segunda-feira, 14 de outubro de 2024

A RUA DOS AUSENTES - parte 10

 





CAPÍTULO 10 –

 

TODAS AS RESPOSTAS?

 

Eduína recostou-se na poltrona, supondo que suas perguntas demorariam para serem respondidas. A primeira dela era sobre a atmosfera do lugar, e ela olhou para cima, tentando formular a pergunta da forma mais clara possível:

- Hã... Eu percebi que, ao chegar aqui, eu me tornei mais bonita de repente. Por que? Isso tem a ver com o ambiente desse lugar?

-Não. Eu desejei isso ao lançar a maldição, há muitos anos, como uma forma de compensar você. Considere como um pequeno presente.

Ela concordou com a cabeça, mas não agradeceu.

-Segunda pergunta: Como o seu gato apareceu aqui?

A bruxa sorriu quase que imperceptivelmente antes de responder:

- Félix não é exatamente um gato doméstico. Ele é  meu familiar – um espírito que eu moldei para me trazer as informações que eu preciso, mas ele está em formato de gato porque aparentemente, Guiomar adora gatos. Acho que são a única coisa que ela adora, na verdade, e eu sabia que se ele aparecesse aqui, ela cuidaria dele. A cada dez ou quinze anos, eu invento um novo gato para ela , mas na verdade, ela não desconfia que todos os... “gatos” são o mesmo.

-Mas você me disse que podia ver as coisas, mesmo estando adormecida.

-É verdade, mas elas nem sempre me surgem claramente. Mas agora que você me despertou e devolveu meu anel, meu poder aumentou muitíssimo. Talvez eu nem precise mais de Félix... (ela disse aquilo olhando para o gato de soslaio, e o pobre animal se encolheu de medo, pulando do sofá e entrando na cozinha para se esconder). Hélida riu alto. Eduína, que era muito sensível aos animais, não gostou daquela última observação, e formulou sua terceira pergunta.

- Você veio de onde? Quem é você, como surgiu nessa história?

A bruxa sentou-se mais confortavelmente, pois aquela parte seria mais longa.

-Na verdade, essa é a minha história. Desde sempre.

Eduína percebeu que seria uma longa história, e achou melhor recostar-se confortavelmente na poltrona aveludada. A outra mulher, percebendo a disposição de Eduína em ouvi-la, começou seu relato após um longo suspiro:

-Eu e minha família éramos muito ricos. Éramos a família mais rica de Lyon. Meu pai era um comerciante de tecidos e perfumes finos, e também especiarias. Minha mãe herdara dos pais uma imensa fortuna que eles amealharam fabricando e vendendo joias. Assim era a nossa família. Morávamos em um castelo e éramos uma família unida e muito famosa.

Devido aos negócios de nosso pai, eu, minha irmã Adelle e meus pais tivemos que nos mudar para a Espanha em 1670. Lá chegando, fizemos amizade com um dos antepassados desta família horrenda, um duque que aparentemente tinha o interesse de tornar-se nosso amigo apresentando-nos à sociedade. Eu tinha dezessete anos de idade naqueles tempos, e minha irmã, apenas sete anos.

Naquele momento, o rosto de Hélida entristeceu. Ela baixou os olhos, mas continuou sua história:

- Não me lembro exatamente onde morávamos... já faz tanto tempo... os detalhes se perderam. Mas sei que nos mudamos para esta mansão que ficava numa área campestre, auxiliados pelo conde, que apresentou nosso pai ao proprietário. Como tínhamos a intençao de retornar a Lyon no ano seguinte, meu pai decidiu apenas alugar a casa. Eu passava a maior parte do meu tempo andando pela floresta que circundava a casa. Ela era profundamente verde, e eu nunca havia me sentido tão bem em um lugar! Logo eu senti que alguma coisa diferente estava acontecendo comigo.

Toda vez que eu estava na floresta eu sentia que os pássaros se aproximavam cada vez mais, e havia outros animais também, como veados e guaxinins, que chegavam mais perto e me observavam. Um dia, encontrei uma senhora; ela era muito idosa e estava um tanto mal vestida para os padrões da minha família, mas parecia ser de confiança. Ela me disse que eu tinha “O Dom.” Logo ficamos amigas. A cada interação que tínhamos – passei a frequentar o seu chalé escondida dos meus pais – ela me ensinava sobre as ervas, as plantas em geral, os animais. Me mostrou seu grimório...

