massageava-lhe as pernas e os pés frios com óleos aquecidos, limpando seu corpo com panos umedecidos em água morna. Ela estava sendo como a mãe que Regiane sempre desejara ter, e ela nem sequer notava que a mulher estava ali. Os olhos dela estavam sempre pousados em algum lugar que não era ali, e Régis temia que a filha estivesse enlouquecendo. 

Mas o tempo passa sobre tudo, suavizando as arestas. 

Seis meses após aquele estado de torpor, Regiane começou a voltar. Primeiro, aos poucos; começou a perguntar sobre as priminhas. Prestou atenção ao canto de um passarinho lá fora. Pediu que abrissem as cortinas da janelinha do porão para que entrasse um pouco de luz. Concordou em sentar-se e tomar, sozinha, um prato de sopa. Ergueu-se da cama e conseguiu dar alguns passos pelo quarto. Recebeu Dália e Otávio. Dália estava grávida, e ela acariciou sua barriga. Perguntou à Tia Fiorela pelos gatos da casa, e se o chalé ainda existia. 

Tia Fiorela, em uma atitude totalmente inesperada para Regiane (mas sobre a qual já havia conversado com João, Rosa e Régis) dissera-lhe que o chalé não só existia, como estava esperando por ela, totalmente reformado. Ela havia mandado reconstruir o jardim, podar as árvores do pomar – que agora já começavam a dar flores, e que dentro em breve, estariam cobertas de frutos – tinha pedido a Régis que pintasse de branco os cômodos, e ela e Rosa tinham decorado tudo com roupas de cama novas e cortinas, conseguido alguns móveis usados, mas em bom estado. Além daquilo, ainda mandara melhorar as escadas que davam acesso à colina, criando trechos com rampas, que eram mais confortáveis para a subida, mandando construir corrimões. Disse-lhe que poderia ficar lá quanto tempo quisesse, e que o deixaria para ela em testamento.

Aquela notícia acelerou a recuperação de Regiane. Em questão de semanas, ela estava novamente de pé, pronta para recomeçar sua vida. 

Deixar o porão aonde fora tão feliz após passar tanto tempo ali, não foi fácil para ela. Irmã Malvina dissera que ela poderia escolher os livros que quisesse levar, e ela escolheu uma pequena pilha na qual estava incluído “Sonhos de Uma Noite de Verão,” que ela passaria semanas e mais semanas lendo ao cair da tarde, sentada em um banquinho de madeira junto ao pomar do chalé. 

Ninguém mais tocara naquele assunto na escola, e as alunas e as demais freiras continuaram a nem sequer imaginar o que se escondia no passado de Irmã Dulce e Irmã Malvina. Apenas elas duas sabiam o que acontecera, e a história vinha à tona quando elas trocavam olhares ao passarem uma pela outra nos corredores da escola. Irmã Malvina não se importou em mandar averiguar quem fora o rapaz que vivera tantos anos no porão da escola, fazendo-se passar por seu filho morto. Ela preferia acreditar que o próprio Ricardo voltara para terminar sua missão nessa terra, e quando pensava nele, era como se ele estivesse em algum lugar da terra naquele momento, vivendo normalmente. Algumas coisas eram simplesmente misteriosas, e deveriam permanecer assim; esta era a magia da vida. 
Irmã Dulce ainda pôde visitar seu segundo neto, e acabou deixando o hábito para mudar-se para a casa do filho e da nora, onde permaneceu o resto de sua vida. Viu os netos crescerem, casarem-se e terem filhos. Foi a mãe, a avó e a bisavó que sempre desejara ser. 

Régis e Petra viveram juntos o resto de suas vidas, e foram felizes. Régis serviu Madame Fonseca de todas as formas possíveis, até sua morte, aos setenta anos de idade. Ela deixou-lhe a mansão de Niterói em testamento, e ele a vendeu. Com o dinheiro, viveu uma velhice despreocupada e confortável junto à sua amada Petra. 

Rosa transformou-se na tia encantada que todas as crianças sonham. Era ela quem confeccionava os vestidos de festas, cozia os bolos e doces, contava as mais lindas histórias, colocava as crianças para dormir e tomava conta de todas, quando elas se reuniam para passar as noites no casarão no final de semana. Foi o braço direito de Fiorela, ajudando-a a cuidar dos filhos e administrar a casa. Quando soube que seu ex-noivo enviuvou, suspirou profundamente quando ele a procurou, mas despediu-se dele e tratou de esquecê-lo; alguns amores existem para serem vividos na hora certa, e depois, é tarde demais para eles. Principalmente quando o caminho que os separa é feito de mágoas e preconceitos. 
Fiorela e João, assim como Rosa, viveram vidas muito longas, chegando a passarem dos cem anos de idade. Já Régis faleceria aos 80 anos, de um ataque cardíaco. 

Irmã Malvina morreu aos noventa e dois anos de idade. Regiane compareceu ao seu enterro, levando-lhe flores que colheu em seu jardim na colina, e aquela foi a primeira vez que foi vista em público desde que voltara da escola, e também a última. Ela não compareceu a outros velórios, batizados, aniversários ou casamentos da família. 

Regiane tornou-se uma lenda; apesar de todos os esforços para que a história que ela vivera permanecesse como um segredo de família, de alguma maneira, as crianças de Fiorela acabaram contando-a na escola, entre os amigos, acrescentando detalhes que deram a ela um tom mais mágico, ao gosto das crianças.

Regiane passou a ser conhecida, muitos anos depois, como A Dama de Branco – a mulher que se apaixonara por um fantasma, e que o procurava todas as noites usando sua camisola branca. O fato, é que, como Regiane jamais saísse de casa, ela mesma confeccionou vários vestidos largos e confortáveis, simples e brancos, sem quaisquer adornos, e passou a usar somente eles. 

Quando seu pai e suas tias faleceram, Regiane já era idosa, e as primas passaram a cuidar dela. Levavam-lhe mantimentos e conversavam com ela, nas raras vezes em que ela se mostrava disposta. Regiane ainda tinha os livros que trouxera da escola, e a fotografia de seu grande amor. Todas as tardes, quando não chovia, ela se sentava no banco de madeira que ficava no pomar, e fechava os olhos. Ela então prestava atenção, e o vento conversava com ela. Sentia as mãos macias e doces de sua mãe em seus cabelos, e os lábios frios e amorosos de Ricardo sobre os seus. 
E ela sempre sabia quando alguém estava para chegar, ou para morrer.




FIM








segunda-feira, 4 de abril de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XXI











O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XXI






Eu fui uma linda jovem, cheia de sonhos, crente na bondade das pessoas. Pertenci a uma rica família, e tive duas irmãs que hoje estão bem casadas, e cujos maridos tem posições de muita importância na sociedade petropolitana. Elas nunca me procuraram – não sei se por não saberem onde me encontro... mas de qualquer forma, não o fizeram enquanto sabiam onde eu estava. Não conseguiriam conviver com o escândalo de uma irmã solteira e grávida. Meus pais não desejavam manchar a honra da família, e quando souberam da verdade, fui expulsa de casa, exatamente como aconteceu à sua mãe. 

Enamorei-me de um homem sem escrúpulos. Tão bonito e charmoso, que eu, inexperiente, não enxerguei a sua maldade, e embora meus pais tivessem me proibido de vê-lo, continuei a vê-lo escondido. Levava-lhe dinheiro, que ele me pedia alegando não ter como pagar o aluguel. Roubava das economias que minha mãe mantinha em uma caixa de madeira, no armário, até que ela descobriu que o dinheiro estava desaparecendo, e chamou a mim e às minhas irmãs para pedir satisfações. Foi aí que Cecília, minha irmã mais velha, a quem eu havia confiado meu segredo, contou tudo à nossa mãe, traindo minha confiança. Naquela época, eu não percebi que ela o fazia para o meu próprio bem, e deixei de falar com ela depois daquilo. Ela revelou que eu ainda me encontrava com o tal homem – chamava-se Fernando – e que provavelmente, eu estava levando-lhe o dinheiro, e após uma surra, confessei tudo. Meus pais exigiram que eu parasse de vê-lo, e eu finalmente, os obedeci. Mas o mal já estava feito, eu estava grávida e não sabia ainda. Descobri alguns meses depois, quando deixei de menstruar e a barriga começou a crescer. Eu era bem magrinha, e consegui esconder até o último momento.

Minhas duas irmãs mais velhas, Cecília e Judith, estavam de casamento marcado com dois irmãos, que pertenciam à uma família dos mais importantes negociantes de Petrópolis. Eu não podia propagar um escândalo que pudesse prejudica-las! 

Mas alguns dias antes do parto, mamãe descobriu tudo, e desesperou-se. Ela tinha ido até meu quarto enquanto eu dormia, já desconfiada, e ergueu os lençóis. Despertei com ela boquiaberta, olhando para a minha barriga.  Chorou muito. Papai acordou, atraído pelo choro escandaloso de mamãe. Logo, estavam todos em meu quarto. Minhas irmãs andavam de um lado ao outro, pensando no que representaria para elas aquele escândalo. Nenhuma delas preocupou-se comigo, ou com meu bebê. 

