segunda-feira, 2 de maio de 2016

A RESENHA DO MAL - CAPÍTULO II









A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO II



Uma luz mortiça entra pelas frestas da cortinas. Décio desperta antes que o despertador o acorde, e toma uma ducha rápida antes de sair em direção à redação da revista, que fica no Rio. Não toma café da manhã para economizar tempo no trânsito, mas tem sempre um pacote de biscoitos e uma garrafinha de água no porta-luvas do carro. Se Lana soubesse o quanto seu filho se alimenta mal, teria um ataque do coração. Na hora do almoço, ele se enfiaria em um self-service qualquer, evitando as saladas, ou então agarraria um sanduíche em alguma lanchonete gordurosa: qualquer coisa que fosse rápida. Os amigos se admiravam do quanto ele parecia em forma, mesmo comendo o que comia, e o apelidaram de avestruz. É que apesar de não comer muito bem, Décio exercitava-se três vezes por semana em uma academia perto de casa, e sempre fazia longas caminhadas aos sábados e domingos. 

Ao chegar na redação da revista, a reunião acabara de começar. Entrou e desculpou-se pelo atraso. Rafaela, uma beldade morena de longos cabelos castanhos, olhou-o por cima dos óculos, sentindo o coração bater mais forte. Mas Décio apenas a cumprimentou com um aceno de cabeça, e ignorou-a o resto do tempo. Tinham ficado algumas noites juntos há alguns meses, e ela se apaixonara, como a maioria das mulheres com quem Décio se relacionava, mas para ele, Rafaela era apenas uma página virada. Raramente ficava com a mesma garota mais do que algumas noites. 

Ao final da reunião, ainda no corredor, Rafaela o chama; Décio vira-se na direção dela automaticamente, esperando, enquanto os outros passam apressadamente para começarem o dia de trabalho em suas mesas. Ela o olha, sentindo o rosto ficar um pouco vermelho, e engasga ao tentar falar. Ele a olha, esperando, metade do corpo virado na direção contrária a ela, demonstrando pressa. 

Ela sorri:

-Eu... estive pensando, Décio... acho que podemos ficar juntos neste projeto.

Ele sacode a cabeça:

-Acho que não, Rafa. (Ela odiava ser chamada assim). Sérgio já distribuiu as tarefas. Eu vou trabalhar em casa, em Petrópolis. 

-Mas quem sabe, eu poderia ajuda-lo nos finais de semana?

-Eu não trabalho nos finais de semana, Rafa. Mas mesmo assim, obrigada.

Sem esperar mais, ele vai embora, deixando-a plantada no corredor. Ao passar pela sala de Sérgio, o redator chefe, ele o manda entrar:

-Hã... Décio... eu acho que tenho um trabalho extra para você. 

-Contanto que seja antes das minhas férias... sabe, ela começa daqui a duas semanas, lembra-se?

Sérgio ergue as sobrancelhas:

-Sim, é claro... hã... mas quem sabe você possa termina-lo antes disso? Preciso que você escreva uma reportagem sobre uma  psicopata que saiu da cadeia devido a idade avançada e uma doença grave, após cumprir 25 anos de pena... o nome dela é Endora. Os jornais não anunciaram, mas fiquei sabendo através de um contato e achei que poderia dar uma história interessante... ela matou o marido e os sogros com veneno, e também mais quatro pessoas.

-Bem, não é bem a minha área... eu escrevo resenhas de livros e filmes.

-Mas este é exatamente o tom que eu gostaria que você desse à esta reportagem: uma resenha. Quero que você descubra detalhes sobre Endora, o que a levou a cometer os assassinatos.

-Hum... parece interessante, pensando melhor... e onde ela mora?

-Em Bernardina, uma pequena cidade quase-fantasma ao sul de Minas. 

Décio gostava de desafios, e começou a interessar-se pela história. Sabia, tanto quanto Sérgio, que não conseguiria entregar a história em menos de quatro semanas, pois também estava envolvido em outros projetos. Alguma coisa lhe disse que gostaria muito de caprichar naquele, e então propôs:

-Eu topo, mas só se você me deixar terminar os dois outros trabalhos antes, para que eu possa me dedicar inteiramente a este. Falta pouco, se eu trabalhar hoje à noite, poderei partir ainda esta semana.

Sérgio riu satisfeito, recostando-se na cadeira e cruzando as mãos sobre o colo.

-Eu sabia que você seria a pessoa certa! Mas... e as férias?

Décio riu, notando o tom de ironia na voz do chefe:

-Elas podem ficar para depois. 

-E quem você gostaria que o ajudasse no novo projeto?

Décio olhou-o muito sério, já se levantando para sair:

-Prefiro trabalhar sozinho, se não se importa. 

E Sérgio não se importava. Sabia que Décio era um escritor competentíssimo, e que tinha uma carreira brilhante pela frente, mas que ele não gostava muito de companhia. Sérgio sentiu um pouco de pena de Rafaela, que os olhava através da porta de vidro, ansiosa por ser chamada. Quando Décio abriu a porta, passando por ela sem despedir-se, Sérgio viu o olhar da moça ir parar nas tábuas corridas do chão, e ela suspirou profundamente. Rafaela trocou um olhar tristonho com o chefe, que encolheu os ombros, e voltou para sua sala.

Naquela mesma tarde, Décio ligou para Lana, avisando-a de que estaria ausente da cidade durante algum tempo. Ela estava acostumada às pequenas viagens do filho a trabalho, e não se incomodou:

-Tudo bem, filho. Precisa de alguma coisa?

-Não mãe. 

-E vai ficar quanto tempo fora?

-Algumas semanas, talvez três... ou quatro.

Ele percebeu o desconforto de Lana através de seu silêncio, e soube que ela queria dizer alguma coisa que o perturbaria; resolveu ajuda-la:

-O que foi, mãe?

-Não vai avisar ao seu pai?

Décio remexeu-se na poltrona. Há meses não falava com o pai, e raramente via seu meio-irmão, de quem fugia o mais que podia. Sentia-se estranho quando Brian estava por perto, olhando-o como se ele fosse alguma espécie de herói, pois não correspondia a admiração que o irmão sentia por ele.

-Não... por que deveria? Ele está ocupado com seu outro filho...

-Ah, Décio, isto soa tão imaturo! E Brian é um rapazinho tão simpático, e gosta de você. Ainda continuo achando que vocês deveriam se aproximar, quebrar o gelo... eles também são sua família!

-Depois eu penso nisso, mãe. Preciso desligar. 

-Vai virar a noite trabalhando outra vez?

Ele ergueu as sobrancelhas; mesmo através do telefone, Lana podia ler sua alma.

-É, vou sim... mas prometo que amanhã dormirei o dia todo. Tchau mãe, beijo.

E desligou, antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa.

A noite foi longa e um tanto barulhenta. Décio planejava mudar-se logo daquele lugar, encontrando um apartamento mais silencioso onde pudesse trabalhar com mais concentração. Mauro já tinha lhe oferecido ajuda para comprar um, mas ele recusara. Não queria dar nenhum motivo para que Patrícia o ofendesse novamente. Desde que começara a faculdade, nunca mais falara com ela, e nas poucas vezes em que encontrava o pai e/ou o irmão, dizia o mínimo necessário, escapando sempre que possível. Decidiu que assim que terminasse seu trabalho novo, começaria a procurar outro apartamento. E entregou-se ao trabalho, colocando uma música suave com fone de ouvido para abafar o barulho. 

Uma hora depois, viu o visor do telefone acender: era Rafaela. Pensou em não atender, mas mudou de ideia após o terceiro toque.

-E aí, sumido? Foi embora e nem se despediu! Que tal descer para tomar um drinque comigo? Estou no bar aqui em baixo, com alguns amigos.

-Oi, Rafaela. Estou trabalhando. Não posso, mas mesmo assim, obrigada.

Ele achou melhor não insistir para ele descer, pois sabia que quando Décio estava trabalhando, nada o convencia a parar. Sentiu-se uma tola.

-Tudo bem  então... tem certeza de que não precisa de ajuda? Ou de companhia? Eu estou logo aqui pertinho, e..

-Não, obrigada. Divirta-se. Beijo.

Ele desligou o telefone. Achou-se grosseiro, mas estava cansado das investidas de Rafaela. Tinham dormido juntos algumas vezes, e para ele, era tudo. Nunca fizera-lhe promessas ou a chamara de namorada. Ela aceitou as condições que ele impôs quando as coisas começaram a ficar mais quentes entre eles, ou seja, sem compromissos, e não tinha o direito de cobrar-lhe mais nada. Ela ficava choramingando com os amigos, pedindo-lhes que interferissem por ela junto a ele, e aquilo o irritava. 

Detestava coitadinhas. 

Foi até a cozinha e preparou um café, que bebeu preto, acompanhado de biscoitos de chocolate recheados – achou péssima a combinação, mas era o que tinha disponível em casa para comer. Depois, voltou ao trabalho e só parou ao terminar, por volta das quatro da manhã. Dormiu alguns minutos, e ao amanhecer, revisou todo o trabalho e colocou-o num e-mail que mandou para Sérgio, que logo respondeu, achando tudo ótimo.

Só então Décio tomou uma ducha e foi dormir de verdade.

Um dia depois, partiu de carro para a cidade de Bernardina. 

Adorava viajar sozinho, dirigindo. Costumava colocar uma música para tocar e enquanto dirigia, deixava que os pensamentos surgissem e desaparecessem. Era extremamente relaxante! Tinha biscoitos no porta-luvas e algumas latas de refrigerante em um cooler. A manhã estava linda, e era tudo o que ele precisava.

Sérgio dissera-lhe que Bernardina estaria no GPS, e após uma hora e trinta dirigindo, Décio chegou à entrada da cidade: havia uma placa desbotada: “Seja bem-vindo a Bernardina.” Ele diminuiu a velocidade, e olhou em volta: mato e árvores ao longo da estrada, algumas casas abandonadas (Sérgio não estava brincando) e outras em péssimo estado, e das janelas, alguns moradores observavam-no passar como se ele fosse um evento. Décio parou junto a um bar, saindo do carro e se espreguiçando; quando entrou, todos que lá estavam se calaram por alguns instantes, olhando-o, e retomaram a conversa em tom bem baixo. Décio pensou que aquela cena toda parecia coisa de filme. Enxugou a testa com a mão – estava calor, e passava das duas da tarde – e chegou junto ao balcão, onde um senhor aparentando sessenta e cinco anos aproximou-se para servi-lo:

-Boa tarde, o que vai ser?