- O que é isso?

- Um livro de feitiços. Ela me ensinou a manipular a natureza. Parecia que eu simplesmente me lembrava das coisas, tal a rapidez com que aprendia tudo e não esquecia jamais um feitiço após aprendê-lo. Em apenas alguns meses, eu já dominava todas as práticas do grimório, deixando-a impressionada. Ela decidiu que eu estava pronta, e abrindo o armário da cozinha, pegou uma pequena caixa e tirou de lá um objeto embrulhado em veludo negro.

- O anel, suponho.

- Sim, o anel. Este mesmo anel que eu uso hoje. E ela me pediu que o usasse com sabedoria e altruísmo, e não o mostrasse a ninguém. Alertou-me para ser sempre discreta sobre os meus poderes e não contar a ninguém sobre eles – nem à minha própria família. Mas o que deveria ter sido uma bênção, logo transformou-se em uma maldição. Porque eu achei que poderia consertar o mundo e ajudar as pessoas. Mas elas são ingratas, acredite em mim!

Naquele ponto do relato, os olhos de Hélida brilharam de raiva, e ela bufou, sentando-se na ponta do sofá. Instintivamente, Hélida encolheu-se na poltrona, mas pediu:

- E o que aconteceu? Continue sua história, por favor.

-Eu usei meus poderes para curar, ajudar, guiar. Pedia às pessoas que mantivessem segrêdo, mas logo havia uma fila de miseráveis e aproveitadores à porta de nosso castelo. Todos queriam a mesma coisa: usar meus poderes para obterem algum tipo de vantagem, e nem sempre era a cura para alguma doença, mas tinha a ver com dinheiro e poder. Minha família teve que colocar guardas à porta, mas eles não foram suficientes para conter a multidão, e logo a igreja e esta família ficaram sabendo dos acontecidos. Um dos membros era um bispo importante, e eu fui presa juntamente com a minha família.

Hélida passou a andar de um lado ao outro da sala, seguida pelos olhos fascinados de Eduína.

Meus pais e minha irmã foram torturados e mortos, e meses depois, fui colocada para dormir. Meu poder é tão grande, que não conseguiram me matar – e acredite, eles tentaram. Nossos bens foram distribuídos entre o bispo e sua família.

Eduína respirou profundamente, mexendo-se desconfortavelmente na poltrona. Hélida olhou para ela, e disse friamente:-Mais alguma coisa que deseja saber?

Eduína ergueu a cabeça, dizendo:

-Se tudo o que está me dizendo é verdade, por que quando eu encontrei você e a despertei, você me olhou e disse: “Então você é filha dela?” Se eu sou apenas mais uma, alguém preparado para servir ao propósito dele, por que perguntou-me aquilo?

Hélida fitou-a nos olhos, e Eduína sentiu um pouco de tontura, mas mantevese firme. A bruxa era realmente forte!

-Eu me referi ao personagem que lhe venderam, não a você ou à sua mãe verdadeira. Para todos os efeitos, você é a filha de Viviane.

-E todos eles sabem sobre sua verdadeira origem, até mesmo Felício? Porque ele me disse que...

Hélida a interrompeu:

-Sinto muito, mas Felício, sua paixonite, é tão falso quanto todos eles. O dever dele é ganhar a sua total confiança para facilitar o ritual. Eles querem que você se apaixone por ele.

-Mas como, se você mesma disse que eu fui preparada para não ter sentimentos?

A bruxa a olhou como se estivesse falando com a pessoa mais néscia do mundo:

- Não notou nenhuma diferença na sua maneira de sentir ultimamente? Eles estão diminuindo a dose de seus medicamentos. Apenas o suficiente para que você sinta alguma coisa por ele, o que não é difícil, já que Felício pode ser bastante sedutor...

Eduína examinou seus últimos dias e teve que admitir que pensava mais em Felício do que seria necessário. De uma maneira que nunca havia pensado em Cláudio, a quem beijara e com quem fizera amor e compartilhara alguns segredos.

- Os enjoos e desmaios que você vem tendo são devidos a isso, a falta dos remédios que tomou desde sempre. Escute; estou prestes a obter a minha vingança, e você será salva desse destino horrível que prepararam para você se eu conseguir. E ainda prometo a você segurança financeira até o final da sua vida. Se me ajudar, é claro. Mas já vou avisando que não vai ser nada fácil.