Na manhã seguinte, meu pai levou-me a uma casa que recebia mulheres na mesma situação que eu, e que após o parto, doavam suas crianças para adoção. Disseram a todos que eu estava viajando pela Europa a fim de comprar vestidos para o casamento de minhas irmãs... deixaram-me lá, e a administradora incumbiu-se de encontrar pais para meu filho. Mas eu não queria doá-lo! Ele era o meu filho, o meu bebê. Jamais pensaria em ficar longe dele. Então eu fugi durante a noite, pulei a janela e comecei a caminhar sem direção. Cheguei até as portas desta escola de manhã, e fiquei ali, observando o movimento. Olhava as meninas brincando, e nem percebia que alguém estava me observando também, e que adivinhava a minha história. A manhã avançava, e eu não conseguia arredar pé dali. Estava faminta e cansada. 

Foi quando os portões se abriram, e a Madre Superiora me acolheu, levando-me para dentro. Contei a ela a minha história, e apesar de aparentar ser uma mulher seca e dura, ela teve piedade de mim naquele momento. Alimentou-me, banhou-me e ofereceu-me esperanças. Escondeu-me no porão da escola, aonde duas semanas depois, dei à luz ao meu filho. Ela ajudou-me no parto. Ela conseguiu roupinhas para o meu bebê, pois eu não tinha nada. Eram roupinhas bonitas e antigas, mas serviram muito bem. Mas ela me advertiu que eu deveria dar a criança para adoção, pois seria melhor para todos. Neguei, pedi-lhe que, pelo amor de Deus, tivesse piedade de nós. E ela mais uma vez, me ajudou, mas pediu-me que prometesse que ninguém saberia da existência do menino, e que eu deveria me ordenar freira e cuidar dele às escondidas. Foi o que eu fiz. Meu filho Ricardo cresceu no porão desta escola, com muitas dificuldades, mas foi educado, muito bem educado. Consegui para ele os melhores livros, e ministrei-lhe aulas (durante a minha estadia aqui como noviça, formei-me professora). Ele só saía à noite, a fim de tomar ar puro, e durante os finais de semana, quando a maioria das meninas ia para casa. Tive uma amiga que o recebia em sua casa em alguns finais de semana, dizendo à sua família que ele era um órfão. Meu filho conseguiu crescer, embora com alguns problemas respiratórios... sofreu de asma na infância, mas felizmente, descobriu um médico que praticamente o curou.

Regiane parecia aliviada: agora que a história de Ricardo havia sido contada, o mistério desaparecera, e ele tomara diante dos olhos dela uma forma mais humana, mais concreta. Não parecia mais uma imagem que desapareceria a qualquer momento. Ela sorriu:

-Eu o conheço, Irmã. Lembra-se daquele dia em que as meninas me trancaram no porão? Foi quando o conheci.

Irmã Dulce pareceu confusa por algum tempo:

-Como? Quero dizer, ele está longe, agora, não vem a Petrópolis há vários anos...

O sorriso no rosto de Regiane desapareceu. Como poderia ser? Então a freira não sabia que seu filho ainda morava naquele porão?

-Mas... eu o vi, estive com ele, tenho estado com ele desde que vim para esta escola, Irmã! Ele sempre me ajudou com minhas lições de casa, sempre me aconselhou, ele foi... ele é o meu maior amigo, a pessoa que eu mais amo nesse mundo! 

Irmã Dulce negou com  a cabeça:

-O que  você está dizendo é impossível, Regiane. Meu filho foi estudar em Florianópolis. Meus pais finalmente aceitaram ajuda-lo, e pagaram por seus estudos e por um apartamento onde ele hoje mora com sua esposa e filho. 

O mundo começou a girar em volta de Regiane:

-Como.. como ele é? Quantos anos ele tem, Irmã?

-Bem, meu filho Ricardo tem hoje trinta e dois anos de idade... é moreno, tem cabelos negros, olhos pretos...

Imediatamente, Regiane percebeu que não falavam da mesma pessoa. E quem seria aquele rapaz com quem ela crescera e a quem aprendera a amar, e que vivia no porão onde se encontravam há anos? A mesma pergunta ocorreu à freira:

-Regiane.. este rapaz que você vê no porão... pode descrevê-lo para mim?

A menina estava pálida, o rosto lívido, o olhar confuso. Irmã Dulce segurou suas mãos e notou o quanto estavam frias. Regiane engoliu em seco, e começou a descrever Ricardo:

-O Ricardo que eu conheço tem vinte e seis anos, mas aparenta ser um adolescente, pois é franzino, tem a pele muito clara, olhos azuis, cabelos loiros... é uma pessoa doce... adora ler... e adora contar histórias... é discreto e às vezes eu penso que ele tem pavor de sair daquele porão. Ele me diz sempre que, se algum dia alguém o descobrir ali, ele será expulso, terá que partir para sempre...

Regiane notou que a freira estava muito pálida, e que suas mãos também tinham se tornado muito frias. As duas se entreolhavam, e Regiane não compreendia mais nada, e Irmã Dulce parecia compreender menos ainda. O silêncio entre elas foi cortado por batidas à porta: eram as outras meninas que desejavam entrar no dormitório. 

Irmã Dulce, despertando de seu transe, levantou-se, abrindo a porta, e imediatamente o quarto foi sendo preenchido pelas conversas e risadas das alunas. Regiane permaneceu sentada na cama, alheia ao movimento em volta dela. A freira voltou, e pegando-a pela mão, levou-a para fora. A noite começava a manifestar-se, e a primeira estrela despontara no céu. Regiane a viu, enquanto a freira a puxava pela mãe, cruzando a varanda da escola, conduzindo-a até o porão. Regiane foi tomada de pânico, pois não queria que Ricardo fosse surpreendido por elas daquela maneira. Ao mesmo tempo, ela não tinha forças para impedir Irmã Dulce. 

Elas chegaram em frente ao porão e a freira perguntou-lhe, estancando o passo:

-Você me disse que o rapaz que mora aqui chama-se Ricardo?

Regiane concordou com a cabeça.

-Bem, houve um outro Ricardo que morou aqui há muito tempo, com a mesma descrição que você me deu. Eu não o conheci, porém... mas dei ao meu filho o seu nome, em sua homenagem.

Regiane estava tonta, e seu coração pulava de medo. Sua pele arrepiou-se;

-Por que, irmã? Por que batizou seu filho com o nome dele? E como poderia tê-lo feito, se o meu Ricardo – digo, o Ricardo que eu conheço – é tão mais jovem que seu filho?

A freira começou a pensar no absurdo daquela história. Pediu a Regiane que esperasse por ela no porão, e voltou até o prédio da escola. Regiane entrou, mas Ricardo não estava mais por ali. Ela concluiu que se tratava de mais um de seus sumiços misteriosos, mas apesar de sentir-se tão confusa e apreensiva, ficou feliz que aquela história estivesse chegando ao final. Logo, ela deixaria a escola, e queria ter certeza de que poderia continuar a ver seu namorado... pela primeira vez, conseguira pensar em Ricardo como seu namorado, e aquele pensamento aqueceu-a por dentro, deixando-a bem mais tranquila. Deitou-se na cama, pegando um dos livros de Ricardo. Olhou a capa, e constatou que ela não se lembrava daquele. Quando o abriu, uma fotografia caiu de dentro dele sobre a colcha. Ela a pegou, olhando-a e reconhecendo nela o amor de sua vida. Levou-a junto ao coração, fechando os olhos. Ela nunca tinha visto uma fotografia dele antes, em todos aqueles anos. Olhou novamente para a capa do livro, lendo o título: “Sonhos de Uma Noite de Verão,” de William Shakespeare. Ela pensou que adoraria ler aquela história junto com ele. Fantasiou que o fariam em uma noite de verão, após casados e vivendo em sua própria casa.


 .      .       .       .      .      .

Na escola, a Madre Superiora encerrava seu dia de trabalho, fechando a pasta com os últimos relatórios sobre a escola. O dia tinha sido cheio. O ano letivo estava terminando, e algumas meninas deixariam a escola, e outras chegariam. O número de matrículas das alunas pagas aumentara, o que era muito positivo, e que significava as crianças não pagantes poderiam desfrutar de mais conforto, pois durante as férias, ela mandaria construir um playground para elas exatamente igual ao que havia do lado da escola ocupado pelas alunas pagantes.

Ela retirou os óculos, pousando-os sobre a mesa, e já estava pronta para dirigir-se ao refeitório para o jantar, quando escutou batidas à porta. Ergueu a voz, sentando-se novamente, dizendo à pessoa que entrasse. Irmã Dulce entrou, fechando a porta, o rosto muito pálido e o semblante preocupado. Irmã Malvina temeu que algo tivesse acontecido a alguma das crianças:

-Sente-se, Irmã. O que deseja? Já estava me retirando. Aconteceu alguma coisa?