-Boa tarde. Gostaria de um sanduíche de queijo quente e uma Coca-Cola, por favor.

-O queijo está em falta no momento, mas o sanduíche de mortadela com tomate é muito bom.

Décio, que detestava mortadela, declinou:

-Não, obrigado... o que mais você tem aí?

O homem apontou para uma pequena vitrine, onde alguns salgados de aparência duvidosa estavam expostos. Décio, que estava com fome, optou por um bolinho de salsicha, que não parecia tão velho, e comeu-o quase sem mastigar. Depois limpou a gordura com um guardanapo de papel, e bebendo a Coca-Cola com prazer, como se ela fosse capaz de limpar o seu sistema. Terminou-a, e pediu outra. O homem apontou para o outro salgado, mas Décio negou com a cabeça, agradecendo. 

-Aqui é quente, não é?

-É, e é sempre assim nesta época do ano. Mas o inverno pode ser bastante frio mesmo... você está de passagem? Viagem de férias?

Décio olhou o relógio, mal respondendo:

-Não... tem algum hotel por aqui?

Naquele momento, os outros homens, que tinham ouvido a conversa em silêncio, soltaram risinhos. O homem atrás do bar, limpando o balcão com um pano encardido, respondeu:

-Está brincando? Aqui não tem hotel. Aqui não tem cinema, shopping center, hospital. Aqui não tem nada, a não ser poeira.

Décio olhou-o, encarando-o por alguns segundos:

-Então eu estou frito. Preciso ficar aqui por algumas semanas. Sabe se tem alguma cidade próxima que...
-Esqueça, filho. As outras são assim também. Mas... tem a Dona Marta, que tem uma casinha vazia perto da estrada... quem sabe, ela aluga.

-E qual o telefone dela?

-Telefone dela? Ela não tem telefone, não senhor. Mas mora logo ali, depois da curva, numa casa rosa.

Décio agradeceu com a cabeça, dirigindo-se ao local indicado pelo homem, enquanto o sol forte fustigava sua pele. Chegando perto da casa, viu que as janelas da frente estavam abertas, e bateu palmas. Logo, uma cabeça branca, de feições agradáveis, apareceu à janela, e ficou olhando para ele, talvez esperando-o dizer o que desejava. Dona Marta aparentava ter mais de setenta anos, e tinha um rosto amigável. Ele pigarreou:

-A senhora é a Dona Marta?

-Sou sim.

-É que... preciso ficar uns dias na cidade. Não tem hotel, e me disseram no bar que a senhora tinha uma casa que podia alugar...

Ela ficou em silêncio, parecendo considerar a proposta do forasteiro. Depois, desapareceu, e segundos depois, abriu a porta da casa, fazendo sinal para que ele entrasse. Décio abriu o pequeno portão de ferro, e em três passos, estava na entrada da casa; quando olhou para dentro, notou a simplicidade e a organização do lugar. Havia paninhos de croché sobre as costas dos sofás, e um tapetinho redondo, também feito à mão, com pedaços de tecido colorido. Ele gostou, sentindo-se à vontade.

-O moço é quem?

Ele estendeu a mão, se apresentando:

-Décio, da cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro. Sou repórter da Revista Vórtice, já ouviu falar?

Ela negou com a cabeça. Fez sinal para que ele se sentasse:

-Quer água?

-Não, obrigada. Eu preciso saber se a senhora vai alugar a casa.

-O moço é muito ansioso, não é? Calma! Vamos nos conhecer primeiro. Sou Marta, e moro aqui há um bocado de tempo. Desde que nasci! (ela deu uma gargalhada). 

-Eu já disse, sou Décio, da revista...

-É, o senhor já disse... muito prazer.

-Muito prazer.

Fez-se um silêncio embaraçoso para ele, pois Marta não parava de fita-lo com seus olhinhos miúdos. 

Finalmente, ela disse:

-Vou alugar, o senhor parece boa gente. Mas... ela está fechada há muito tempo. E que mal lhe pergunte... o que um repórter está fazendo pelas bandas de cá?

Ele teve a impressão que ela já sabia a resposta, e que perguntar era apenas uma maneira de continuar a conversa. Mesmo assim, ele respondeu:

-Bem... estou aqui a trabalho. Vim fazer uma reportagem. Uma entrevista com Endora Damata. 

Ela concordou com a cabeça. Décio notou  a mudança nas feições dela, que se tornaram tensas.

-Perda de tempo, ela não recebe ninguém. Melhor assim. Se eu fosse o senhor, não ia para aquelas bandas... o lugar é assombrado. Ela saiu da cadeia há um mês. Já vieram outros antes de você, mas ela não falou com eles.

-Mesmo assim, eu vou tentar... ela vive sozinha?

-Não... a filha, que vivia lá na Europa com uma tia, veio para tomar conta dela depois que saiu da prisão. É uma moça muito bonita, mas bem quieta. Não fez amizade nenhuma com as moças daqui, quase nunca sai – a não ser quando precisa comprar alguma coisa. E mesmo assim, compra o que precisa e vai logo embora, sem conversar com ninguém. 

Décio logo notou que Dona Marta talvez pudesse saber de coisas que lhe seriam úteis. 

-A senhora disse que mora aqui desde sempre...

-Sim! E também meus pais e meus avós antes deles.

-Deve conhecer todo mundo por aqui.

-Claro que sim. E também sei de muitas histórias das famílias que vivem aqui, ou próximas.

Ela parecia orgulhar-se por estar bem informada. Para Décio, ela não passava de uma idosa que nada mais tinha a fazer a não ser tomar conta da vida alheia, o que poderia ser bastante útil para sua pesquisa. Abriu um sorriso, tentando estabelecer uma aproximação mais amigável de sua parte:

-A senhora sabe alguma coisa sobre... o crime?

Ela arregalou os olhos, e baixou o tom de voz:

-Sei sim... vou coar um café primeiro. Venha comigo.

Ele a seguiu até a cozinha, e observou-a lavar o coador de pano, enchendo-o de pó. Colocou a água para ferver, e então dispôs alguns biscoitos caseiros em um prato. Enquanto a água fervia, ela fez sinal para que ele se sentasse á mesa, coberta por uma toalha plástica de xadrez azul. Décio enxugou o suor da testa com as costas da mão, esperando ansiosamente para ouvir a história. Sacou do bolso um pequeno gravador:

-A senhora se importa se eu gravar a nossa conversa?

Marta olhou o aparelhinho desconfiada.

-E só para que eu possa lembrar-me mais tarde, e estudar os fatos. Por favor.

Ela consentiu com um aceno de cabeça, mas pareceu perder a naturalidade. A chaleira começou a apitar, e ela foi coar o café, que espalhou um cheiro delicioso pela casa. Décio tentou lembrar-se da última vez que tomara um café realmente caseiro e fresco, e não de garrafa térmica. Ela serviu duas canecas de ágata, empurrando o prato de biscoitos na direção dele.

-Bem... Eu me lembro como tudo começou, há cerca de quarenta e cinco anos... Endora era uma moça de cidade vizinha, filha de fazendeiros. Imagine que nós chegamos a frequentar a escola juntas... mas não éramos amigas. 

Décio percebeu um certo ressentimento na voz de Marta. Ela continuou sua história:

-A família dela tinha certa pose, mas estavam quase falidos, quando ela, muito bonita, conquistou a atenção do menino da família Damata. Cícero era o nome dele... os Damata eram uma família antiga aqui, muito ricos. Ninguém sabe calcular a fortuna deles, donos de muitas fazendas de leite, de corte, e plantações de café. Aconteceu durante uma quer messe... ele botou os olhos nela e cismou que se casaria com ela. Ela, por sua vez, apesar de não estar tão apaixonada quanto ele, casou pela família que necessitava de ajuda financeira. A fazenda dos pais levantou logo assim que se casaram, pois os Damata  a arrendaram e investiram muito dinheiro. Mas dizem que a família de Endora confiou demais nos Damata, e acabou perdendo tudo depois de assinar uns documentos sem ler direito. 

Marta tomou um gole de café, os olhos perdidos em alguma fenda do passado.

-Então a família de Endora perdeu a fazenda que tinham ao confiarem cegamente na família Damata?

-Isso mesmo. E Endora ficou furiosa... quis reaver a posse dos pais, exigiu que Cícero devolvesse a eles o que tinha tomado, mas ele se recusou; colocou os dois para morar em uma casinha dentro da própria fazenda, como se fossem empregados dele. O pai de Endora pegou a doença ruim e morreu uns meses depois. Dizem que foi de desgosto. A mãe de Endora foi servir dentro da casa grande, como empregada. 

-Nossa... empregada da própria família da filha?

-Foi assim. Naquela época, Endora engravidou. Não sei o que é verdade a partir daí... dizem que 
Cícero ‘pegou’ ela de gracinha com um dos capatazes da fazenda, e mandou matar o cabra. Não sabia então se o filho que ela esperava era dele ou do outro. Quando o menino nasceu, mandou leva-lo para longe, e até hoje não se sabe o que foi feito dele. Uns dizem que mandou afogar no rio, outros que colocou num orfanato e o menino foi adotado por um casal de americanos. 

-Hum...hum... que história terrível.

-Daí ele passou a surrar a pobre. O que restava de esperança de os dois se entenderem acabou ali. Os sogros ajudavam Cícero, pois eram gente tão ruim quanto ele. A mãe de Endora morreu de uma queda na escada, dentro de casa, mas dizem que a queda não foi acidental... mas quem vai saber? 

Ninguém nunca soube ao certo o que acontecia dentro daquela casa.

Ela pareceu ficar nervosa de repente, torcendo as mãos sobre a mesa. Décio pegou um biscoito, esperando que marta continuasse sua história.

-E então, o que aconteceu?

-É aí que as coisas ficam misteriosas... dizem que Endora fez trato com o Coisa-ruim. Ela engravidou de novo, e dizem que o pai... 

Décio notou, divertido,  o tom de segredo na voz dela, que baixou o tom:

-O pai da menina... era o próprio Coisa-ruim. E então ela teve a menina, Sophie. Escolheu o nome de uma revista estrangeira, dizem...

-E depois?