Eduína pensou antes de responder, e o silêncio entre as duas durou alguns minutos antes que ela respondesse:

-Mas se você é uma bruxa poderosa, por que apenas não os destrói? Para quê precisaria de mim?

Hélida caminhou até ela, e dobrando o corpo para encará-la de frente, e pondo as mãos em cada um dos braços da poltrona em que Eduína estava sentada, aproximou o rosto do dela, fazendo com que a moça se encolhesse novamente.

-Porque se eu fizesse isso, não estaria vingando a minha família, os dias e dias de torturas aos quais foram submetidos. Eu quero que eles PAGUEM! Eu quero que me paguem da mesma forma, com os mesmos requintes de crueldade! E você nem precisa ficar para ver. Destruí-los seria realmente muito fácil, mas eu preciso de mais! Quero condená-los a uma eternidade de sofrimentos! A todos eles! Inclusive aos que ainda não voltaram!

Dizendo aquilo, Hélida se afastou, sentando-se calmamente no sofá. Eduína respirou profundamente, esperando que as batidas de seu coração voltassem ao normal, enquanto via, estupefata, o rosto da outra voltando à calma. Parecia uma tempestade que passava, voltando às profundezas do mar.

-E quantos são eles, ao todo? De quantos você está falando em se vingar?

A bruxa virou a cabeça vagarosamente para olhá-la:

-São ao todo trinta e cinco. Por isso preciso de ajuda, isso não vai acontecer muito rapidamente. Vai levar algum tempo até que eu conjure cada um deles de volta à vida ao mesmo tempo.

-E quando você vai começar a fazer isso?

-Já comecei. Amanhã de manhã Viviane voltará. Serão trinta e cinco dias. Um para cada pessoa.

 

 (continua)

 

 

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 9

 


Parte 9 -  DESCOBERTAS

 

-Então Viviane não é minha mãe? E Lázaro não é meu pai, certo?

Por um segundo, a outra a olhou como se ela fosse uma pessoa totalmente obtusa, mas respondeu pacientemente:

- Não. Seus pais verdadeiros não existem mais. Eles a tiraram deles e a puseram aos cuidados daquele casal que a criou; depois, eles a trouxeram aqui para satisfazer seu propósito.

-Mas eles sequer desejam viver essa vida tão longa. Lázaro me confessou que...

Hélida a interrompeu:

-Ele apenas disse aquilo porque faria com que você continuasse calma e permanecesse aqui.

Eduína levantou-se da mesa, começando a andar de um lado ao outro pela cozinha, balbuciando coisas inaudíveis e balançando negativamente a cabeça. Hélida a observava, um brilho maligno escapando-lhe dos olhos. Finalmente, Eduína pareceu conversar consigo mesma, às vezes olhando a outra de soslaio:

-Quer saber? Essa história toda está muito ridícula. Não acredito em merda nenhuma disso que vocês estão tentando me fazer engolir. Essa coisa toda não existe, não tem ninguém morrendo e voltando, você não é bruxa nenhuma, todos se reuniram por algum propósito que eu desconheço e inventaram essa história toda por algum motivo que eu também desconheço. Querem me enlouquecer, quem sabe. Mas a troco de quê?

(Neste momento, ela pareceu falar consigo mesma): ”O que ganhariam com isso? Seria algum teste psicológico, quem sabe? Devo ser parte de alguma experiência, ou então... quem sabe, é uma vingança de Cláudio, meu ex-namorado? Não, ele não teria inteligência para bolar algo assim, e nem mesmo condições financeiras para conseguir um cenário caro como esse.”

Depois, olhando diretamente para Hélida, Ela explodiu:

-Mas não pense que vocês vão me pegar.

Dizendo aquilo, ela saiu, batendo a porta e andando pela rua sob a luz de uma lua azul enorme. Quando finalmente chegou em casa, já passava da meia-noite. Lázaro, Beatriz, Guiomar e Felício a aguardavam em silêncio, sentados nos sofás e poltronas da casa. Ela parou no alpendre, sendo observada por eles, um pouco surpreendida pela presença de Felício, que a olhava muito sério. Ela não os cumprimentou, subindo as escadas para seu quarto.