Irmã Dulce a encarava, incapaz de abrir a boca, pois não sabia como começar a perguntar-lhe o que tinha que perguntar. Irmã Malvina começou a pensar que algo muito grave acontecera, e perdeu a pouca paciência:

-Fale logo! Você sabe que eu detesto suspense.

Irmã Dulce pigarreou, mas mesmo assim, sua voz estava tremida:

-Irmã... quando vim parar aqui nesta escola com um filho na barriga, a senhora me acolheu, cuidou de mim e permitiu que eu cuidasse de meu filho. E também me contou uma história. Uma história da qual nunca mais falamos.

A Madre Superiora recostou-se na cadeira, sentindo-se desconfortável. Por que ela queria falar daquele assunto tão difícil e doloroso, logo agora? Permaneceu em silêncio, e deixou que Irmã Dulce se explicasse. 

-A senhora me disse que quando chegou aqui, também estava grávida de um menino. Me contou que seu nome era Ricardo. Descreveu-o para mim e até mostrou-me uma foto, de um rapaz loiro de olhos azuis, muito pálido, que adorava ler, era inteligente mas que sofria de pânico... não conseguia sair do porão, pois fora criado ali, em segredo... em homenagem a este menino que a senhora teve, eu dei ao meu filho o mesmo nome...

Irmã Malvina começava a perder novamente  a paciência:

-Você não precisa recontar a história de minha vida, Irmã. Eu a conheço muito bem, e não gosto de conversar sobre ela... tudo isso foi há muitos anos, e se lhe contei, foi em um momento de fraqueza e nostalgia. Isso não lhe dá o direito de...

Irmã Dulce a interrompeu:

-A senhora também me disse que este menino cresceu, mas que adoeceu, e após um ano de doença, 
morreu aos dezesseis anos. 

Irmã Malvina levantou-se, não podendo suportar mais a pressão das próprias lágrimas. Caminhou até a janela, ficando de costas para Irmã Dulce.

-O que você quer, ao tocar neste assunto? Por que me tortura?

-Não desejo tortura-la, Irmã, mas preciso saber da verdade: ele morreu, realmente?

Irmã Malvina virou-se para ela, e o que Irmã Dulce viu, foi um rosto banhado em lágrimas que ela lamentou ter provocado. 

-Sim, ele morreu... eu cuidei dele com todo desvelo, apenas para vê-lo morrer de tuberculose naquele porão... e carrego esta culpa até hoje, e a carregarei pelo resto da minha vida, pois não fui como você... não tive a coragem de manda-lo para longe daqui, para que fosse criado e educado longe de meus olhos, ou de dá-lo à adoção... não tive a sorte que você teve, e agora vem remexer meu passado e acusar-me?

Irmã Malvina lembrou-se de quando Irmã Dulce chegara àquela escola, e de quando a ajudou no parto. Ao olhar para o rosto do bebê recém-nascido da outra mulher, lembrara-se do seu próprio filho, e sentira inveja por não tê-lo mais. Fizera tudo o que podia para tentar convencer a mulher a doar seu filho, apenas para que não precisasse conviver com ele todos os dias, mas a outra negara-se. Então, para não ter que ver a criança crescer correndo pelo pátio da escola, Irmã Malvina confinara a convivência de ambos ao porão. Impôs a condição de que a outra se tornasse freira e jamais revelasse a existência do menino. Odiou, quando ela lhe disse que o chamaria de Ricardo, mas tentou ser forte e aceitar a homenagem. Ela poderia suportar, desde que não precisasse vê-lo jamais, ou escutar-lhe o choro.

Irmã Dulce aproximou-se dela, mas sem atrever-se a tocá-la:

-Irmã, eu jamais a acusaria de nada! A senhora me ajudou em meu pior momento, e eu jamais sentiria qualquer coisa pela senhora que não fosse carinho e gratidão. Mas algo está acontecendo, e eu precisava confirmar essa história. Uma das alunas... Regiane... jura ter estado com ele naquele porão. Ela contou-me que os dois se veem desde que ela começou estudar aqui nesta escola, há dez anos!

Irmã Malvina quase perdeu o equilíbrio; sentou-se em um sofá que estava localizado junto à janela, as mãos na cabeça:

-Por que me tortura com essas mentiras? Meu filho está morto e enterrado! Eu mesma mostrei a você onde ele está!

Irmã Dulce ajoelhou-se perto dela, a fim de ver seu rosto, e falou pausadamente:

-Irmã... ele não está morto. Regiane fala com ele. Eles se encontram há anos naquele porão. Ela está lá agora. Com ele. 

-Deve ser algum vagabundo com o mesmo nome, que se infiltrou nesta escola e que aquela menina protege, achando ser outra pessoa.

-A descrição que ela me fez dele... é a mesma de seu filho.

-Você sabe tanto quanto eu que isso não pode ser verdade. Vamos lá agora mesmo.

Irmã Malvina recuperou as forças e a dureza de sua expressão, e seguida de longe por Irmã Dulce, pisava duro nas tábuas corridas, dirigindo-se rapidamente ao porão, disposta a desmascarar o impostor e expulsá-lo para sempre.




(Continua...)






sexta-feira, 1 de abril de 2016

O ANJO NO PORÃO - capítulo XX










O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XX




Regiane estava arrumando alguns de seus vestidos no armário que sua Tia Rosa lhe cedera. O final do ano escolar estava próximo, e ela já começara a fazer a sua mudança. Pensava em Ricardo, e no quanto sentiria saudades dele, e também no fato de não ter conseguido descobrir nada sobre ele, como por exemplo, quem era sua mãe verdadeira. Tinham combinado de se encontrar fora dali, mas alguma coisa dizia a ela que ele não cumpriria sua promessa. Não que ele não o quisesse, mas havia algo que o impedia. E ela precisava descobrir o que era, antes que ele desaparecesse para sempre de sua vida.

Rosa chegou sem ser notada, e ficou a observar Regiane arrumar o armário. Não pode deixar de perceber que a sobrinha estava preocupada, e não parecia feliz. Rosa estava encostada no portal, braços cruzados, olhando para Regiane, quando esta finalmente notou sua presença:

-Ah... olá, tia. 

-Você não está feliz, está?

-Não vou mentir. Não me sinto feliz. Sei que a senhora preferiria morar sozinha aqui, e eu também preferiria estar vivendo lá no alto, no chalé, mas sei que isso jamais vai acontecer. Tia Fiorela nunca permitiria. 

-Não tem cabimento, Regiane. Ela está certa, você é muito nova para viver sozinha. Ainda mais naquele casebre cercado de árvores no alto da colina, longe de nós, longe de tudo.

Regiane sentiu o quanto a descrição que a tia fizera do casebre soara, aos seus ouvidos, como a descrição do paraíso: “Entre as árvores... no alto da colina... longe de tudo e de todos...” sempre havia morado junto com muitas pessoas – da maioria delas, não gostara, e algumas a trataram muito mal. Seu maior sonho era ter sua própria casa, seu lar. Um lugar qualquer onde ela se sentisse a dona, e pudesse fazer o que quisesse à hora que desejasse. Um lugar onde não se sentisse sempre tão deslocada. Quase sem perceber, deu voz aos seus pensamentos:

-Meu maior sonho é ter minha própria casa.

Tia Rosa a compreendeu, pois também não se sentia bem vivendo de favor na casa da irmã:

-Entendo... mas você um dia poderá casar-se, e ter sua própria casa, enquanto eu...

Ela não terminou a frase; pigarreou ao notar que dissera mais do que pretendia. Regiane foi até ela, segurando sua mão:

-Tia, a senhora ainda é jovem e bonita. Não pensa em casar-se?

-Rosa suspirou tristemente:

-Jamais! O homem que eu amei casou-se com outra.

Regiane nada sabia daquela história, e estava muito interessada em descobrir o passado da tia. Puxou-a para a cama, sentando-se ao lado dela:

-Como assim? Por que, tia?

Rosa baixou os olhos, acariciando a colcha:

-É uma longa história... mas não gostaria de falar sobre ela. É passado, agora, e me machuca muito recordar. Vamos falar de você!

Aproveitando a intimidade daquele momento, quando uma nesga do sol da tarde entrava no quarto através da cortina e ia pousar nos desenhos da colcha de tricô, Regiane hesitou: pensava em contar a tia sobre seu segredo, sobre Ricardo.

-Falar de mim? 

-Sim! O que pretende fazer? Seu pai me disse que não quer se casar.

-Pelo menos não agora! Ainda sou muito nova, tia.

-Ora... sua avó... nossa mãe – casou-se aos quatorze anos de idade…

-Mas isso foi há muito tempo. Não quero me casar agora, a não ser....

-Percebeu que tinha falado demais. A tia insistiu:

-A não ser?...

E de repente, o segredo que a sobrinha guardava pareceu óbvio demais à Rosa:

-Você está... apaixonada! Mas é lógico, Regiane... como não percebi antes?

Regiane corou até as raízes dos cabelos, e tentou negar, lembrando-se da promessa que fizera a Ricardo de jamais mencioná-lo a outras pessoas. Mas Rosa foi implacável quando a magia do momento foi substituída pelo sentimento de responsabilidade e preocupação de tia:

-Quem é ele, e como o conheceu?