-Cícero Damata passou a bater mais ainda nela. E ameaçava matar a menina, ou manda-la para longe, como fizera com o outro. Pelo menos, foi isso que ela contou no tribunal. Até que um dia de manhã, a família toda apareceu morta. Envenenada: Cícero e os pais. E mais dois primos  e as esposas, que estavam de passagem, visitando. Sete pessoas! Só sobraram Endora e Sophie. A polícia investigou e encontrou veneno de rato na gaveta de cabeceira dela. Daí o resto todo mundo já sabe: Endora foi condenada à 25 anos de prisão, e a filha foi criada por uma tia de segundo grau, irmã da mãe de Endora, no estrangeiro. Mas dizem que quem matou não foi ela não...

-Deixe-me adivinhar: foi o Coisa-ruim!

Ela concordou com a cabeça, fazendo o sinal da cruz.

Décio olhou pela janela, e viu que o sol forte já estava se pondo. Desligou o gravador, agradecendo a hospitalidade e também a história.

-Bem... obrigada por me contar, dona Marta. Mas agora eu preciso ir... onde fica a casa? E é claro, vou pagar adiantado. Quanto é?

Marta disse o valor, que ele tirou da carteira e entregou a ela. Depois, os dois saíram pela rua, caminhando lado a lado, observados pelas pessoas que os espiavam das janelas das casas, portas de bares e calçadas. Chegaram a uma casa bem pequena, no final de uma rua sem saída, e ela abriu a porta, entregando as chaves a ele entrando na casa e abrindo as janelas para arejá-la.

Décio entrou, e viu que tratava-se de uma casa bem humilde, paredes caiadas, com piso de cimento queimado pintado de amarelo, constando de uma saleta, quarto de dormir com cama e mesa de cabeceira (não havia armário de roupas, apenas um tosco cabide de madeira em um dos cantos, preso à parede), uma cozinha mínima com um fogareiro de duas bocas, pia, filtro de barro, uma mesinha e um banquinho. O banheiro, com piso de cimento, ficava após uma portinha nos fundos da cozinha, e o teto era de telhas, sem forro. Havia um vaso sanitário, uma pia de canto e um chuveiro. Nada de box. Décio agradeceu, e assim que Marta saiu, começou a fazer suas anotações no laptop. As últimas cores da tarde entravam pela janela. 

De repente, ele sentiu-se observado, e erguendo os olhos, deu com os rostos de duas crianças, um menino e uma menina, debruçados em sua janela, calmamente observando tudo o que ele fazia. Os dois riram quando Décio olhou para eles, e saíram correndo. Ele se levantou e fechou a janela.







segunda-feira, 25 de abril de 2016

A RESENHA DO MAL - CAPÍTULO I




Uma chuva fina e insistente mantinha o asfalto negro brilhando lá fora. O vento gelado entrecortava o barulho que vinha do bar, que ficava no andar térreo do prédio. Décio tomou mais um gole de sua cerveja, e virando-se de costas para a janela, encarou a sala quase escura – a não ser pela luz fraca que vinha de uma luminária e da tela do computador. 

Trabalhava para a Revista Vórtice, cuja sede ficava no Rio de Janeiro, e escrevia resenhas sobre livros. Sua coluna era uma das mais lidas, e podia dar-se ao luxo de trabalhar em casa, comparecendo ao escritório uma ou duas vezes durante a semana – ou mais, caso houvesse algum trabalho extra. Também escrevia crônicas para um jornal local uma vez por semana, e mantinha um blog sobre cinema e literatura. Tinha também um projeto engavetado, o seu maior sonho – um livro. Já fazia tempo que não se dedicava a ele, e já o estava escrevendo há mais de três anos. Quando Lana, sua mãe, telefonava para ele perguntando como ia o projeto, ele mentia: “Em andamento. Hoje terminei mais um capítulo.” Ela o incentivava e confiava muito no trabalho do filho, a quem formara jornalista com certa dificuldade, trabalhando como secretária em um escritório de advocacia, já que a pensão que o marido pagava mal cobria as despesas da casa. Décio mentia, pois sabia que, se ela soubesse que o projeto estava abandonado, ficaria decepcionada, e a última coisa que ele desejava fazer, era entristecer sua mãe. 

Mauro, seu pai, deixara Lana quando Décio tinha apenas oito anos de idade, casando-se com outra mulher quase vinte anos mais jovem que ele. Apesar de Lana jamais falar mal do pai ou de Patrícia, sua jovem esposa, Décio desenvolveu por ela uma antipatia que logo percebeu ser mútua. Patrícia mal falava com ele nos dias em que ele visitava o pai. Um ano após o divórcio, quando ela engravidou, Décio ressentiu-se ainda mais, mesmo que Lana tentasse fazer o filho entender que um irmãozinho, mesmo que um meio-irmãozinho, poderia ser algo divertido. 

Quando o bebê nasceu, Décio achou que Mauro passou a dedicar mais tempo ao novo filho do que a ele. Durante as visitas nos finais de semana, Décio ressentia-se ao notar a atenção e o carinho que o pai dedicava ao seu meio-irmão, ao invés de jogar vídeo game com ele ou leva-lo para dar uma volta de bicicleta no Parque de Itaipava, como sempre faziam. Patrícia não tentava facilitar as coisas, pedindo ao marido que olhasse o bebê sempre que este tentava dedicar ao filho mais velho um pouco mais de atenção. Ela era uma jovem de vinte e cinco anos ciumenta, possessiva e, segundo as observações de Décio, muito falsa. Tratava-o bem na presença do pai, mas o ignorava totalmente, chegando ao ponto de não responder se ele falasse com ela, quando o pai se ausentava por alguns instantes. O que ela mais desejava, é que a primeira família de Mauro não existisse. 

Apaixonara-se por ele desde a primeira vez que o vira, tomando uns drinks em um bar após o expediente, e fez de tudo para aproximar-se dele, mesmo quando suas amigas chamaram sua atenção para  a grossa aliança dourada que ele usava na mão esquerda. Patrícia não teve escrúpulos: para ela, a felicidade não era coisa que dava uma segunda chance. Gostara da aparência física de Mauro; adorava homens mais velhos, especialmente quando tinham uma mecha de cabelos começando a embranquecer nas têmporas. Além disso, ele era alto e bem constituído, tinha olhos verdes profundos e queixo largo, com lábios finos que se abriam para ela em um sorriso sedutor. Naquela mesma noite, ficaram juntos. Ela fez de tudo para deixa-lo completamente apaixonado, e passaram a se encontrar várias noites durante a semana. Mauro dizia para Lana que estavam trabalhando em um novo projeto, e que precisaria ficar no escritório até mais tarde algumas noites. Ele pensava que Patrícia seria apenas um caso passageiro, mas quando percebeu, estava completamente envolvido por ela. 
Sua boa forma, os longos cabelos ruivos, a conversa animada, o riso fácil que fazia com que ela virasse a cabeça para trás, expondo ainda mais o pescoço fino e delicado e os dentes muito brancos, as roupas modernas e a voz quase rouca... tudo o fascinava. Além disso, Patrícia era o retrato da mulher moderna e independente. Tinha seu próprio escritório de corretagem, apesar da pouca idade – presente do falecido pai – e o administrava com muita competência. 

Quando Mauro finalmente criou coragem e pediu o divórcio a Lana, surpreendeu-se com a atitude dela: Lana concordou imediatamente. Não fez escândalos ou perguntas. Não chorou, e não se  lamentou. Apenas concordou com a cabeça, respirando fundo, e disse que precisaria de um advogado. Até mesmo perguntou-lhe se ele não conhecia um que pudesse ajuda-la. Não quis saber se havia outra mulher: apenas deixou-o ir. 

Mauro ficou desconcertado com a reação da esposa. Então ela não o amava mais! Achou que deveria estar feliz por ter sido tudo tão fácil, mas por dentro, estava despedaçado. Descobriu que ainda a amava. Começou a lembrar-se de momentos que tiveram juntos, e naquela noite, enquanto ela ressonava ao seu lado na cama, começou a pensar no que poderia ter dado errado, ou no porquê de terem deixado que as coisas chegassem àquele ponto. Após o nascimento de Décio, eles tinham simplesmente dedicado todo o tempo livre ao filho. Deixaram de viajar ou sair à noite, como faziam sempre. Lana não gostava de deixar o filho nas mãos de estranhos, e parou de trabalhar para dedicar-se a ele. Em pouco tempo, o sexo tornou-se cada vez mais esporádico. 

Ele mesmo, passou a trabalhar durante mais horas no escritório de engenharia a fim de poder dar ao filho o que houvesse de melhor: queria-o nas melhores escolas, usando as melhores roupas e envolvido em várias atividades após as aulas, como judô, natação, futebol e cursos de inglês e espanhol. Tudo aquilo custava dinheiro, e Mauro estava disposto a pagar. 

Na manhã seguinte àquela noite quase sem sono, Mauro abriu os olhos e olhou para o lado: Lana já não estava junto dele. Ele se levantou, e ao ir até o closet para pegar uma roupa para ir trabalhar, encontrou sua parte no armário vazia e três grandes malas prontas no chão. Lana não estava em casa, e nem Décio. Ele ainda a esperou por algumas horas, sentado na poltrona da sala, olhando o vazio. Mas ela não voltou. Ele pegou as malas, colocou no carro e saiu. Passou a noite no apartamento de Patrícia. Logo depois, mais por desespero do que por amor, casou-se com ela, e eles compraram um apartamento maior. A paixão ainda estava acesa, mas Mauro compreendeu que nunca poderia amá-la. Mesmo assim, fazia tudo o que ela queria, e deixava-a sempre feliz. Era difícil para ele admitir um erro, e passou a desfilar com orgulhosamente sua nova esposa jovem, bela e extremamente vaidosa e orgulhosa pelos corredores por onde ele antes desfilava com sua esposa mais velha e não tão bonita. 

Logo ele percebeu as falhas no caráter da nova esposa. Notou que ela era competitiva, gostava de manipular as pessoas e era extremamente ciumenta. Durante ao processo de divórcio, quando Mauro comunicou-lhe que deixaria a casa e o carro para a ex-esposa, Patrícia fez um escândalo, e tiveram sua primeira briga. Ela só se acalmou quando ele prometeu que faria de tudo para que o valor da pensão fosse o menor possível. E ele sentiu-se péssimo quando soube, através de seu advogado, que Lana não contestara a decisão dele; pelo contrário, mandou dizer-lhe que já tinha um emprego, e que por isso, conseguiriam sobreviver com a pensão oferecida por ele.