Eles se entreolharam, e Eduína ainda conseguiu ouvi-los sussurrando algo pelas suas costas.

No quarto, ela percebeu que Felix a tinha seguido de volta até a casa, e sentado no tapete, seu olhar inquieto a observava. Eduína pegou sua mala em cima do armário e começou a colocar suas roupas – apenas as que trouxera com ela – dentro da mala. Felix atravessou o quarto, parecendo nervoso, sentando-se dentro da mala. Parecia tentar impedi-la. Eduína o olhou com raiva:

-E que porcaria de animal é você, seu gato idiota? Um espião daquela bruxa?

O pobre gato arrepiou-se todo, saindo de dentro da mala e indo sentar-se na cadeira do outro lado do quarto, o mais longe dela possível.

Mas de repente, ela sentou-se na cama, pensando melhor. Ergueu-se e começou a guardar as poucas coisas que havia retirado do armário. Ela precisava descobrir quem estava mentindo! Precisava também saber o porquê daquilo tudo. Era uma história fantástica demais. A sua história. Sua cabeça ainda estava cheia de perguntas. Olhou para o gato; de certa forma, ele a “ajudara” a acreditar nas histórias a ela contadas por aquela estranha família, pois mostrara a ela onde ficavam os álbuns de fotografias.

A não ser que...

Eduína levantou-se da cama com um pulo, agarrando o álbum que estava sobre a cômoda. De repente, pensou, Félix estava tentando mostrar-lhe alguma outra coisa.

Abriu o álbum sobre a cama, ajoelhando-se no chão. Olhou cuidadosamente para as fotos mais uma vez. Retirou uma delas do álbum, olhando o verso. Estava em branco. Começou a fazer o mesmo com as demais fotografias, até que em uma delas, encontrou um anel colado no verso. Ela olhou para ele, retirando-o da fotografia cuidadosamente e colocando-o sobre a cama.

Os olhos de Félix brilharam ao ver o anel, e ele saltou da cama, e saiu às pressas pela porta.

Eduína reparou que tratava-se de uma joia antiga e delicada, na qual brilhava uma pequena pedra negra ladeada por outras pedras azuis escuras. Ela nada entendia sobre jóias, mas sua intuição lhe dizia que aquele era um anel muito especial. Seus olhos não conseguiam desviar-se da pedra – era quase hipnotizante. Eduína tentou colocá-lo em seu dedo, mas não conseguiu, apesar de aparentemente ele ser do seu tamanho. Ela tentou mais uma vez, em todos os seus dedos, e entendeu que o anel só serviria em sua verdadeira proprietária. Veio-lhe imediatamente a resposta: aquele anel pertencia à Hélida, e estava ali escondido há séculos. Era um anel mágico.

Talvez aquela joia fosse muito importante para a bruxa. Ela sentiu uma presença atrás de si, no mesmo momento em que uma voz sussurrou em seu ouvido: “Guarde esta joia, não deixe que eles a vejam. E não conte a ninguém sobre meu despertar. Quando todos estiverem dormindo, venha até a minha casa e traga-me o anel.”

Eduína tinha um coração frio em relação a todos os humanos que conhecera, embora aquela frieza não se estendesse aos animais e plantas. Lembrou-se do que a bruxa lhe dissera: ela tinha sido medicada para desenvolver sociopatia. Ela perguntou a si mesma como seria poder sentir. Afastou aquela ideia, e achou melhor descer para a sala e fingir que tudo estava normal. Mas quando chegou lá, todos já tinham ido embora – provavelmente, estariam dormindo. Foi até a cozinha e preparou para si mesma uma xícara de café, que tomou com o bolo de chocolate surreal que Beatriz havia preparado. Uma hora mais tarde, ela verificou se estava realmente sozinha, e apagando todas as luzes da casa, voltou à casa de Hélida levando consigo o anel.

Enquanto caminhava até lá, a lua cheia brilhante parecia acompanhá-la. Olhou para a casa de Lázaro, onde todas as luzes estavam apagadas.

Empurrou a porta entreaberta, que rangeu tristemente, e encontrou Hélida sentada no sofá. Ela agora vestia um vestido de veludo negro, justo no corpo, que se abria em uma saia godê e o mesmo par de botas. Parecia um daqueles modelos de 1940 que ela via nos filmes que assistia com sua mãe adotiva.