Regiane não respondeu, indo até o armário, começando a dobrar algumas blusas a fim de ficar de costas para a tia. Rosa seguiu-a segurando-a pelos ombros e obrigando-a a ficar de frente para ela:

-Conte-me tudo, Regiane, ou precisarei contar ao seu pai!

A menina arregalou os olhos:

-Por favor, não faça isso, tia Rosa! Eu... por favor, não...

-Então conte-me tudo!

Regiane foi até a porta, fechando-a, e Rosa sentou-se na beirada da cama, esperando. A menina sentou-se na cadeira de balanço, em frente a ela, e contou-lhe a história de Ricardo, as palavras saindo aos poucos, escolhidas com cuidado a fim de não revelarem mais que o necessário. Enquanto ela falava, Rosa via nos olhos dela algo que invejava: o amor. O sentimento de amor, de pertencer a alguém e de ter alguém que a ela pertencia. 

-Tudo começou há muitos anos, quando comecei a estudar no Nossa Senhora da Ajuda. Um dia, as meninas mais velhas trancaram-me em um porão para me colocar medo, e eu fiquei ali, gritando, até que notei que havia uma porta e uma luz que saía pelas frestas... pensei que fosse o jardineiro, que ele dormisse ali, e bati. A porta se abriu, e deparei com um menino mais velho que eu. Começamos a conversar. Ficamos amigos. Ele me ajudou muito com as matérias da escola, e líamos muitas histórias juntos, pois ele tem muitos livros em seu quarto. Eu era só uma criança que precisava de um amigo, alguém que olhasse para mim, conversasse comigo... fosse bom para mim! E ele foi. Ele me ajudou muito, tia Rosa. Ainda me ajuda. Conversou muito comigo quando perdi meus irmãos. Deu-me muitos conselhos quando precisei de uma palavra amiga. Cresci e amadureci aprendendo a admirá-lo e respeitá-lo.

-E ele respeitou você?


Regiane percebeu a verdadeira intenção daquela pergunta e fez a única coisa que poderia ter feito: mentiu.

-Sim! Nós nunca... quero dizer... a senhora sabe.

-E quem é este menino, por que ele estava ali?

Regiane preservou o segredo de Ricardo, mentindo mais uma vez:

-Eu nunca soube, tia... ele disse que as freiras deixavam que ele morasse ali, mas que ninguém poderia saber, ou ele seria expulso e não teria mais onde ficar.

Rosa logo notou que  a  sobrinha mentira, mas que direito tinha ela de questioná-la? Regiane havia crescido longe da família, e sem mãe; vivera em uma casa onde fora maltratada, surrada e castigada ao extremo, e depois, colocada em um colégio interno rígido e antiquado, pois as tias recusaram-se a ficar com ela. Fizeram o que seria mais cômodo para todos, não levando em consideração as necessidades de uma criança. Era natural que a primeira pessoa que lhe dera atenção e carinho, dedicara-lhe tempo e se importara realmente com ela, recebesse algo mais em troca. Temia que Régis descobrisse, e a reação que ele poderia ter quando soubesse daquela história. Seria mais um sofrimento na vida de Regiane. E pensando bem, que moral ele teria para questionar as decisões da filha?

Inesperadamente – Rosa não era de demonstrar afeto – abraçou a sobrinha, que apesar da surpresa daquele gesto, deixou-se ser abraçada, aceitando o ombro acolhedor da tia, o ombro que ela sempre desejara ter, do qual tanto precisara a vida inteira. Em um instante, anos de distância, culpas e ressentimentos apagaram-se. O caminho entre elas se abriu. Nada mais disseram durante bastante tempo. Finalmente, a tia perguntou:

-Você se casaria com ele?

Ela concordou com a cabeça, tristemente.

-E ele se casaria com você, Regiane?

-Não sei, tia... ele é muito misterioso. Acho que ele guarda um segredo. Mas eu respeito o direito dele. Não o cobro de nada. Se um dia ele quisesse se casar comigo, eu seria muito feliz. Mas eu não sei se ele pode... Às vezes, eu acho que ele sofre de alguma doença... é tão pálido... talvez pelo tempo em que vive naquele porão. 

-Eu gostaria de poder falar com ele.

Regiane pulou da cama:

-Não! Ele me fez jurar que jamais falaria sobre a existência dele com ninguém! Por favor, tia, não... dê-nos mais algum tempo! Preciso conquistar a confiança dele, fazê-lo contar-me mais, ou descobrir eu mesma... tenho medo que ele se vá, que eu o espante. A presença dele parece tão frágil... não sei explicar! Por favor, não me arrisque a perde-lo! Ele é a única pessoa que eu sinto que realmente me ama nesse mundo!

Rosa compreendeu o desespero de Regiane, e prometeu guardar silêncio. A sobrinha chorava, aos soluços, e Rosa precisou dar-lhe um copo de água com açúcar para acalmá-la. Depois, prometeu-lhe novamente que respeitaria seu segredo. 

Os dias passavam rapidamente, e Regiane sentia muita ansiedade. Sabia que seus dias na escola estavam terminando. Sentia saudades antecipadas de Ricardo, e passava muito tempo no porão. Ele pedia a ela que tivesse cuidado, pois sabia que ela aparecia em horas nas quais poderia ser vista entrando ali, e ele temia que alguém pudesse segui-la. 

-Ricardo, depois que eu for embora... o que você vai fazer?

Ele ficou mudo. Olhava para o chão.

Ela insistiu:

-Sentirá minha falta? Desejará me ver de novo, fora daqui? É o que você diz, mas não sei porque, não acredito em você. 

Ele a olhou, em silêncio, e ela entendeu: não voltariam a se ver depois que ela fosse embora. Regiane começou a chorar, as lágrimas descendo em silêncio sobre seu rosto. 

-Por que tem que ser assim, Ricardo? Você não me ama, afinal... você me enganou!

-Não! Eu jamais menti para você, Regiane, não lhe fiz qualquer promessa... desde o começo eu lhe disse que a amava, e a amo, mas há coisas que não posso mudar, que não dependem da minha vontade...

-É a sua mãe, não é? Ela é uma freira, e você aparecer para o mundo significa revelar que ela esteve com um homem, teve um filho, e isto arruinaria a reputação dela. Talvez ela fosse expulsa, ou excomungada da igreja... o que você pretende: ficar aqui o resto da sua vida? Nós podemos ir embora para longe daqui, Ricardo.

Ele não respondeu. Parecia totalmente impotente, sem argumentos. Tinha os braços estendidos junto ao corpo, e olhava para o chão. Regiane olhou para ele, irritada pelo seu silêncio:

-Não sei como pude me apaixonar por você. Olhe só para você! É magro e pálido, parece estar doente! E durante estes dez anos em que estivemos aqui, jamais me contou alguma coisa sobre seus planos, seus motivos... nunca me prometeu nada, nunca! Você me deu tanto... e ao mesmo tempo, não me deu nada!

Dizendo aquilo, Regiane abriu a porta do quarto e saiu correndo, para fora daquele lugar escuro e abafado. Ao chegar do lado de fora, sentiu o calor do sol, a sua luz ofuscando seus os olhos já embaçados pelas lágrimas. Encostou-se na parede do porão, tentando se acalmar, mas não conseguia parar de chorar. Principalmente ao realizar que estaria disposta a deixar o mundo de luz do lado de fora daquele porão escuro para sempre, trancando-se dentro dele e jogando a chave fora, se pelo menos ele pedisse aquilo a ela... mas ele não pediria. 

Alguém se aproximava. Ela podia vislumbrar um vulto através das lágrimas. Uma das alunas? Não; uma das freiras. Esfregou os olhos, e viu que tratava-se de Irmã Dulce. Ela tinha o rosto muito preocupado. E Regiane de repente compreendeu tudo: ela era a mãe de Ricardo! Só poderia ser ela, pois naquela escola, era a única que tinha idade para sê-lo. As outras eram ou jovens demais, ou velhas demais. Regiane sentiu um ódio muito forte aflorar em seu coração, algo que ela nunca havia sentido antes, nem mesmo por Celeste, que tanto a maltratara quando criança. Nem mesmo pelas suas inimigas da escola. Quando Irmã Dulce estava nem perto, Regiane estava quase explodindo de raiva. A freira parou diante dela, espantada pela expressão em seu rosto, que ela nunca vira antes:

-O que foi, minha filha? Você está se sentindo mal?

Regiane começou a falar, a voz cortante como aço:

-Sim! Eu me sinto péssima. 

-Por que? O que houve?...

-Porque estou cercada de hipocrisia, Irmã. Porque nasci a filha de uma prostituta que todos condenaram, e no entanto, vim parar neste lugar onde todas as mulheres agem como se fossem santas, mas no fundo, são iguais a minha mãe! Ou pior!