Mauro dava presentes para o filho às escondidas, para que Patrícia não ficasse sabendo. Continuava a pagar-lhe as aulas e as mensalidades da escola sem que Patrícia soubesse, mas quando ele tornou-se um adolescente e começou a planejar fazer faculdade, Patrícia, enfurecida, sugeriu que Décio estudasse em uma faculdade pública ou arranjasse um emprego para custear os próprios estudos, o que fez com que Décio tivesse uma briga com ela e rompesse com o pai, que concordara com a esposa. 

Depois que Décio saiu e a tensão baixou, Patrícia, mais doce, disse a Mauro que precisavam pensar no futuro do filho deles – naquela época, o menino tinha apenas oito anos. Mauro, tentando segurar as pontas arrebentadas daquela relação, mais uma vez concordou com ela. Olhou para o rosto de Brian – seu pequeno filho – e achou que seria melhor concentrar-se de verdade em sua nova família, embora ainda pensasse em Lana e Décio com frequência. Porém, para os amigos, mostrava-se feliz e satisfeito com Patrícia. Eram o retrato do casal feliz e ajustado aos olhos dos outros. 

Mauro mandava ao filho cartões nas datas importantes, como Natal, Páscoa e aniversários, acompanhados de um gordo cheque, que Décio fazia questão de picar em pedacinhos e mandar de volta para ele. Mauro queria que, um dia, o filho aceitasse o dinheiro e o perdoasse, mas ao mesmo tempo, sabia que se aquilo acontecesse, sua vida com Patrícia voltaria a ser um inferno. Vivia, então, uma ilusão de felicidade e contentamento, que enganava a todos.

Quanto a Lana, quando o marido pediu-lhe o divórcio, há muito estava desconfiada de que Mauro a traía. Não sabia como agir, e ao pedir conselhos à mãe, já idosa, esta lhe disse que continuasse a viver sua vida, e não o questionasse, pois provavelmente, era apenas um caso passageiro, e ela não deveria destruir seu casamento por causa daquela bobagem. “Homens são assim mesmo,” ela ouvira a voz metálica da mãe ao telefone. E quando ele lhe pediu o divórcio, tudo o que Lana pensou em fazer, foi preservar a sua dignidade. Foi firme e forte, não deixando que ele percebesse o quanto estava destruída por dentro. Descobriu-se não querendo saber dos detalhes, pois eles a fariam chorar e a deixariam se sentindo ainda pior. Apenas abriu as portas para ele sair, e tratou de tentar esquecê-lo, cuidando do filho e trabalhando muito. Aos trinta e sete anos, ainda era uma bela mulher, e teve alguns namorados, mas Lana não conseguiu amar nenhum deles. 

Quando via o filho chegar em casa irritado após as visitas ao pai, ela tentava conversar com ele, acalmá-lo e pedir que tivesse mais paciência com o pai, e com sua mulher, que ainda era muito jovem. Décio ficava ainda mais furioso com a reação compassiva de Lana em relação a Patrícia, e entrava no quarto, batendo a porta atrás de si. Toda vez que ele mencionara o nome da mãe perto do pai e de Patrícia, esta se referira à Lana com ar de desprezo e zombaria, e nunca com a generosidade com a qual a mãe referia-se a Patrícia. 

De volta ao terceiro andar do apartamento de Décio, situado à Rua Dr. Nelson de Sá Earp sobre um barulhento bar, o encontramos agora um jornalista formado há cinco anos, e com vinte e oito anos de idade. Trabalha duro, mas também sabe se divertir: está sempre acompanhado de lindas meninas – herdou a beleza e charme do pai, e sua altura – mas não namora a sério. Tem muitos amigos, mas nenhum deles é íntimo: apenas rapazes e moças com quem ele bebe, viaja e dança, sem partilhar sonhos ou segredos. Colegas de trabalho com quem sai uma ou duas vezes por semana. Tem uma relação excelente com a mãe, Lana, a quem visita com frequência (ela continua morando na mesma casa, e hoje a encontramos com cinquenta e seis anos de idade, ainda triste pelo recente falecimento de sua mãe, aos quase noventa anos). Porém, Décio ainda não voltou a falar com o pai, que continua casado com Patrícia. Seu irmão Brian, a quem também nunca vê, está agora com dezenove anos. A bela Patrícia continua ainda mais bela, apesar de seus quarenta e quatro anos, e Mauro, aos sessenta e três anos, é uma figura patética e infeliz, mesmo com todos os tratamentos de pele, operações plásticas e implantes de cabelo. Sabe que a esposa o trai com homens mais jovens, mas prefere fingir não saber. 

Décio, ainda olhando para a sala escura onde a luz da tela do computador no qual estava trabalhando ainda está acesa, espreguiça-se, bocejando. Duas da manhã: precisa estar na redação da revista antes das onze no dia seguinte, e coçando a cabeça, larga a cerveja sobre a mesa, fecha o computador e vai para a cama. Durante algum tempo, ele vira-se de um lado a outro, tentando ignorar as risadas e músicas barulhentas que vem da calçada, e então cai no sono. 

(CONTINUA...)


terça-feira, 5 de abril de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XXII - FINAL








O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XXII - FINAL



Regiane adormecera segurando o livro, e quando as freiras chegaram ao porão, encontraram-no às escuras. Irmã Malvina hesitou à porta do quarto que fora do filho, as lembranças dolorosas chegando aos borbotões. Mas ela reuniu forças, e abriu a porta, acendendo a luz apenas para encontrar a jovem deitada na cama, abraçada a um livro. Regiane remexeu-se na cama, despertando de seus sonhos mais doces, e deparou com o rosto duro de Irmã Malvina. Pôs-se de pé em um salto. Irmã Dulce aguardava, do lado de fora do quarto, na entrada. 

Irmã Malvina dirigiu-lhe um olhar de desprezo, dizendo:

-Soube que anda inventando histórias nesta escola. Eu sempre soube que você era uma mentirosa. 
Regiane pôs-se na defensiva, crispando as mãos e tentando não soar ríspida demais:

-Não sei do que a senhora está falando, Irmã.

-Agora que está perto de retirar-se e não precisa mais de nós, começa a inventar histórias sobre estar se encontrando com um homem neste porão, há anos? O que quer com tudo isso? Manchar a reputação de minha escola?

Regiane franziu a testa:

-Não quero nada disso, e nem seria preciso, já que a reputação deste lugar foi construída sobre falsos moralismos e segredos abafados, limitados a este porão.

Irmã Malvina indignou-se com o atrevimento da aluna, e erguendo a voz, respondeu-lhe:

-Eu não vou aceitar ser desrespeitada desta forma, mocinha! Falarei com seu pai!

-E o que dirá a ele, Irmã? Que a filha dele andou se encontrando com um homem entre as paredes desta escola de reputação tão ilibada? O que acha que acontecerá depois?

-Não se atreva a me desafiar!

Irmã Malvina foi até ela, erguendo a mão para bater-lhe, mas Irmã Dulce segurou-lhe o braço antes que ela o baixasse sobre a moça encolhida:

-Chega, por favor, Madre... vamos leva-la até o lugar onde Ricardo – o verdadeiro Ricardo – se encontra agora.

As três deixaram o quarto em silêncio, Irmã Malvina caminhando à frente e segurando uma lanterna que pegara sobre a pilha de tijolos no porão, seguida por Irmã Dulce e uma Regiane confusa e magoada. Elas cruzaram o pátio da escola, já envolto pela semiescuridão da noite que chegava, e encaminharam-se para o pomar. Irmã Malvina abriu o portão de ferro, que rangeu tristemente. Uma névoa esbranquiçada já cobria a vegetação, dando ao lugar um aspecto abandonado e triste. As árvores estavam nuas, os galhos retorcidos desenhados contra o céu avermelhado, pois era outono. Irmã Malvina chegou junto ao muro que separava o terreno da escola do terreno onde ficava um prédio de apartamentos, e parou. Jogou a luz da lanterna sobre uma lápide meio-escondida entre a vegetação. Suspirou profundamente, esquecendo-se de sua raiva. Murmurou:

-Aí está Ricardo. 

E com muita dificuldade, ela pronunciou a frase mais dolorida de sua vida pela primeira vez em público:

-Meu filho.

As três permaneceram em silêncio por alguns instantes. Regiane leu o nome e as datas na lápide, e viu que o rapaz que descansava ali, sob aquela lápide, tinha nascido, vivido e morrido há quase cinquenta anos. Sentiu-se enjoada. Afastou-se, e vomitou junto à raiz de um pessegueiro.
De repente, a constatação de que havia sido enganada. A pessoa com quem ela estava se encontrando não era quem dizia ser. Mesmo assim, ela percebeu, surpresa, que o que sentia por ele não diminuíra; pelo contrário, permanecia intocado, puro, o sentimento mais lindo que ela tinha por alguém a quem aprendera a amar durante toda a sua vida. Aquele homem que a enganara e mentira para ela, ajudara-a a ser uma mulher de verdade; ele a compreendera, secara suas lágrimas, ouvira suas histórias, rira e chorara junto com ela, ajudara-a na escola e em seus relacionamentos, através de seus conselhos amorosos e sábios, e acima de tudo, ele a amara.

Ele a tornara uma mulher, e colocara em seu coração todos os sonhos que ela jamais atrevera-se a sonhar. Ele fizera dela algo mais que apenas uma menina perdida, uma órfã que ninguém queria por perto. Ele a ajudara a desenvolver sua autoconfiança e a gostar de si mesma, aprendendo a impor-se, não aceitando o que as pessoas diziam a ela com a intenção de feri-la ou “coloca-la em seu devido lugar.” Ele a ensinara que seu lugar era aonde ela queria ficar, e que sua história estava muito além daquilo que os outros contavam a ela, pois ela mesma poderia escrevê-la, criando para si um belo futuro. Não era obrigada a recolher-se e ser quem a sociedade dizia que ela teria que ser, não importando quem fora a sua mãe ou o que ela fizera de sua vida.

Regiane compreendeu que o amor que ela sentia por aquela criatura, fosse ele quem fosse, não poderia morrer jamais. E que era ao lado dele que ela queria passar o resto de sua vida, mesmo que ele fosse um bandido, um ladrão ou um mentiroso para as outras pessoas. 