Sem nada dizer, ela estendeu a mão e deixou o anel cair sobre a palma da mão de Hélida, que agradeceu com um leve aceno de cabeça. Imediatamente, ela colocou-o no dedo anelar esquerdo, e um brilho intenso saiu das pedras. Eduína sentiu o quão poderosa a jóia poderia ser, pois Hélida tornou-se ainda mais bonita ao usá-la. Hélida olhava para o anel, os olhos marejados:

- Esperei por tantos anos para poder reaver esta jóia!

Félix aproximou-se dela, ronronando e sentando-se ao seu lado no sofá. Eduína sentou-se na poltrona em frente a ela sem nada dizer, fascinada pela imagem da mulher diante dela. Por um instante, sentiu inveja da bruxa; gostaria de ter todo aquele poder. Na mesma hora, Hélida olhou-a bem dentro dos olhos:

-Nem pense em uma coisa dessas. Você sequer imagina o que significa ser alguém como eu. Além disso, você não tem o dom.

Eduína engoliu em seco, pensando que teria que tomar mais cuidado com seus pensamentos quando estivesse perto de Hélida.

A bruxa olhava o anel, como se quisesse absorvê-lo. Colocou sua mão direita por cima da esquerda, murmurando algo em uma língua desconhecida. Élida não se atrevia a abrir a boca. Percebeu que aquele era um momento emocionante para a mulher – sim, a bruxa tinha sentimentos, e mais uma vez, Élida não conseguiu deixar de invejá-la. Ela apenas a olhava, fascinada, enquanto lágrimas desciam pela face da bruxa. Eduína lembrou-se que jamais tinha chorado - nem mesmo quando pensou ter sepultado seus pais adotivos. Lembrou-se de fazer amor com Cláudio, e que nada sentira por ele além da sensação física de prazer.

Estava tão entretida em suas próprias lembranças e questionamentos, que quando percebeu, Hélida tinha terminado seu pequeno ritual e a fitava novamente. Ela disse:

-Sinto que você tem muitas perguntas. Pode começar.


(continua)





 

quinta-feira, 18 de julho de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 8

 





PARTE 8 –

O DESPERTAR

 

Eduína, que era sempre fria e calma, levou um susto. Achou que aqueles olhos que a olhavam fixamente eram apenas sua imaginação, e piscou para afastar aquela imagem, mas quando olhou-a novamente, os terríveis e ao mesmo tempo maravilhosos olhos verdes emitiram um brilho de vida, e Hélida se mexeu. Eduína, fascinada, afastou-se um pouco do caixão de vidro, tentando não demonstrar medo, até que Hélida empurrou a tampa com a mão, sentando-se e espreguiçando-se. Olhou para Eduína como se ela fosse um inseto, enquanto bocejava, perguntando:

-O que você está fazendo aqui, e quem é você?

Instintivamente, Eduína sabia que aquela pergunta era desnecessária: Hélida já tinha a resposta. De repente, Félix desceu as escadas do porão, indo sentar-se no colo de Hélida, que o acariciou enquanto o gato ronronava, esfregando-se nela. Após alguns segundos, ela o afastou e saiu do caixão, espreguiçando-se mais uma vez, batendo a poeira do vestido com as mãos. A cena era simplesmente bizarra, e Eduína nem percebeu que seus olhos estavam arregalados, e ela, boquiaberta. Hélida olhou-a novamente, desta vez com mais atenção:

-Você é a filha dela. Hum... vamos lá para cima. E obrigada por cuidar do meu gato. Ele esperava pela minha volta há muito tempo.

As duas mulheres subiram as escadas seguidas por Félix. Ao chegarem na cozinha, Hélida olhou em volta, dizendo:

-Aquele velho não cuidou muito bem da minha casa nesses anos todos. Olhe só quanta poeira! Você não abre a boca, não fala nada?

Eduína balbuciou:

-Bem, é que... você há de convir que essa história toda é meio difícil de engolir... quem tem a chance de estar diante de uma bru... digo, de uma mulher que morreu há 300 anos e conversar com ela, vendo-a se mover enquanto prepara um chá?

Hélida pareceu ignorar a fala da outra, enquanto pediu:

-Me ajude a acender esse fogão. É moderno demais para mim. E por favor, pode me chamar de bruxa. É o que eu sou. E eu não morri, fui colocada para dormir.