O rosto da freira crispou-se de ódio, e sem pensar, ela desferiu uma bofetada no rosto de Regiane. Surpresa, a menina chorou ainda mais. Irmã Dulce sentia um peso enorme no coração. Será que a menina havia descoberto seu segredo? Tentou acalmar-se:

-Por que está dizendo isso, Regiane? Por que nos ofende, logo nós, que a acolhemos e lhe demos um lar? A ingratidão é um pecado mortal! Você precisa pedir perdão a Deus por...

-Perdão? Pecado mortal? E o que são pecados mortais, Irmã? Por exemplo, colocar um filho no mundo e condená-lo a viver preso em um porão escuro, com medo de escândalos? Isto seria um pecado mortal?

Irmã Dulce fez o sinal da cruz, e de repente, desabou no chão, desmaiando. Quando despertou, estava sozinha. Regiane não estava mais lá. Teria ido buscar ajuda? Não esperou para ver. Levantou-se devagar, esperando que a tontura passasse, e foi caminhando em direção ao prédio da escola. Precisava encontrar a menina.  As alunas da escola a olhavam, calando-se quando ela passava, os rostos preocupados. Alguém perguntou-lhe se ela estava bem, e Irmã Dulce ergueu um braço, pedindo silêncio. Passou. Foi passando pelo corredor, dirigindo-se ao dormitório das meninas. Lá chegando, viu que estava certa: Regiane estava sentada em sua cama, de costas para ela no dormitório vazio. Irmã Dulce entrou e trancou a porta atrás de si, os passos vacilantes ecoando entre as altas paredes do dormitório. Parou diante da menina, que não olhou para ela:

Sua voz estava fraca e hesitante, mas em um tom que seria incontestável. Ela diria toda a verdade. 

-Eu não sei o que a levou a agir daquela maneira comigo, Regiane, mas você está certa: não somos santas nesta escola, somos apenas seres humanos que cometem e cometeram erros. Não sei como você descobriu o meu segredo... não se comentam estas coisas dentro desta escola. Todas as mulheres que aqui chegaram deixaram suas vidas lá fora e tornaram-se outras pessoas, algumas até trocando seus nomes. Umas vieram guiadas pela fé, e outras, pelo desespero. Eu sou uma das que vieram pelo desespero. Talvez, se sua mãe tivesse tido a mesma ideia, ainda estaria viva. Quem sabe, a não ser Deus...

Regiane a ouvia, sem interrompê-la. Sabia que tinha ido longe demais em suas palavras, e que merecera o tapa que levara no rosto. A freira sentou-se ao lado dela na cama:

-Vim parar aqui guiada pelo desespero, mas depois, a fé me guiou, e guia até os dias de hoje. Aprendi a cultivar a fé, a gratidão, o perdão e principalmente, o esquecimento sobre a vida que ficou lá fora. Sem isso, as outras coisas não teriam sido possíveis. Mas vou lembrar de tudo agora, por causa de você, para que conheça as minhas razões, pois não sabe a minha verdadeira história, e não sei o que contaram a você. Talvez, ao ouvir a verdade, você me perdoe. 


(continua...)

segunda-feira, 28 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO - Capítulo XIX







Porém, além de Dália, outras pessoas guardariam boas lembranças daquela festa de casamento: foi nela que Régis reconheceu a mulher de seus sonhos – aquela, que Vicentina destinou como sua em um sonho que tivera há muito tempo, a mulher dos longos brincos de pedras azuis. A mulher da sua vida. Assim que deitou os olhos nela, Régis imediatamente lembrou-se do sonho, do qual já tinha se esquecido. Ela estava sentada junto à mesa de doces, conversando com alguém que ele não conhecia. Aparentava estar entre os trinta e cinco e quarenta anos de idade. Ainda guardava muito da beleza de sua juventude, que emanava dos olhos, acariciava a superfície de sua pele e deitava-se sobre os cabelos negros e fartos, entremeados por discretos fios embranquecidos. Assim que a viu, Régis sentiu o coração bater aceleradamente, causando-lhe torpor, como um formigamento de ansiedade. Imediatamente começou a pensar em uma maneira de falar com ela.
Aproximou-se de Dália, parabenizando-a mais uma vez pelas núpcias, e sem conseguir tirar os olhos da estranha, indagou:

-Dália... quem é aquela senhora, sentada do outro lado da sala, envergando um belo vestido verde-escuro?

Dália voltou o rosto na direção apontada por ele, procurando pela mulher que preenchesse a descrição, e logo que  a viu, seu rosto se iluminou em um sorriso de reconhecimento:

-Oh, é uma amiga de mamãe! Seu nome é Petra. 

Dália voltou-se para Régis, e logo notou que o interesse dele era bem mais que simples curiosidade, e continuou a falar sobre Petra:

-Ela mora aqui mesmo, em Petrópolis. Infelizmente, na mesma época em que mamãe adoeceu, adoeceu também seu marido, e ela precisou dedicar-se inteiramente aos cuidados dele...

A decepção tomou conta do semblante de Régis, e ela percebeu; explicou:

-Ele morreu alguns dias após mamãe. A pobre Petra é viúva... imagine, tão jovem ainda! Tem apenas trinta e nove anos. Não tiveram filhos. Ela é muito só, já que sua família é de Mato Grosso. Venha, vou apresenta-lo  a ela! Isso, é, gostaria de conhece-la?

Régis não disfarçou seu entusiasmo:

-Mas é claro, eu ficaria absolutamente encantado!

E assim que ficaram diante um do outro, após as apresentações, a conversa entre os dois fluiu. Em pouco tempo, já sabiam de detalhes da vida um do outro. Era como se já se conhecessem há muito tempo, e logo tornou-se claro para ambos que não tinham se conhecido por acaso. Seis meses mais tarde, estariam legalmente casados! 

A parte mais difícil, foi quando Régis precisou informar madame Fonseca de seu casamento próximo; ela caiu em prantos, sentindo-se mais uma vez abandonada – acabara de receber a notícia de que, na Alemanha, seu ex-marido casara-se com Hanna, e que ambos logo teriam um filho. Lera a notícia em um jornal que seu marido assinava, e que ela não cancelara. Lá estava a fotografia dos dois, e do seu tão adorado menininho; Hanna, linda e coberta de joias, tão mais jovem que ela e já mostrando a barriga de gravidez, estava de braços dados com seu marido, que envergava sua farda do exército e aparentava ser muito mais jovem do que ele realmente era. Ambos estavam felizes, e seu menininho parecia um pequeno príncipe.  Madame sentiu-se duplamente traída:

-Oh, por favor, Régis, diga que não vai me deixar! Eu não vou suportar!

Ela nem se importava com os empregados curiosos que passavam do lado de fora do corredor, e que apesar de discretos, há muito sabiam do relacionamento muito mais que profissional entre a patroa e seu mordomo. Régis tentou colocar-lhe um pouco de juízo:

-Por favor, os empregados podem ouvir!

-E eu me importo? O que me resta, agora? Nem mesmo uma reputação! Eu tinha dito a todos os amigos e conhecidos que meu marido estava em uma missão na Europa, e agora ele aparece de braços com esta sirigaita a quem chama de esposa! A esta hora, serei o motivo de chacotas na cidade inteira, quiçá no país! Aos cinquenta e cinco anos, é isto que a vida me reservou... carregarei para sempre o estigma de mulher traída, abandonada, que mentiu sobre sua condição...

Régis sentiu muita pena dela:

-Eu estou muito triste... lembre-se de que Hanna era minha esposa também.

-Mas você nem a amava mais! Tanto, que já está para casar-se com uma outra, a quem mal conhece!

-Mas já faz muito tempo que ela se foi, Madame...

Ela caminhou pelo quarto, andando em volta dele:

-Madame... agora, volta a chamar-me de madame! Já se esqueceu de tudo o que aconteceu entre nós, meu caro?

-Nunca deixei-a pensar que estava apaixonado pela senhora... por você... e se caí em tentação, foi porque sou um homem, e a senhora foi muito... muito intensa em suas tentativas de seduzir-me. Perdoe-me a sinceridade. Não sou e nem fui apaixonado pela senhora... quero dizer, por você.

Ela sentou-se na poltrona, passando a abanar-se com um leque:

-Saia, Régis, por favor.

Ele manteve-se de pé, as mãos crispadas junto ao corpo. Ela repetiu:

-Saia!

Ele começou a caminhar em direção à porta, mas ela o deteve:

-Se pelo menos puder contar com seus serviços de mordomo nesta casa...

Ele suspirou, aliviado; conseguir um outro emprego que pagasse bem como aquele não teria sido fácil.

-Obrigada, madame. Pode contar comigo sempre, neste sentido, quero dizer...

Ela o interrompeu:

-Eu já entendi, senhor Régis. Pode sair.

E assim tudo ficou acertado: Régis reassumiu seu posto de mordomo naquela mansão, embora, meses depois, algumas vezes ainda servisse a sua senhora da maneira antiga – noites despretensiosas na qual nenhum dos dois falava de amor, apenas da necessidades do corpo, que se expressavam e eram saciadas. Na manhã seguinte, Régis voltava a ser o mordomo, e ela, a senhora da casa. 