De repente, ela lembrou-se de algo importante: havia uma fotografia de Ricardo – o seu Ricardo – dentro do livro que encontrara, e que deixara sobre a cama, no porão. E aquela fotografia era tudo o que lhe restava dele naquele momento. Então, Regiane correu de volta para o porão. As duas mulheres a seguiram, e apesar de ter mais de setenta anos, Irmã Malvina nem sequer sentia-se ofegante, caminhando a passos largos, querendo ver o que a moça “aprontaria” daquela vez.
Encontraram-na sentada na cama, a fotografia diante dos olhos banhados em lágrimas. Irmã Malvina arrancou-lhe a fotografia das mãos:

-Onde a encontrou?

Regiane recuperou-se do susto, e respondeu com voz calma:

-Estava dentro deste livro. Este, é o meu Ricardo!

Irmã Malvina apanhou o livro, e leu o título. 
Aquele era o livro com o qual encontrara o corpo do filho, quando ela despertou naquela horrível manhã, após dormir sentada ao lado da cama dele. Ricardo estivera lendo aquele livro antes de morrer, mas jamais o terminara. Ela olhou para Regiane, e depois, para Irmã Dulce. Em silêncio, as duas freiras deixaram o porão. Irmã Malvina entregou o livro e a foto a Regiane antes de fechar a porta. 

.    .    .    .    .    .    .

Ele não voltava. 

Regiane esperou por ele durante muitos dias e muitas noites, muitas das quais passou em claro. Cada manhã que surgia trazia uma nova dor, fazendo com que mais um fio de esperança se esgarçasse. Ela segurava-se àquela corda fina de esperança que lhe restava, mas quando o dia chegava e ela percebia que, mais uma vez, ela acordara sozinha na cama, naquele porão, ela sentia que mais um fio arrebentara-se. Ela sofria além do que pudesse ser descrito.

O pai tentara leva-la para casa. As tias também tinham vindo, mas ninguém conseguia tentar tirá-la daquele porão sem fazer com que ela se agarrasse aos móveis, gritando desesperadamente a cada tentativa. Os médicos tentaram leva-la à força, mas o pai compadeceu-se dela, e pediu-lhes que a deixassem em paz, pois ele se responsabilizaria por ela e o que acontecesse a ela. Irmã Malvina não deixava que nada lhe faltasse, e Irmã Dulce era uma das poucas pessoas a cuja presença ela não reagia com desespero, concordando em tomar algumas colheradas de sopa e goles de água ou suco todos os dias de suas mãos. 

Regiane ficava por ali, vestida com uma longa camisola branca, os cabelos soltos, os pés descalços, abraçada a um livro e a uma fotografia. Os dias transformaram-se em semanas, que transformaram-se em meses. 

O pai vinha sempre, acompanhado de Petra, que massageava-lhe as pernas e os pés frios com óleos aquecidos, limpando seu corpo com panos umedecidos em água morna. Ela estava sendo como a mãe que Regiane sempre desejara ter, e ela nem sequer notava que a mulher estava ali. Os olhos dela estavam sempre pousados em algum lugar que não era ali, e Régis temia que a filha estivesse enlouquecendo. 

Mas o tempo passa sobre tudo, suavizando as arestas. 

Seis meses após aquele estado de torpor, Regiane começou a voltar. Primeiro, aos poucos; começou a perguntar sobre as priminhas. Prestou atenção ao canto de um passarinho lá fora. Pediu que abrissem as cortinas da janelinha do porão para que entrasse um pouco de luz. Concordou em sentar-se e tomar, sozinha, um prato de sopa. Ergueu-se da cama e conseguiu dar alguns passos pelo quarto. Recebeu Dália e Otávio. Dália estava grávida, e ela acariciou sua barriga. Perguntou à Tia Fiorela pelos gatos da casa, e se o chalé ainda existia. 

Tia Fiorela, em uma atitude totalmente inesperada para Regiane (mas sobre a qual já havia conversado com João, Rosa e Régis) dissera-lhe que o chalé não só existia, como estava esperando por ela, totalmente reformado. Ela havia mandado reconstruir o jardim, podar as árvores do pomar – que agora já começavam a dar flores, e que dentro em breve, estariam cobertas de frutos – tinha pedido a Régis que pintasse de branco os cômodos, e ela e Rosa tinham decorado tudo com roupas de cama novas e cortinas, conseguido alguns móveis usados, mas em bom estado. Além daquilo, ainda mandara melhorar as escadas que davam acesso à colina, criando trechos com rampas, que eram mais confortáveis para a subida, mandando construir corrimões. Disse-lhe que poderia ficar lá quanto tempo quisesse, e que o deixaria para ela em testamento.

Aquela notícia acelerou a recuperação de Regiane. Em questão de semanas, ela estava novamente de pé, pronta para recomeçar sua vida. 

Deixar o porão aonde fora tão feliz após passar tanto tempo ali, não foi fácil para ela. Irmã Malvina dissera que ela poderia escolher os livros que quisesse levar, e ela escolheu uma pequena pilha na qual estava incluído “Sonhos de Uma Noite de Verão,” que ela passaria semanas e mais semanas lendo ao cair da tarde, sentada em um banquinho de madeira junto ao pomar do chalé. 

Ninguém mais tocara naquele assunto na escola, e as alunas e as demais freiras continuaram a nem sequer imaginar o que se escondia no passado de Irmã Dulce e Irmã Malvina. Apenas elas duas sabiam o que acontecera, e a história vinha à tona quando elas trocavam olhares ao passarem uma pela outra nos corredores da escola. Irmã Malvina não se importou em mandar averiguar quem fora o rapaz que vivera tantos anos no porão da escola, fazendo-se passar por seu filho morto. Ela preferia acreditar que o próprio Ricardo voltara para terminar sua missão nessa terra, e quando pensava nele, era como se ele estivesse em algum lugar da terra naquele momento, vivendo normalmente. Algumas coisas eram simplesmente misteriosas, e deveriam permanecer assim; esta era a magia da vida. 
Irmã Dulce ainda pôde visitar seu segundo neto, e acabou deixando o hábito para mudar-se para a casa do filho e da nora, onde permaneceu o resto de sua vida. Viu os netos crescerem, casarem-se e terem filhos. Foi a mãe, a avó e a bisavó que sempre desejara ser. 

Régis e Petra viveram juntos o resto de suas vidas, e foram felizes. Régis serviu Madame Fonseca de todas as formas possíveis, até sua morte, aos setenta anos de idade. Ela deixou-lhe a mansão de Niterói em testamento, e ele a vendeu. Com o dinheiro, viveu uma velhice despreocupada e confortável junto à sua amada Petra. 

Rosa transformou-se na tia encantada que todas as crianças sonham. Era ela quem confeccionava os vestidos de festas, cozia os bolos e doces, contava as mais lindas histórias, colocava as crianças para dormir e tomava conta de todas, quando elas se reuniam para passar as noites no casarão no final de semana. Foi o braço direito de Fiorela, ajudando-a a cuidar dos filhos e administrar a casa. Quando soube que seu ex-noivo enviuvou, suspirou profundamente quando ele a procurou, mas despediu-se dele e tratou de esquecê-lo; alguns amores existem para serem vividos na hora certa, e depois, é tarde demais para eles. Principalmente quando o caminho que os separa é feito de mágoas e preconceitos. 
Fiorela e João, assim como Rosa, viveram vidas muito longas, chegando a passarem dos cem anos de idade. Já Régis faleceria aos 80 anos, de um ataque cardíaco. 

Irmã Malvina morreu aos noventa e dois anos de idade. Regiane compareceu ao seu enterro, levando-lhe flores que colheu em seu jardim na colina, e aquela foi a primeira vez que foi vista em público desde que voltara da escola, e também a última. Ela não compareceu a outros velórios, batizados, aniversários ou casamentos da família. 

Regiane tornou-se uma lenda; apesar de todos os esforços para que a história que ela vivera permanecesse como um segredo de família, de alguma maneira, as crianças de Fiorela acabaram contando-a na escola, entre os amigos, acrescentando detalhes que deram a ela um tom mais mágico, ao gosto das crianças.

Regiane passou a ser conhecida, muitos anos depois, como A Dama de Branco – a mulher que se apaixonara por um fantasma, e que o procurava todas as noites usando sua camisola branca. O fato, é que, como Regiane jamais saísse de casa, ela mesma confeccionou vários vestidos largos e confortáveis, simples e brancos, sem quaisquer adornos, e passou a usar somente eles. 

Quando seu pai e suas tias faleceram, Regiane já era idosa, e as primas passaram a cuidar dela. Levavam-lhe mantimentos e conversavam com ela, nas raras vezes em que ela se mostrava disposta. Regiane ainda tinha os livros que trouxera da escola, e a fotografia de seu grande amor. Todas as tardes, quando não chovia, ela se sentava no banco de madeira que ficava no pomar, e fechava os olhos. Ela então prestava atenção, e o vento conversava com ela. Sentia as mãos macias e doces de sua mãe em seus cabelos, e os lábios frios e amorosos de Ricardo sobre os seus. 
E ela sempre sabia quando alguém estava para chegar, ou para morrer.




FIM








segunda-feira, 4 de abril de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XXI











O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XXI






Eu fui uma linda jovem, cheia de sonhos, crente na bondade das pessoas. Pertenci a uma rica família, e tive duas irmãs que hoje estão bem casadas, e cujos maridos tem posições de muita importância na sociedade petropolitana. Elas nunca me procuraram – não sei se por não saberem onde me encontro... mas de qualquer forma, não o fizeram enquanto sabiam onde eu estava. Não conseguiriam conviver com o escândalo de uma irmã solteira e grávida. Meus pais não desejavam manchar a honra da família, e quando souberam da verdade, fui expulsa de casa, exatamente como aconteceu à sua mãe. 

Enamorei-me de um homem sem escrúpulos. Tão bonito e charmoso, que eu, inexperiente, não enxerguei a sua maldade, e embora meus pais tivessem me proibido de vê-lo, continuei a vê-lo escondido. Levava-lhe dinheiro, que ele me pedia alegando não ter como pagar o aluguel. Roubava das economias que minha mãe mantinha em uma caixa de madeira, no armário, até que ela descobriu que o dinheiro estava desaparecendo, e chamou a mim e às minhas irmãs para pedir satisfações. Foi aí que Cecília, minha irmã mais velha, a quem eu havia confiado meu segredo, contou tudo à nossa mãe, traindo minha confiança. Naquela época, eu não percebi que ela o fazia para o meu próprio bem, e deixei de falar com ela depois daquilo. Ela revelou que eu ainda me encontrava com o tal homem – chamava-se Fernando – e que provavelmente, eu estava levando-lhe o dinheiro, e após uma surra, confessei tudo. Meus pais exigiram que eu parasse de vê-lo, e eu finalmente, os obedeci. Mas o mal já estava feito, eu estava grávida e não sabia ainda. Descobri alguns meses depois, quando deixei de menstruar e a barriga começou a crescer. Eu era bem magrinha, e consegui esconder até o último momento.