Eduína acendeu o fogo, enquanto Hélida a observava atentamente. Depois, a moça foi até o interruptor elétrico e a cozinha encheu-se de luz. Hélida olhou para cima, surpresa, e deu um leve sorriso:

-Hum, modernizaram tudo por aqui. Isso é bom. Mas... o que você faz aqui em minha casa? Como entrou?

- Você sabe. Mas tudo bem, eu posso responder mesmo assim.

A outra riu abertamente:

- Mesmo sabendo, há coisas que devem ser ditas. 

Elas colocaram duas xícaras sobre a mesa. Eduína se perguntava sobre o que beberiam, já que a casa estivera tanto tempo vazia, mas Hélida abriu o armário sobre a pia e Eduína viu potes de ervas frescas e um pão de centeio também fresco. As duas se entreolharam, e Hélida disse:

-Não se esqueça que eu sou uma bruxa. De verdade.

Eduína decidiu que gostava de Hélida. Mal sabia ela que a bruxa esperava por aquele momento há anos e anos.

As duas mulheres tomaram chá de ervas e comeram o pão ainda quente servido pela bruxa. Eduína contou-lhe sua história brevemente, e partilhou a vontade que alguns tinham de finalmente não voltarem. A bruxa a escutou atentamente, fazendo algumas perguntas de vez em quando. Enquanto isso, as sombras do dia vagarosamente se transformavam em noite. Quando Eduína terminou de contar sua história, Hélida ficou em silêncio durante algum tempo, olhando para seus próprios trajes com insatisfação. E então, diante dos olhos da moça, as roupas de Hélida começaram a se transformar vagarosamente em um vestido moderno, de cor marinho, com uma saia rodada na altura dos joelhos, e um par de botas de cano médio se materializaram sobre os sapatos antigos. Quando Eduína ergueu os olhos, viu também que os cabelos emaranhados de Hélida estavam limpos e sedosos, deixando-a ainda mais bonita. Por um momento, Eduína invejou a bruxa, mas lembrou-se de que ela poderia adivinhar seus pensamentos e varreu aquele sentimento para longe.

Finalmente, Hélida respondeu:

- Eles querem saber se é possível não voltar? Eles me puseram em uma caixa de madeira por duzentos anos! Depois, me transferiram para aquele mausoléu de vidro no porão da minha própria casa, onde passei os últimos cem anos. E por que? Simplesmente porque eu era uma bruxa.

-Mas como isso aconteceu?

Hélida franziu as sobrancelhas, parecendo zangada. Depois, em um tom de voz calmo e quase cínico, começou sua narrativa:

- Porque bruxas deveriam ser destruídas. Queimadas vivas, torturadas, presas, privadas de todos os seus bens, humilhadas em praça pública, enfim, postas para dormir e trancadas em caixas de madeira, quando eram poderosas demais para serem mortas. No meu caso, eles fizeram um pacto. Se eu fosse posta para dormir indefinidamente, sacrificariam treze almas ao demônio, e construiriam doze casas parecidas com a minha, que seriam seus templos. E ainda diziam que eu era a coisa ruim!

Eduína ficou chocada:

- Quer dizer então que as treze casas são...

- Templos. E a cada treze anos, a sua maravilhosa família sacrifica treze jovens mulheres ao seu “deus” a fim de aplacarem sua fúria e manterem o pacto. E adivinhe só quem será uma delas dentro em breve?

Eduína engoliu em seco, levando a mão instintivamente ao próprio pescoço:

A bruxa riu alto. Eduína sentiu um arrepio percorrer sua espinha, reconhecendo o medo pela primeira vez em sua vida.

-Mas... como? Me disseram que eu sou uma deles, e que me tiraram daqui para que eu não fosse morta por minha avó...

-Querida, como você é ingênua. Acha mesmo que herdou aquela casa, aquela fortuna? Acha mesmo que Lázaro é seu papai e Viviane a sua mamãe? Você é uma das treze, só isso. As outras serão trazidas dentro em breve pela mesma história que trouxe você aqui. Estão sendo criadas por pais adotivos – seus verdadeiros pais foram mortos... “acidentalmente.” E vocês são especiais, todas vocês. Porque sofrem de algum grau de sociopatia. E não têm nenhum parente vivo, ou seja, ninguém sentirá falta de vocês.