Regiane sentia-se solitária na escola, já que suas duas melhores amigas há anos tinham deixado a escola, devido a idade, sendo que a mais velha, Dóris, conseguira um casamento e já esperava um filho, e Célia, a mais jovem, passou a morar e trabalhar em casa de família. Ambas ainda escreviam a Regiane algumas vezes, mas cada vez mais raramente. Não era fácil para Regiane fazer novos amigos, pois era demasiadamente desconfiada e reservada. Após o casamento de Dália e Otávio, ainda permaneceu na casa durante um mês, mas logo percebeu que já não fazia mais sentido ficar vivendo ali, atrapalhando a intimidade do casal e gerando despesas a Otávio, embora ele jamais tivesse reclamado. Assim, voltou a viver na escola, e passava cada vez mais tempo no porão, na companhia de Ricardo e seus livros. 

Regiane achava incrível que nenhuma das freiras tivesse percebido para onde ela ia nos momentos de folga, e ela era muito cuidadosa para que não notassem, pois lembrava-se sempre da promessa que havia feito a Ricardo, de jamais revelar sua presença ali. Muitas vezes, arrumava-se nos finais de semana como se estivesse indo passa-los em companhia do pai, mas ao invés de sair pelo portão, entrava no porão e ali ficava até o raiar da segunda-feira. Ricardo passou a estar presente mais vezes, o que fez com que ela se sentisse aliviada. Seu maior medo, era que ele a abandonasse e nunca mais ela viesse a saber dele. Suas investigações a fim de descobrir quem seria a verdadeira mãe de seu amor mostraram-se infrutíferas. Ela não desistira, mas achou melhor esperar e ter mais paciência, pois achava que a verdade acabaria caindo de surpresa em seu colo. 

Numa sexta-feira, após o período de aulas, Irmã Malvina mandou chama-la em sua sala. Apreensiva, Regiane dirigiu-se para lá, cruzando os longos corredores de tábuas corridas, sentindo os olhos das pessoas há muito mortas, nas fotografias,  presos em suas costas enquanto ela passava. Passou pela cristaleira que ela quebrara com um soco de raiva, os vidros já restaurados, e aquilo fez com que ela recordasse dos muitos anos que ela morava naquela escola – quase dez anos. Sabia muito bem que Irmã Malvina ia falar da chegada dos seus dezoito anos (embora fosse completar dezesseis) e do fato de que ela teria que tomar uma decisão: deixar a escola ou tornar-se noviça. Já havia tido aquela conversa com ela antes, e pedira tempo para pensar; na verdade, queria apenas ganhar tempo. 
Regiane bateu à porta levemente, ouvindo a voz rascante da velha freira mandando-a entrar, o que ela fez, e após um sinal com as mãos, mandando que ela se sentasse, Regiane o fez e aguardou em silêncio até que a freira terminasse de examinar alguns documentos. Após alguns minutos que pareceram horas, Irmã Malvina ergueu os olhos para ela:

-Bem, sabemos que daqui a apenas dois meses você completará dezoito anos, e gostaria de saber se já tomou uma decisão quanto ao seu destino nesta escola – ou fora dela. 

Regiane engoliu em seco antes de responder, torcendo as mãos sobre a saia do uniforme:

-Eu acho que não tenho vocação para tornar-me freira, Irmã.

A feira ficou olhando-a, estudando seu rosto. Limpou os óculos na barra da saia, considerando o que  acabara de ouvir, tentando, quem sabe, ver naquela declaração algum tipo de ofensa velada. Após um longo silêncio, concordou com a cabeça:

-Então é melhor conversar com seu pai, pois minha responsabilidade sobre você está terminando. 
Agora pode ir.

Regiane levantou-se rápido demais, aliviada, e após uma mesura, deixou a sala. Correu até o porão, onde contou a Ricardo o que acabara de ocorrer-lhe:

-...E ela pareceu feliz por livrar-se de mim, Ricardo...

Ele pensou um pouco antes de responder, e Regiane percebeu que ele estava ainda mais pálido do que de costume. 

-Acho melhor você fazer o que ela diz.

Regiane considerou:

-Mas... eu não sei o que eu quero! Digo, eu sei o que eu quero, meu destino está ao seu lado, mas você não parece estar disposto a passar o resto de sua vida comigo, mudando sempre de assunto quando começo a falar sobre isso. 

Ricardo apertou-lhe as mãos, beijando-as em seguida:

-Meu anjo, nada há no mundo que eu mais deseje... mesmo assim, acho que você deve falar com seu pai.

-Sobre nós?

Ele levantou-se de um salto:

-Não! Nunca fale sobre mim, combinado? Quero que fale com ele sobre você, sobre seu destino.

Ela respondeu, zangada:

-Bem, ele quer que eu me case, com qualquer um. Qualquer marido, para que eu seja uma moça de família, diferente de minha mãe. Como minha amiga Dália, que se casou sem amor apenas para ter um marido, um homem zelando pela sua reputação. Mas eu não penso assim, acho que uma mulher tem outras coisas interessantes a fazer sem precisar casar-se e ter filhos! A não ser... só me casaria com você.

Ricardo pareceu aborrecido, e decidiu mudar de assunto:

-Veja, Regiane! Um livro que ainda não lemos, estava guardado no fundo da estante... 

Sentou-se na cama, convidando-a  a ficar ao seu lado. Mas Regiane era implacável:

-Papai casou-se de novo, e está feliz. Uma mulher chamada Petra...

-Eu sei, você já me disse. Já pensou em morar com eles?

-Não me sentiria bem morando com uma estranha... e ele passa a semana toda em Niterói, trabalhando. Só vem nos finais de semana e feriados, ou nas férias. 

-Você não gosta de Petra?

-Gosto, mas... é constrangedor. Na verdade, ela até convidou-me para viver com eles, mas eu disse que ia pensar... na verdade, não aceitarei. E Tia Fiorela quer que eu vá para o casarão, mas apenas para tomar conta das crianças... não quero passar minha juventude olhando os filhos dos outros. Gostaria de ter meus próprios filhos.

O rosto de Ricardo entristeceu-se profundamente. Regiane perguntou-lhe:

-O que foi, Ricardo?

-Nada... é que... e se você ficasse aqui na escola, e se ordenasse freira?

-Deus me livre! Não tenho vocação. Para dizer a verdade, não acredito na maioria das coisas que a religião prega! Imagine só, cultuam um Deus que morreu em uma cruz que eles mesmos ergueram, sofreu, foi torturado, e ainda acham-se merecedores de perdão! Os católicos são tão pretenciosos, que acham que mereceriam que um deus se sacrificasse por eles. E que, não importa o que façam, tudo pode ser perdoado se contarem ao padre e rezarem algumas Aves-Marias. E eu simplesmente morro de tédio durante as missas!

-Se uma das irmãs a escutar falar assim, você será expulsa da escola.

Ela riu:

-E o que importa? Logo sairei mesmo...

Ambos riram. Ele a beijou de leve, e ela sentiu um formigamento nos lábios, como se, ao invés de tocá-la, ele tivesse soprado um ar gelado sobre sua boca. Regiane abriu os olhos, em pânico:

-Ricardo, você está frio... e tão pálido! Você está bem?

-Sim, claro. Nunca estive melhor. Mas... vamos ler um pouquinho? Já faz tanto tempo que li esta história!

-É sobre o que?

Ele abraçou-a, aconchegando-a em seu peito.

-É uma história de amor.


.    .    .    .    .    .    .    .    .


Régis estava conversando com a filha. Ambos caminhavam pela avenida Koeller em uma manhã de domingo. Ele tentava, sem sucesso,  ‘colocar um pouco de juízo’ na cabeça da filha, e começou a ficar impaciente:

-Mas onde já se viu? Você não quer ficar na escola, e não quer morar com Petra e comigo... também não aceita viver com suas tias, pois não quer tornar-se babá das priminhas... o que lhe resta, filha? Uma mulher não pode tomar conta de si mesma, e além do mais, onde iria morar? Não tenho condições de pagar uma casa para você. 

Regiane franziu a testa, aborrecida:

-Ora, você mora com Petra... e quando está trabalhando, mora com Madame Fonseca. Antes, precisava alugar um quartinho. Durante um bom tempo, pagou um quartinho para mamãe viver. Por que não pode pagar um para mim?

-Já falamos sobre isso, menina! Mulher direita não mora sozinha. Você precisa achar um marido! Há de viver com suas tias até que encontremos um.

Ela bufou:

-Papai, maridos não se compram em supermercados! Antes, é preciso que haja amor, eu preciso apaixonar-me!

-Bobagem! Amor é coisa de tolos.

-Mas você se apaixonou por Petra, não é?

Ele rendeu-se, sem argumentos:

-Mas eu sou um homem. Eu posso. Posso dar-me ao luxo de viver sozinho e fazer escolhas sem consultar ninguém.

-É... eu sei... e pobre de quem estiver no seu caminho!

Dizendo aquilo, ela acelerou o passo, caminhando adiante dele. Régis deu-se conta do que acabara de dizer, e de que a filha estava coberta de razão. Apressou-se, alcançando-a.