Minhas duas irmãs mais velhas, Cecília e Judith, estavam de casamento marcado com dois irmãos, que pertenciam à uma família dos mais importantes negociantes de Petrópolis. Eu não podia propagar um escândalo que pudesse prejudica-las! 

Mas alguns dias antes do parto, mamãe descobriu tudo, e desesperou-se. Ela tinha ido até meu quarto enquanto eu dormia, já desconfiada, e ergueu os lençóis. Despertei com ela boquiaberta, olhando para a minha barriga.  Chorou muito. Papai acordou, atraído pelo choro escandaloso de mamãe. Logo, estavam todos em meu quarto. Minhas irmãs andavam de um lado ao outro, pensando no que representaria para elas aquele escândalo. Nenhuma delas preocupou-se comigo, ou com meu bebê. 

Na manhã seguinte, meu pai levou-me a uma casa que recebia mulheres na mesma situação que eu, e que após o parto, doavam suas crianças para adoção. Disseram a todos que eu estava viajando pela Europa a fim de comprar vestidos para o casamento de minhas irmãs... deixaram-me lá, e a administradora incumbiu-se de encontrar pais para meu filho. Mas eu não queria doá-lo! Ele era o meu filho, o meu bebê. Jamais pensaria em ficar longe dele. Então eu fugi durante a noite, pulei a janela e comecei a caminhar sem direção. Cheguei até as portas desta escola de manhã, e fiquei ali, observando o movimento. Olhava as meninas brincando, e nem percebia que alguém estava me observando também, e que adivinhava a minha história. A manhã avançava, e eu não conseguia arredar pé dali. Estava faminta e cansada. 

Foi quando os portões se abriram, e a Madre Superiora me acolheu, levando-me para dentro. Contei a ela a minha história, e apesar de aparentar ser uma mulher seca e dura, ela teve piedade de mim naquele momento. Alimentou-me, banhou-me e ofereceu-me esperanças. Escondeu-me no porão da escola, aonde duas semanas depois, dei à luz ao meu filho. Ela ajudou-me no parto. Ela conseguiu roupinhas para o meu bebê, pois eu não tinha nada. Eram roupinhas bonitas e antigas, mas serviram muito bem. Mas ela me advertiu que eu deveria dar a criança para adoção, pois seria melhor para todos. Neguei, pedi-lhe que, pelo amor de Deus, tivesse piedade de nós. E ela mais uma vez, me ajudou, mas pediu-me que prometesse que ninguém saberia da existência do menino, e que eu deveria me ordenar freira e cuidar dele às escondidas. Foi o que eu fiz. Meu filho Ricardo cresceu no porão desta escola, com muitas dificuldades, mas foi educado, muito bem educado. Consegui para ele os melhores livros, e ministrei-lhe aulas (durante a minha estadia aqui como noviça, formei-me professora). Ele só saía à noite, a fim de tomar ar puro, e durante os finais de semana, quando a maioria das meninas ia para casa. Tive uma amiga que o recebia em sua casa em alguns finais de semana, dizendo à sua família que ele era um órfão. Meu filho conseguiu crescer, embora com alguns problemas respiratórios... sofreu de asma na infância, mas felizmente, descobriu um médico que praticamente o curou.

Regiane parecia aliviada: agora que a história de Ricardo havia sido contada, o mistério desaparecera, e ele tomara diante dos olhos dela uma forma mais humana, mais concreta. Não parecia mais uma imagem que desapareceria a qualquer momento. Ela sorriu:

-Eu o conheço, Irmã. Lembra-se daquele dia em que as meninas me trancaram no porão? Foi quando o conheci.

Irmã Dulce pareceu confusa por algum tempo:

-Como? Quero dizer, ele está longe, agora, não vem a Petrópolis há vários anos...

O sorriso no rosto de Regiane desapareceu. Como poderia ser? Então a freira não sabia que seu filho ainda morava naquele porão?

-Mas... eu o vi, estive com ele, tenho estado com ele desde que vim para esta escola, Irmã! Ele sempre me ajudou com minhas lições de casa, sempre me aconselhou, ele foi... ele é o meu maior amigo, a pessoa que eu mais amo nesse mundo! 

Irmã Dulce negou com  a cabeça:

-O que  você está dizendo é impossível, Regiane. Meu filho foi estudar em Florianópolis. Meus pais finalmente aceitaram ajuda-lo, e pagaram por seus estudos e por um apartamento onde ele hoje mora com sua esposa e filho. 

O mundo começou a girar em volta de Regiane:

-Como.. como ele é? Quantos anos ele tem, Irmã?

-Bem, meu filho Ricardo tem hoje trinta e dois anos de idade... é moreno, tem cabelos negros, olhos pretos...

Imediatamente, Regiane percebeu que não falavam da mesma pessoa. E quem seria aquele rapaz com quem ela crescera e a quem aprendera a amar, e que vivia no porão onde se encontravam há anos? A mesma pergunta ocorreu à freira:

-Regiane.. este rapaz que você vê no porão... pode descrevê-lo para mim?

A menina estava pálida, o rosto lívido, o olhar confuso. Irmã Dulce segurou suas mãos e notou o quanto estavam frias. Regiane engoliu em seco, e começou a descrever Ricardo:

-O Ricardo que eu conheço tem vinte e seis anos, mas aparenta ser um adolescente, pois é franzino, tem a pele muito clara, olhos azuis, cabelos loiros... é uma pessoa doce... adora ler... e adora contar histórias... é discreto e às vezes eu penso que ele tem pavor de sair daquele porão. Ele me diz sempre que, se algum dia alguém o descobrir ali, ele será expulso, terá que partir para sempre...

Regiane notou que a freira estava muito pálida, e que suas mãos também tinham se tornado muito frias. As duas se entreolhavam, e Regiane não compreendia mais nada, e Irmã Dulce parecia compreender menos ainda. O silêncio entre elas foi cortado por batidas à porta: eram as outras meninas que desejavam entrar no dormitório. 

Irmã Dulce, despertando de seu transe, levantou-se, abrindo a porta, e imediatamente o quarto foi sendo preenchido pelas conversas e risadas das alunas. Regiane permaneceu sentada na cama, alheia ao movimento em volta dela. A freira voltou, e pegando-a pela mão, levou-a para fora. A noite começava a manifestar-se, e a primeira estrela despontara no céu. Regiane a viu, enquanto a freira a puxava pela mãe, cruzando a varanda da escola, conduzindo-a até o porão. Regiane foi tomada de pânico, pois não queria que Ricardo fosse surpreendido por elas daquela maneira. Ao mesmo tempo, ela não tinha forças para impedir Irmã Dulce. 

Elas chegaram em frente ao porão e a freira perguntou-lhe, estancando o passo:

-Você me disse que o rapaz que mora aqui chama-se Ricardo?

Regiane concordou com a cabeça.

-Bem, houve um outro Ricardo que morou aqui há muito tempo, com a mesma descrição que você me deu. Eu não o conheci, porém... mas dei ao meu filho o seu nome, em sua homenagem.

Regiane estava tonta, e seu coração pulava de medo. Sua pele arrepiou-se;

-Por que, irmã? Por que batizou seu filho com o nome dele? E como poderia tê-lo feito, se o meu Ricardo – digo, o Ricardo que eu conheço – é tão mais jovem que seu filho?

A freira começou a pensar no absurdo daquela história. Pediu a Regiane que esperasse por ela no porão, e voltou até o prédio da escola. Regiane entrou, mas Ricardo não estava mais por ali. Ela concluiu que se tratava de mais um de seus sumiços misteriosos, mas apesar de sentir-se tão confusa e apreensiva, ficou feliz que aquela história estivesse chegando ao final. Logo, ela deixaria a escola, e queria ter certeza de que poderia continuar a ver seu namorado... pela primeira vez, conseguira pensar em Ricardo como seu namorado, e aquele pensamento aqueceu-a por dentro, deixando-a bem mais tranquila. Deitou-se na cama, pegando um dos livros de Ricardo. Olhou a capa, e constatou que ela não se lembrava daquele. Quando o abriu, uma fotografia caiu de dentro dele sobre a colcha. Ela a pegou, olhando-a e reconhecendo nela o amor de sua vida. Levou-a junto ao coração, fechando os olhos. Ela nunca tinha visto uma fotografia dele antes, em todos aqueles anos. Olhou novamente para a capa do livro, lendo o título: “Sonhos de Uma Noite de Verão,” de William Shakespeare. Ela pensou que adoraria ler aquela história junto com ele. Fantasiou que o fariam em uma noite de verão, após casados e vivendo em sua própria casa.


 .      .       .       .      .      .

Na escola, a Madre Superiora encerrava seu dia de trabalho, fechando a pasta com os últimos relatórios sobre a escola. O dia tinha sido cheio. O ano letivo estava terminando, e algumas meninas deixariam a escola, e outras chegariam. O número de matrículas das alunas pagas aumentara, o que era muito positivo, e que significava as crianças não pagantes poderiam desfrutar de mais conforto, pois durante as férias, ela mandaria construir um playground para elas exatamente igual ao que havia do lado da escola ocupado pelas alunas pagantes.

Ela retirou os óculos, pousando-os sobre a mesa, e já estava pronta para dirigir-se ao refeitório para o jantar, quando escutou batidas à porta. Ergueu a voz, sentando-se novamente, dizendo à pessoa que entrasse. Irmã Dulce entrou, fechando a porta, o rosto muito pálido e o semblante preocupado. Irmã Malvina temeu que algo tivesse acontecido a alguma das crianças:

-Sente-se, Irmã. O que deseja? Já estava me retirando. Aconteceu alguma coisa?

Irmã Dulce a encarava, incapaz de abrir a boca, pois não sabia como começar a perguntar-lhe o que tinha que perguntar. Irmã Malvina começou a pensar que algo muito grave acontecera, e perdeu a pouca paciência:

-Fale logo! Você sabe que eu detesto suspense.