-Sociopatia?

-Exato. E você sabe muito bem que jamais conseguiu amar ninguém, ou sequer gostar de alguém. Sempre foi solitária, nunca sentiu falta de ninguém, nunca realmente sentiu necessidade de amigos. Você é fria como uma pedra de gelo, e ambiciosa. E eles a criaram assim. Você inclusive foi medicada para tal.

-Mas eu assinei vários documentos assumindo a herança!

-Todos eles falsos, sua tola. E toda a fortuna que eles adquiriram pertenceu a mim, à minha família. Nada disso pertence a eles.

- Mas... e como eles podem... e quanto a você, como você despertou?

-Você me despertou, embora eu não estivesse realmente dormindo. Minha alma vagou livremente, e eu pude acompanhar tudo o que acontecia por aqui.  Não pude escapar de suas armadilhas, pois fui presa, amordaçada e drogada; mas durante esses acontecimentos, eu pude lançar-lhes uma maldição, que foi a de retornarem e continuarem retornando sem terem descanso.

Eduína começou a sentir-se bastante desconfortável.

-Mas... por que eu a despertei?

- Eles não sabem, mas você foi parte da maldição que eu lancei: uma mulher chamada Eduína me despertaria. E me ajudaria em minha vingança.


(continua)





terça-feira, 2 de julho de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 7

 




Capítulo 7 – A ETERNIDADE

 

Surpreendida pelo desabafo da mulher geralmente calada, Eduína refletiu por um momento. Mas o que Beatriz disse não a convencia de que viver para sempre, sendo rica e sem jamais envelhecer, poderia ser uma ótima ideia. Perguntou, dirigindo-se à Beatriz:

- Beatriz, vocês dizem que nós voltamos. Mas somos sepultados, alguns cremados, nossos corpos não são destruídos? Então, como voltamos neles?

As duas velhas mulheres se entreolharam, respirando profucndamete, e foi Guiomar quem respondeu:

-Não sabemos. Não conseguimos nos lembrar de absolutamente nada entre o momento em que desaarecemos e o momento em que voltamos. Chegamos aqui andando e ficamos um pouco confusos no início, até que as lembranças começam a voltar. Não sabemos como voltmos aos nossos corpos.

Eduína ergueu-se da cadeira, caminhando e gesticulando enquanto dizia:

-E se... pudéssemos escolher os corpos para os quais voltaremos? Ou seja, corpos mais jovens e bonitos? Mais saudáveis? E se pudéssemos escolher novos corpos e novas vidas, novas identidades?

Beatriz negou com a cabeça, e Guiomar disse:

- Já foi tentado. Os cientistas tentaram. Usaram corpos de pessoas recém-falecidas, indigentes. Mas nada conseguiram nesses anos todos.

-Talvez porque eles pensam que tudo isso é apenas uma experiência física, algo apenas científico. Mas... e se tiver alguma coisa a ver com mágica? Algum ritual?

As duas mulheres se entreolharam novamente, mas nada disseram. Preferiram não dizer que algo fora tentado algumas vezes, e apesar de terem sacrificado algumas vidas a procura de corpos jovens para onde voltarem, tais vidas tinham sido desperdiçadas em vão. Nada tinha funcionado. Lembraram-se do velho livro de rituais eu estava na família há séculos, mas que ninguém conseguira decifrar totalmente. O livro encontrava-se na prateleira mais alta da biblioteca, onde dificilmente alguém poderia encontrá-lo. Fora colocado lá por Viviane.

Sob  a mesa, Felix estava em sua posição de iogue na sua cadeira favorita, os olhos fechados.

Mais tarde, quando as duas senhoras foram dormir, Eduína caminhava pela casa semi-escurecida olhando tudo. O silêncio era entrecortado pelo ruído do relógio antigo de parede. Ela ainda não conseguia entender o que estava acontecendo, mas sabia que mais cedo ou mais tarde, ela conseguiria. Sentia que tinha uma missão naquela família.