-Desculpe, você está certa... mas estou preocupado com você, Regiane. Daqui a pouco, terá que deixar a escola, e não vejo o que posso fazer por você. 

-Alugue-me um quartinho, pai. Logo estarei trabalhando, e poderei assumir minhas despesas.

Ele quase perdeu a paciência de novo, mas controlou-se. Respirou fundo;

-Regiane, e o que você vai fazer? Será uma empregada doméstica? Uma secretária em meio-expediente, recebendo um pequeno salário? Ou quem sabe, vá trabalhar em uma padaria como balconista? Você não fez o curso normal ainda, então não poderá ser uma professora. É claro que se desejar fazê-lo, eu a ajudarei, mas você terá que morar com suas tias!

-Pai, eu não quero ser professora, tive aulas de inglês comercial na escola, e também nos ensinaram datilografia. Posso trabalhar em um escritório!

-Mas você só tem dezesseis anos!

-Dezoito, pai. Dezoito!

De repente, um pensamento passou a ocupar a cabeça de Régis: será que a filha estava enamorada, e por isso recusava-se a casar-se? E se o rapaz estivesse apenas tentando aproveitar-se da inocência da filha? Lembrou-se dele mesmo na juventude, e um calafrio percorreu sua espinha ao pensar que a filha pudesse estar sendo vitima de algum cafajeste:

-Querida filha... você não deseja casar-se. Fico pensando: será que está apaixonada por alguém?
Regiane sentiu o rosto ficar vermelho e quente, e abanou-se, tirando um leque da bolsa:

-Ora, papai... é claro que não...

Mas Régis conhecia bem a filha, e sabia que tocara em um ponto sensível.

-Filha, diga a verdade! Se estiver apaixonada, quero conhece-lo. É preciso certificar-me de que ele a merece, de que tem boas intenções...

-Pa... papai, o senhor está delirando. Deve ser o sol quente.

Régis quase gritou:

-Mais respeito, Regiane! 

-Desculpe, papai. É que... como eu poderia me apaixonar por alguém, se vivo trancada naquela escola?

Ele pensou, e concordou com a cabeça. Porém, alguma coisa não parecia certa, apesar de toda a lógica no pensamento da filha. 

Após muita conversa, os dois acabaram indo almoçar no casarão. Ao ouvir sobre o dilema da sobrinha, Fiorela decidiu:

-Sem mais torturas e discussões: você virá morar conosco. Entendo que não queira viver no casarão, ninguém é obrigado a gostar de tomar conta de crianças (fui egoísta, me desculpe, Regiane).  Ocupará um quarto na edícula, com Rosa. 

Apesar de adorar a companhia da tia, Regiane preferia viver sozinha no chalé:

-Obrigada, Tia Fiorela, mas eu não poderia viver sozinha no chalé? Está vazio há anos! Papai poderia ajudar-me a pintá-lo, e retiraríamos todas aquelas ripas de madeira dos cômodos, e...
Fiorela arregalou os olhos e ergueu a voz, enquanto todos à mesa balançavam a cabeça diante do ‘absurdo’ da proposta:

-Minha sobrinha está totalmente louca? Como você poderia morar lá em cima sozinha? Subir aquela escadaria todos os dias, ficar isolada no meio daquelas árvores? E quando desse uma tempestade? E se algum louco invadisse o terreno por cima? Não; está fora de cogitação!

Rosa, que gostava de suas horas de solidão quando sentava-se em sua cadeira de balanço para pensar no amor que perdera ou para vê-lo passar na rua,  tentou argumentar:

-Mas pense, Fiorela: o chalé está vazio há muito tempo, e se Regiane fosse morar lá, ele permaneceria bem conservado!

Regiane segurou a mão de Rosa sobre a toalha, dirigindo-lhe um olhar de gratidão:

-Obrigada, tia Rosa!

Mas Fiorela e João passaram a protestar ao mesmo tempo, e num segundo, todos estavam falando ao mesmo tempo, e ninguém entendia nada; finalmente, Régis deu um soco na mesa, e todos se calaram:

-Chega! (e dirigindo-se à filha): Está decidido: ou você vem morar com sua Tia Rosa ou então ficará no convento!

(continua...)




quarta-feira, 23 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVIII









O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVIII



Regiane achou melhor não comentar com ninguém o que lhe aconteceu enquanto estava na colina. Todos notaram que ela estava calada, mas ela respondeu que estava apenas um pouco indisposta. Sentindo-se culpada pela discussão que acontecera mais cedo, Fiorela serviu-lhe uma xícara de chá e convidou-a para passar a noite, mas Regiane disse que precisava voltar para casa, pois Dália não gostava de ficar sozinha. João levou-a de carro, pois já estava escuro, e durante o trajeto, ela não disse palavra, apenas pensando no que acabara de ocorrer.

Nos dias que se seguiram, prestar atenção às aulas era quase impossível, e Regiane precisou estudar com muito afinco a fim de passar nos testes. Felizmente, Ricardo voltara, e a ajudava com as matérias, ela às vezes se perguntava como ele podia saber tantas coisas, e como, apesar da passagem do tempo desde que se conheceram, ele mantinha sempre a mesma aparência. Ela contara a ele sobre o ocorrido, e após ouvi-la com muita atenção, Ricardo disse:

-Você teve uma linda experiência, Regiane. 

Ela ajeitou a saia, levantando-se da cama e caminhando pelo quarto:

-Você acha?

-Mas é claro! Você é médium, não há a menor dúvida.

-Mas... e se tudo não passou de imaginação?

Ele olhou-a profundamente nos olhos, segurando-a pelas mãos:

-Acredite em mim: você é médium, e das melhores. 

Ela riu:

-O que você sabe sobre isso?

-Não muito...mas apenas sei.

-Meu pai gostaria que eu frequentasse suas reuniões espíritas, pois ele acha que se eu for com ele, mamãe aparecerá... na verdade, eu tenho um pouco de medo dessas coisas... não gosto muito de fantasmas... a não ser os que eu conheço. Ah, se as freiras soubessem que eu fui a um lugar daqueles, com certeza me expulsariam da escola! Imagine, a madre Superiora, com toda a sua ‘superioridade’, descobrindo que uma de suas alunas católicas, uma das suas Filhas de Maria, está frequentando reuniões espíritas!

Ele riu, mas seu sorriso era triste.

Os olhos deles pareciam melancólicos. Ele parecia muito triste naqueles últimos meses, desde que começara a se ausentar, e por mais que ela perguntasse, ele jamais dizia aonde ia ou quando iria voltar, deixando-a muito angustiada. Pedia que ela confiasse nele. Regiane não tinha qualquer outra alternativa; restava-lhe ter esperanças e confiar.

No sábado, Regiane e seu pai estavam esperando ansiosamente pela chegada de seus irmãos, Antônio e Pedro, marcada para aquela tarde. Régis lembrava-se da surpresa que tivera ao vê-los pela primeira vez, pois um deles parecia-se muito com ele – apesar de Vicentina ter-lhe jurado que não eram seus filhos. Mal via a hora de estar frente a frente com os rapazes novamente a fim de esclarecer de vez a sua dúvida. 

O trem chegaria à uma da tarde. Apesar da contrariedade demonstrada por Fiorela, João convidara a todos – inclusive Dália e seu noivo Otávio – para almoçarem no casarão. Estavam todos lá, aguardando que Régis chegasse com Regiane e os meninos. Mas a hora da chegada do trem passou, e nada de trem... de repente, os dois começaram a ouvir um burburinho na estação, e pessoas apressadas e preocupadas corriam de uma lado para o outro, carregando papéis, batendo portas, os rostos preocupados e muito aflitos. Outras pessoas que também aguardavam o trem começaram a ficar apreensivas. Regiane sabia que algo errado havia acontecido, e naquele momento, lembrou-se da conversa que tivera com a mãe. Logo, chegaram as más notícias: o trem descarrilhara, matando cinco passageiros e ferindo vários outros.

Ávidos por mais notícias, Régis e Regiane consultaram os funcionários da ferrovia, já atarefados e confusos com tantas perguntas e podendo fornecer tão poucas respostas. No fundo, Regiane desconfiava do que tinha acontecido. Todos queriam a lista de passageiros a fim de saber se seus amigos e entes queridos estavam realmente naquele trem, e se estavam, queriam – ou melhor, exigiam – saber se estavam bem. 

Logo, o funcionário da bilheteria anunciou que se acalmassem, pois os feridos estavam sendo conduzidos ao Hospital Santa Teresa. Regiane e o pai correram para lá, e quando chegaram, havia à porta do hospital uma enorme confusão de macas, ambulâncias, repórteres, pessoas aflitas e curiosos. Régis pensou no quão rapidamente as más notícias se espalhavam! 

Regiane olhava a profusão de feridos que chegavam, tentando adivinhar em seus rostos as feições dos irmãos que nunca vira. Régis telefonou ao casarão avisando do ocorrido, e em poucos minutos, Rosa, João, Dália e Otávio chegaram ao hospital. Fiorela permanecera em casa com as crianças. 
Finalmente, após algumas horas, saiu a lista dos mortos – que subira para doze pessoas. 
Regiane constatou que os nomes de seus irmãos estava entre eles.  Rosa a abraçou, enquanto Régis tentava chegar aos corpos. Com a ajuda de Otávio e João, foram tratar dos papéis, e as mulheres tomaram um táxi para casa. 