Irmã Dulce pigarreou, mas mesmo assim, sua voz estava tremida:

-Irmã... quando vim parar aqui nesta escola com um filho na barriga, a senhora me acolheu, cuidou de mim e permitiu que eu cuidasse de meu filho. E também me contou uma história. Uma história da qual nunca mais falamos.

A Madre Superiora recostou-se na cadeira, sentindo-se desconfortável. Por que ela queria falar daquele assunto tão difícil e doloroso, logo agora? Permaneceu em silêncio, e deixou que Irmã Dulce se explicasse. 

-A senhora me disse que quando chegou aqui, também estava grávida de um menino. Me contou que seu nome era Ricardo. Descreveu-o para mim e até mostrou-me uma foto, de um rapaz loiro de olhos azuis, muito pálido, que adorava ler, era inteligente mas que sofria de pânico... não conseguia sair do porão, pois fora criado ali, em segredo... em homenagem a este menino que a senhora teve, eu dei ao meu filho o mesmo nome...

Irmã Malvina começava a perder novamente  a paciência:

-Você não precisa recontar a história de minha vida, Irmã. Eu a conheço muito bem, e não gosto de conversar sobre ela... tudo isso foi há muitos anos, e se lhe contei, foi em um momento de fraqueza e nostalgia. Isso não lhe dá o direito de...

Irmã Dulce a interrompeu:

-A senhora também me disse que este menino cresceu, mas que adoeceu, e após um ano de doença, 
morreu aos dezesseis anos. 

Irmã Malvina levantou-se, não podendo suportar mais a pressão das próprias lágrimas. Caminhou até a janela, ficando de costas para Irmã Dulce.

-O que você quer, ao tocar neste assunto? Por que me tortura?

-Não desejo tortura-la, Irmã, mas preciso saber da verdade: ele morreu, realmente?

Irmã Malvina virou-se para ela, e o que Irmã Dulce viu, foi um rosto banhado em lágrimas que ela lamentou ter provocado. 

-Sim, ele morreu... eu cuidei dele com todo desvelo, apenas para vê-lo morrer de tuberculose naquele porão... e carrego esta culpa até hoje, e a carregarei pelo resto da minha vida, pois não fui como você... não tive a coragem de manda-lo para longe daqui, para que fosse criado e educado longe de meus olhos, ou de dá-lo à adoção... não tive a sorte que você teve, e agora vem remexer meu passado e acusar-me?

Irmã Malvina lembrou-se de quando Irmã Dulce chegara àquela escola, e de quando a ajudou no parto. Ao olhar para o rosto do bebê recém-nascido da outra mulher, lembrara-se do seu próprio filho, e sentira inveja por não tê-lo mais. Fizera tudo o que podia para tentar convencer a mulher a doar seu filho, apenas para que não precisasse conviver com ele todos os dias, mas a outra negara-se. Então, para não ter que ver a criança crescer correndo pelo pátio da escola, Irmã Malvina confinara a convivência de ambos ao porão. Impôs a condição de que a outra se tornasse freira e jamais revelasse a existência do menino. Odiou, quando ela lhe disse que o chamaria de Ricardo, mas tentou ser forte e aceitar a homenagem. Ela poderia suportar, desde que não precisasse vê-lo jamais, ou escutar-lhe o choro.

Irmã Dulce aproximou-se dela, mas sem atrever-se a tocá-la:

-Irmã, eu jamais a acusaria de nada! A senhora me ajudou em meu pior momento, e eu jamais sentiria qualquer coisa pela senhora que não fosse carinho e gratidão. Mas algo está acontecendo, e eu precisava confirmar essa história. Uma das alunas... Regiane... jura ter estado com ele naquele porão. Ela contou-me que os dois se veem desde que ela começou estudar aqui nesta escola, há dez anos!

Irmã Malvina quase perdeu o equilíbrio; sentou-se em um sofá que estava localizado junto à janela, as mãos na cabeça:

-Por que me tortura com essas mentiras? Meu filho está morto e enterrado! Eu mesma mostrei a você onde ele está!

Irmã Dulce ajoelhou-se perto dela, a fim de ver seu rosto, e falou pausadamente:

-Irmã... ele não está morto. Regiane fala com ele. Eles se encontram há anos naquele porão. Ela está lá agora. Com ele. 

-Deve ser algum vagabundo com o mesmo nome, que se infiltrou nesta escola e que aquela menina protege, achando ser outra pessoa.

-A descrição que ela me fez dele... é a mesma de seu filho.

-Você sabe tanto quanto eu que isso não pode ser verdade. Vamos lá agora mesmo.

Irmã Malvina recuperou as forças e a dureza de sua expressão, e seguida de longe por Irmã Dulce, pisava duro nas tábuas corridas, dirigindo-se rapidamente ao porão, disposta a desmascarar o impostor e expulsá-lo para sempre.




(Continua...)






sexta-feira, 1 de abril de 2016

O ANJO NO PORÃO - capítulo XX










O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XX




Regiane estava arrumando alguns de seus vestidos no armário que sua Tia Rosa lhe cedera. O final do ano escolar estava próximo, e ela já começara a fazer a sua mudança. Pensava em Ricardo, e no quanto sentiria saudades dele, e também no fato de não ter conseguido descobrir nada sobre ele, como por exemplo, quem era sua mãe verdadeira. Tinham combinado de se encontrar fora dali, mas alguma coisa dizia a ela que ele não cumpriria sua promessa. Não que ele não o quisesse, mas havia algo que o impedia. E ela precisava descobrir o que era, antes que ele desaparecesse para sempre de sua vida.

Rosa chegou sem ser notada, e ficou a observar Regiane arrumar o armário. Não pode deixar de perceber que a sobrinha estava preocupada, e não parecia feliz. Rosa estava encostada no portal, braços cruzados, olhando para Regiane, quando esta finalmente notou sua presença:

-Ah... olá, tia. 

-Você não está feliz, está?

-Não vou mentir. Não me sinto feliz. Sei que a senhora preferiria morar sozinha aqui, e eu também preferiria estar vivendo lá no alto, no chalé, mas sei que isso jamais vai acontecer. Tia Fiorela nunca permitiria. 

-Não tem cabimento, Regiane. Ela está certa, você é muito nova para viver sozinha. Ainda mais naquele casebre cercado de árvores no alto da colina, longe de nós, longe de tudo.

Regiane sentiu o quanto a descrição que a tia fizera do casebre soara, aos seus ouvidos, como a descrição do paraíso: “Entre as árvores... no alto da colina... longe de tudo e de todos...” sempre havia morado junto com muitas pessoas – da maioria delas, não gostara, e algumas a trataram muito mal. Seu maior sonho era ter sua própria casa, seu lar. Um lugar qualquer onde ela se sentisse a dona, e pudesse fazer o que quisesse à hora que desejasse. Um lugar onde não se sentisse sempre tão deslocada. Quase sem perceber, deu voz aos seus pensamentos:

-Meu maior sonho é ter minha própria casa.

Tia Rosa a compreendeu, pois também não se sentia bem vivendo de favor na casa da irmã:

-Entendo... mas você um dia poderá casar-se, e ter sua própria casa, enquanto eu...

Ela não terminou a frase; pigarreou ao notar que dissera mais do que pretendia. Regiane foi até ela, segurando sua mão:

-Tia, a senhora ainda é jovem e bonita. Não pensa em casar-se?

-Rosa suspirou tristemente:

-Jamais! O homem que eu amei casou-se com outra.

Regiane nada sabia daquela história, e estava muito interessada em descobrir o passado da tia. Puxou-a para a cama, sentando-se ao lado dela:

-Como assim? Por que, tia?

Rosa baixou os olhos, acariciando a colcha:

-É uma longa história... mas não gostaria de falar sobre ela. É passado, agora, e me machuca muito recordar. Vamos falar de você!

Aproveitando a intimidade daquele momento, quando uma nesga do sol da tarde entrava no quarto através da cortina e ia pousar nos desenhos da colcha de tricô, Regiane hesitou: pensava em contar a tia sobre seu segredo, sobre Ricardo.

-Falar de mim? 

-Sim! O que pretende fazer? Seu pai me disse que não quer se casar.

-Pelo menos não agora! Ainda sou muito nova, tia.

-Ora... sua avó... nossa mãe – casou-se aos quatorze anos de idade…

-Mas isso foi há muito tempo. Não quero me casar agora, a não ser....

-Percebeu que tinha falado demais. A tia insistiu:

-A não ser?...

E de repente, o segredo que a sobrinha guardava pareceu óbvio demais à Rosa:

-Você está... apaixonada! Mas é lógico, Regiane... como não percebi antes?

Regiane corou até as raízes dos cabelos, e tentou negar, lembrando-se da promessa que fizera a Ricardo de jamais mencioná-lo a outras pessoas. Mas Rosa foi implacável quando a magia do momento foi substituída pelo sentimento de responsabilidade e preocupação de tia:

-Quem é ele, e como o conheceu?

Regiane não respondeu, indo até o armário, começando a dobrar algumas blusas a fim de ficar de costas para a tia. Rosa seguiu-a segurando-a pelos ombros e obrigando-a a ficar de frente para ela:

-Conte-me tudo, Regiane, ou precisarei contar ao seu pai!

A menina arregalou os olhos:

-Por favor, não faça isso, tia Rosa! Eu... por favor, não...

-Então conte-me tudo!

Regiane foi até a porta, fechando-a, e Rosa sentou-se na beirada da cama, esperando. A menina sentou-se na cadeira de balanço, em frente a ela, e contou-lhe a história de Ricardo, as palavras saindo aos poucos, escolhidas com cuidado a fim de não revelarem mais que o necessário. Enquanto ela falava, Rosa via nos olhos dela algo que invejava: o amor. O sentimento de amor, de pertencer a alguém e de ter alguém que a ela pertencia. 

-Tudo começou há muitos anos, quando comecei a estudar no Nossa Senhora da Ajuda. Um dia, as meninas mais velhas trancaram-me em um porão para me colocar medo, e eu fiquei ali, gritando, até que notei que havia uma porta e uma luz que saía pelas frestas... pensei que fosse o jardineiro, que ele dormisse ali, e bati. A porta se abriu, e deparei com um menino mais velho que eu. Começamos a conversar. Ficamos amigos. Ele me ajudou muito com as matérias da escola, e líamos muitas histórias juntos, pois ele tem muitos livros em seu quarto. Eu era só uma criança que precisava de um amigo, alguém que olhasse para mim, conversasse comigo... fosse bom para mim! E ele foi. Ele me ajudou muito, tia Rosa. Ainda me ajuda. Conversou muito comigo quando perdi meus irmãos. Deu-me muitos conselhos quando precisei de uma palavra amiga. Cresci e amadureci aprendendo a admirá-lo e respeitá-lo.