Ao abrir a porta e ver as outras tão abatidas, Fiorela imediatamente deduziu o que acontecera. Abraçou a sobrinha, que parecia mortificada – mas que não chorava, apenas fitava o vazio – e tratou de acomodá-la no sofá, servindo-lhe uma pequena dose de licor. Dália passou um braço em volta dos ombros de Regiane, e Rosa segurava-lhe a mão. Apesar de sentir-se amparada pelas tias e pela amiga, Fiorela gostaria de estar nos braços de Ricardo naquele momento. De longe, a pequena Léa olhava aquela cena triste, sem nada entender. De repente, ela aproximou-se da prima, fazendo-lhe uma carícia no rosto. Regiane abraçou-a, chorando finalmente. 

Após algumas horas, Otávio, João e Régis retornaram, avisando que os corpos já estavam sendo preparados para o funeral, que ocorreria na tarde de domingo. Regiane anunciou:

-Quero passar a noite na capela. 

Régis adiantou-se:

-Não, querida... vá para casa com Dália, eu cuido disso.

-Não! São meus irmãos! Eu não vou abrir mão de acompanha-los em seu último dia na terra. Jamais os conheci, mas ansiei e me alegrei pela chegada deles, que se aproximava... agora que chegaram, eu irei recebe-los, mesmo que já não estejam mais aqui.

Régis concordou com a cabeça. Disse:

-Eu ficarei com você. 

E de repente, todos, exceto Fiorela, que teria que ficar cuidando das crianças, partiram para a casa funerária. 

Ao chegarem lá, Regiane, que parara de chorar, aproximou-se dos dois caixões que tinham sido postos lado a lado, e olhou nos rostos estranhos. Meninos ainda... meninos que jamais acordariam. Meninos que tinham uma vida inteira pela frente, e que por uma armadilha do destino, agora teriam pela frente apenas uma longa morte, uma misteriosa morte... ela acariciou seus rostos, e disse-lhes palavras aos ouvidos. Depois, sentou-se junto com os outros, pronta para passar uma das piores noites de sua vida. No dia seguinte, todos estavam exaustos. 

Regiane pensava em Ricardo, e no quanto ela gostaria que ele estivesse ali com ela, mas nem tivera tempo de ir à escola avisá-lo. Algumas das freiras compareceram, mas Irmã Malvina não dera o ar de sua graça – apenas enviara, através de Irmã Dulce, um ramo de flores do jardim: agapantos e rosas em um lindo buquê. Alguns vizinhos também passaram por lá rapidamente, em respeito à família. 

Quase na hora do sepultamento, chegaram os pais adotivos dos meninos. Eles se postaram respeitosamente ao lado dos filhos. A mulher chorava baixinho, amparada pelo marido. Pareciam conformados. Era como se a vida lhes tivesse emprestado aquelas crianças para que fossem felizes durante algum tempo, mas chegara a hora de devolvê-los. 

Súbito, todos os olhares se dirigiram para a porta da capela: era Diana que chegava. Usava um véu preto cobrindo o rosto, mas sua maquiagem pesada, que aparecia sob o véu,  e o corte ousado  de suas roupas, denunciavam que ela não pertencia àquele grupo de pessoas. Régis a reconheceu imediatamente – a cafetina que abrigara Vicentina. Deixou que ela se aproximasse dos caixões e fizesse o sinal da cruz, permanecendo lá por alguns instantes. Depois, ela caminhou até a irmã e o cunhado, abraçando-os. Conversaram por alguns instantes. Todas as pessoas observavam a cena. De longe, ela deu uma boa olhada em Regiane, parecendo reconhece-la. Em seguida, seus olhos pousaram em Régis. Ele a cumprimentou com um aceno de cabeça. Depois, como nada mais tivesse a fazer ali, Diana virou as costas e afastou-se. 

Régis levantou-se, seguindo-a:

-Senhora Diana... espere, por favor!

Ela estancou o passo, sem olhar para trás. Régis tocou-a no antebraço, obrigando-a a olhar para ele:

-Eu preciso saber: um daqueles meninos era meu?

-Ela o encarou com desprezo nos olhos, ironizando-o:

-Vocês homens são sempre tão engraçados! Abandonam suas mulheres à própria sorte após usá-las, e depois fingem preocupar-se com elas ou com o que lhes acontece! Seria um súbito ataque de culpa? Saiba que Vicentina teve seus momentos de felicidade em minha casa, e que se estes meninos sobreviveram, foi porque eu os ajudei. Que direito de paternidade poderia qualquer homem ter sobre eles? E por que preocupar-se com isso, agora que estão mortos?

Régis deixou escapar uma lágrima, que ele secou rapidamente com a manga do casaco:

-Por favor... preciso saber da verdade.

-Não seria melhor se não soubesse?

Dizendo aquilo, ela virou-lhe as costas, afastando-se a passos largos e pesados. Régis ficou parado no corredor, sentindo o peso daquelas palavras reduzirem-no à poeira que estava depositada nas mesas e nos cantos dos rodapés. Em volta, a morte se espalhava. O descuido daquela sala retratava perfeitamente o estado de seu coração. 

Ele jamais ficaria sabendo, oficialmente,  qual dos meninos era seu filho, mas no fundo, ele sabia. Soubera no primeiro momento em que olhou para ele, naquela fazenda.

A vida segue após cada morte. Os vivos tem suas urgências, e precisam atende-las a fim de continuarem vivos. Quando a tampa de um caixão se fecha, fecha-se também um ciclo da vida. Há uma separação definitiva. Um corte. E nem toda a saudade do mundo poderá fazer com que aquela tampa se abra novamente, e que aquela pessoa volte a abrir os olhos e ser quem sempre foi. O que ela se torna após a morte, está nos livros fechados do mistério, e o que ela foi em vida, é pouco a pouco reinventado por aqueles que dela se lembram. Caráteres rascantes vão se tornando doces pouco a pouco; os bêbados tem seus adjetivos trocados por palavras mais amenas, como românticos, boêmios, sonhadores e tristes. As prostitutas passam a ser lembradas como pobres mulheres a quem a  vida não deu o dom da boa sorte. As mães tornam-se santas, não importando que tipo de mães elas foram. As crianças, estas, tornam-se anjos. 

Regiane teria dois anjos velando por ela. Assim disseram-lhe as pessoas, tentando confortá-la. E assim ela passou a pensar nos irmãos. 

Acontecimentos tristes e alegres intercalam-se nos caminhos da vida. Dias após o choro, aquelas pessoas que estavam reunidas em volta dos caixões se reencontraram a fim de celebrar um casamento. Logo estavam todos usando suas melhores roupas e sorrisos, as mulheres com seus vestidos de festa esvoaçantes, os homens vergando ternos novos e bem cortados. Um casamento era celebrado.

A noiva estava linda, pois todas as noivas são sempre lindas. O noivo, feliz, esperava-a no altar, e enquanto ela se aproximava vagarosamente, sendo conduzida por seu primo João, Otávio sentia-se o mais feliz dos homens, e ela, tímida, sonhava com a noite de núpcias na qual descobriria os prazeres do sexo nos braços do seu marido. E nada poderia tirar a magia que estava sobre as coisas naquele momento; nem mesmo o futuro que lhes aguardava, a realidade após o sonho, o marido tornado alcoólatra, que perderia nas mesas do Cassino Quitandinha grande parte do que ganhava. Nada faria com que as fotografias não fossem lindas, e os olhares nelas eternizados emanassem promessas de felicidade a quem quer que as olhasse, mesmo anos depois, retirando-as de caixas de papelão, quando já fossem amareladas e cheirassem a mofo. As imagens sobrepujariam a realidade. Toda vez que a caixa fosse aberta, as pessoas que ficaram no passado invadiriam as salas, os cômodos das casas, os corações das pessoas do presente, que por alguns instantes de magia, sentir-se-iam novamente jovens, cheios de sonhos e de boa vontade. 

Dália guardaria aquela caixa mágica sobre o armário, recorrendo a ela nas noites solitárias em que seu marido estava longe – quem sabe, nos braços de outras mulheres – bebendo, jogando e acabando com o pouco patrimônio que seus pais lhes deixaram. Felizmente, a casa estava em nome dela e eram casados com separação de bens, o que evitou que fossem colocados na rua. Foi-se o pouco dinheiro no banco, suas joias (que ele levava na calada da noite), algumas roupas e objetos valiosos, o salário que ele recebia, e ás vezes, quando ele conseguia encontrar, o salário que ela recebia trabalhando em meio expediente em um consultório médico. E ela apenas sorria, tentando mascarar a realidade aos olhos dos outros, honrando seu marido e sua família exatamente como sua mãe a ensinara a fazer, tudo pelo bem das crianças. Afinal, o casamento era uma instituição sagrada e indissolúvel. 



(continua...)








A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...