-E ele respeitou você?


Regiane percebeu a verdadeira intenção daquela pergunta e fez a única coisa que poderia ter feito: mentiu.

-Sim! Nós nunca... quero dizer... a senhora sabe.

-E quem é este menino, por que ele estava ali?

Regiane preservou o segredo de Ricardo, mentindo mais uma vez:

-Eu nunca soube, tia... ele disse que as freiras deixavam que ele morasse ali, mas que ninguém poderia saber, ou ele seria expulso e não teria mais onde ficar.

Rosa logo notou que  a  sobrinha mentira, mas que direito tinha ela de questioná-la? Regiane havia crescido longe da família, e sem mãe; vivera em uma casa onde fora maltratada, surrada e castigada ao extremo, e depois, colocada em um colégio interno rígido e antiquado, pois as tias recusaram-se a ficar com ela. Fizeram o que seria mais cômodo para todos, não levando em consideração as necessidades de uma criança. Era natural que a primeira pessoa que lhe dera atenção e carinho, dedicara-lhe tempo e se importara realmente com ela, recebesse algo mais em troca. Temia que Régis descobrisse, e a reação que ele poderia ter quando soubesse daquela história. Seria mais um sofrimento na vida de Regiane. E pensando bem, que moral ele teria para questionar as decisões da filha?

Inesperadamente – Rosa não era de demonstrar afeto – abraçou a sobrinha, que apesar da surpresa daquele gesto, deixou-se ser abraçada, aceitando o ombro acolhedor da tia, o ombro que ela sempre desejara ter, do qual tanto precisara a vida inteira. Em um instante, anos de distância, culpas e ressentimentos apagaram-se. O caminho entre elas se abriu. Nada mais disseram durante bastante tempo. Finalmente, a tia perguntou:

-Você se casaria com ele?

Ela concordou com a cabeça, tristemente.

-E ele se casaria com você, Regiane?

-Não sei, tia... ele é muito misterioso. Acho que ele guarda um segredo. Mas eu respeito o direito dele. Não o cobro de nada. Se um dia ele quisesse se casar comigo, eu seria muito feliz. Mas eu não sei se ele pode... Às vezes, eu acho que ele sofre de alguma doença... é tão pálido... talvez pelo tempo em que vive naquele porão. 

-Eu gostaria de poder falar com ele.

Regiane pulou da cama:

-Não! Ele me fez jurar que jamais falaria sobre a existência dele com ninguém! Por favor, tia, não... dê-nos mais algum tempo! Preciso conquistar a confiança dele, fazê-lo contar-me mais, ou descobrir eu mesma... tenho medo que ele se vá, que eu o espante. A presença dele parece tão frágil... não sei explicar! Por favor, não me arrisque a perde-lo! Ele é a única pessoa que eu sinto que realmente me ama nesse mundo!

Rosa compreendeu o desespero de Regiane, e prometeu guardar silêncio. A sobrinha chorava, aos soluços, e Rosa precisou dar-lhe um copo de água com açúcar para acalmá-la. Depois, prometeu-lhe novamente que respeitaria seu segredo. 

Os dias passavam rapidamente, e Regiane sentia muita ansiedade. Sabia que seus dias na escola estavam terminando. Sentia saudades antecipadas de Ricardo, e passava muito tempo no porão. Ele pedia a ela que tivesse cuidado, pois sabia que ela aparecia em horas nas quais poderia ser vista entrando ali, e ele temia que alguém pudesse segui-la. 

-Ricardo, depois que eu for embora... o que você vai fazer?

Ele ficou mudo. Olhava para o chão.

Ela insistiu:

-Sentirá minha falta? Desejará me ver de novo, fora daqui? É o que você diz, mas não sei porque, não acredito em você. 

Ele a olhou, em silêncio, e ela entendeu: não voltariam a se ver depois que ela fosse embora. Regiane começou a chorar, as lágrimas descendo em silêncio sobre seu rosto. 

-Por que tem que ser assim, Ricardo? Você não me ama, afinal... você me enganou!

-Não! Eu jamais menti para você, Regiane, não lhe fiz qualquer promessa... desde o começo eu lhe disse que a amava, e a amo, mas há coisas que não posso mudar, que não dependem da minha vontade...

-É a sua mãe, não é? Ela é uma freira, e você aparecer para o mundo significa revelar que ela esteve com um homem, teve um filho, e isto arruinaria a reputação dela. Talvez ela fosse expulsa, ou excomungada da igreja... o que você pretende: ficar aqui o resto da sua vida? Nós podemos ir embora para longe daqui, Ricardo.

Ele não respondeu. Parecia totalmente impotente, sem argumentos. Tinha os braços estendidos junto ao corpo, e olhava para o chão. Regiane olhou para ele, irritada pelo seu silêncio:

-Não sei como pude me apaixonar por você. Olhe só para você! É magro e pálido, parece estar doente! E durante estes dez anos em que estivemos aqui, jamais me contou alguma coisa sobre seus planos, seus motivos... nunca me prometeu nada, nunca! Você me deu tanto... e ao mesmo tempo, não me deu nada!

Dizendo aquilo, Regiane abriu a porta do quarto e saiu correndo, para fora daquele lugar escuro e abafado. Ao chegar do lado de fora, sentiu o calor do sol, a sua luz ofuscando seus os olhos já embaçados pelas lágrimas. Encostou-se na parede do porão, tentando se acalmar, mas não conseguia parar de chorar. Principalmente ao realizar que estaria disposta a deixar o mundo de luz do lado de fora daquele porão escuro para sempre, trancando-se dentro dele e jogando a chave fora, se pelo menos ele pedisse aquilo a ela... mas ele não pediria. 

Alguém se aproximava. Ela podia vislumbrar um vulto através das lágrimas. Uma das alunas? Não; uma das freiras. Esfregou os olhos, e viu que tratava-se de Irmã Dulce. Ela tinha o rosto muito preocupado. E Regiane de repente compreendeu tudo: ela era a mãe de Ricardo! Só poderia ser ela, pois naquela escola, era a única que tinha idade para sê-lo. As outras eram ou jovens demais, ou velhas demais. Regiane sentiu um ódio muito forte aflorar em seu coração, algo que ela nunca havia sentido antes, nem mesmo por Celeste, que tanto a maltratara quando criança. Nem mesmo pelas suas inimigas da escola. Quando Irmã Dulce estava nem perto, Regiane estava quase explodindo de raiva. A freira parou diante dela, espantada pela expressão em seu rosto, que ela nunca vira antes:

-O que foi, minha filha? Você está se sentindo mal?

Regiane começou a falar, a voz cortante como aço:

-Sim! Eu me sinto péssima. 

-Por que? O que houve?...

-Porque estou cercada de hipocrisia, Irmã. Porque nasci a filha de uma prostituta que todos condenaram, e no entanto, vim parar neste lugar onde todas as mulheres agem como se fossem santas, mas no fundo, são iguais a minha mãe! Ou pior!

O rosto da freira crispou-se de ódio, e sem pensar, ela desferiu uma bofetada no rosto de Regiane. Surpresa, a menina chorou ainda mais. Irmã Dulce sentia um peso enorme no coração. Será que a menina havia descoberto seu segredo? Tentou acalmar-se:

-Por que está dizendo isso, Regiane? Por que nos ofende, logo nós, que a acolhemos e lhe demos um lar? A ingratidão é um pecado mortal! Você precisa pedir perdão a Deus por...

-Perdão? Pecado mortal? E o que são pecados mortais, Irmã? Por exemplo, colocar um filho no mundo e condená-lo a viver preso em um porão escuro, com medo de escândalos? Isto seria um pecado mortal?

Irmã Dulce fez o sinal da cruz, e de repente, desabou no chão, desmaiando. Quando despertou, estava sozinha. Regiane não estava mais lá. Teria ido buscar ajuda? Não esperou para ver. Levantou-se devagar, esperando que a tontura passasse, e foi caminhando em direção ao prédio da escola. Precisava encontrar a menina.  As alunas da escola a olhavam, calando-se quando ela passava, os rostos preocupados. Alguém perguntou-lhe se ela estava bem, e Irmã Dulce ergueu um braço, pedindo silêncio. Passou. Foi passando pelo corredor, dirigindo-se ao dormitório das meninas. Lá chegando, viu que estava certa: Regiane estava sentada em sua cama, de costas para ela no dormitório vazio. Irmã Dulce entrou e trancou a porta atrás de si, os passos vacilantes ecoando entre as altas paredes do dormitório. Parou diante da menina, que não olhou para ela:

Sua voz estava fraca e hesitante, mas em um tom que seria incontestável. Ela diria toda a verdade. 

-Eu não sei o que a levou a agir daquela maneira comigo, Regiane, mas você está certa: não somos santas nesta escola, somos apenas seres humanos que cometem e cometeram erros. Não sei como você descobriu o meu segredo... não se comentam estas coisas dentro desta escola. Todas as mulheres que aqui chegaram deixaram suas vidas lá fora e tornaram-se outras pessoas, algumas até trocando seus nomes. Umas vieram guiadas pela fé, e outras, pelo desespero. Eu sou uma das que vieram pelo desespero. Talvez, se sua mãe tivesse tido a mesma ideia, ainda estaria viva. Quem sabe, a não ser Deus...

Regiane a ouvia, sem interrompê-la. Sabia que tinha ido longe demais em suas palavras, e que merecera o tapa que levara no rosto. A freira sentou-se ao lado dela na cama:

-Vim parar aqui guiada pelo desespero, mas depois, a fé me guiou, e guia até os dias de hoje. Aprendi a cultivar a fé, a gratidão, o perdão e principalmente, o esquecimento sobre a vida que ficou lá fora. Sem isso, as outras coisas não teriam sido possíveis. Mas vou lembrar de tudo agora, por causa de você, para que conheça as minhas razões, pois não sabe a minha verdadeira história, e não sei o que contaram a você. Talvez, ao ouvir a verdade, você me perdoe. 


(continua...)

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...