Após oito dias morando naquela casa, Eduína ainda não tinha reencontrado Feliciano, o belo jovem que conhecera no jardim e que era seu vizinho. Tinha a impressão que ele estava fugindo dela, mas Beatriz assegurou-lhe de que Feliciano estava ocupado cuidando dos negócios da família. Da mesma forma, Lázaro passava de vez em quando para levar algumas compras do supermercado, mas nunca falava com ela. Eduína precisava lembrar-se de aquela figura encarquilhada era seu pai, mas como ele jamais se dirigia a ela, ela agia da mesma forma. Não se sentia próxima a ele e nem queria estar.

Seu único amigo, aquele que a via sem a sua armadura, era o gato Felix. Ele subia em sua cama e ficava olhando para ela, enquanto ela olhava pela janela ou andava de um lado para o outro.

Ela não saía muito. Tinha ido até o final da rua e conhecera todas as casas pelo lado de fora, já que deu a si mesma a liberdade de invadir seus jardins, como Feliciano fizera. Reparou que todas as casas eram muito antigas e bem conservadas e tinham a mesma arquitetura, com apenas poucas diferenças. Também foi à cidade uma vez, e sentia os olhos das pessoas presos nela quando ela passava. Mas Eduína não ligava que falassem dela ou que a observasse, pois nunca tinha sido tímida. Ela retribuía – ou melhor, enfrentava – os olhares de algumas pessoas mais insistentes até que elas parassem de encará-la, e o fazia por pura diversão. Se havia alguma lenda sobre aquela família, ela a alimentaria.

Certa vez, ela seguiu Lázaro até sua casa depois que ele foi levar algumas compras. Ele ficou surpreso ao vêla andando atrás dele, e franzindo as sobrancelhas, tentou entrar em casa antes que Eduína o alcançasse, mas ela foi mais rápida, colocando-se entre ele e a porta. Lázaro respirou profundamente, mostrado toda a sua habitual irritação. Eduína buscou dentro de si sua melhor ironia antes de perguntar:

-Por que o papai anda sempre tão aborrecido?

No fundo, seu coração batia descompassadamente, uma sensação nova para ela, mas seu rosto era pálido e frio como sempre. Lázaro, sentindo-se desarmado de repente, respondeu com outra pergunta:

-Ah, então você já descobriu?

Ela não respondeu, permanecendo a encará-lo desafiadoramente e lançando uma outra pergunta:

- Como é viver por tantos anos?

Ele sorriu levemente, um sorriso maldoso. Abriu a porta de casa e fez sinal para que ela entrasse. Eduína entrou, reparando na simplicidade da casa quase nua, sem tapetes, sem decoração. Lembrou-se da casa onde vivera com seus pai adotivos, mas sem nenhuma saudade. Puxou uma cadeira junto à velha mesa de madeira arranhada e sem toalha enquanto Lázaro arrumava algumas compras no armário, de costas para ela. E repente, ele começou a falar:

-No começo, pensamos que viver por muitos anos é bom. Mas depois de certo tempo, percebemos que passamos a conhecer bem as pessoas, bem demais – suas atitudes não mudam muito, elas não parecem evoluir, se olharmos de perto – e isso nos torna amargos e com cada vez mais vontade de nos afastarmos delas, tão previsíveis são suas atitudes e palavras. Esta cidade, por exemplo; um bando de fofoqueiros e curiosos. Eles nascem, crescem, dão à luz a outros fofoqueiros como eles, morrem... e o ciclo se renova, ou melhor, se repete. Não há graça, e após um certo tempo, torna-se apenas tédio. A vida pode ser bem superficial.

Ele sentou-se em frente a ela, esticando-lhe um copo de água que ela ignorou.

-Como tudo isso começou? As pessoas começando a voltar, quero dizer.

-Não tenho certeza... talvez há uns trezentos e tantos anos. Falam sobre um feitiço feito por Hélida, uma antepassada que gerou uma maldição que comprometeu todos os descendentes da família e também a todos que se envolvessem com eles. Ela viveu há mais de trezentos anos.

Eduína parecia fascinada.

- Uma bruxa... se um feitiço foi lançado, deve haver uma maneira de desfazê-lo. E como elas voltam?

Ele fitou-a, deixando transparecer no seu olhar cansado um misto de dó e indiferença:

-Elas apenas parecem, caminhando na estrada, voltam para suas casas. E não sabem de onde vieram, não se lembram de como voltaram. Ninguém sabe. Nem mesmo eu, que já voltei duas vezes. E elas voltam sempre com a aparência que tinham quando morreram pela última vez, e por isso muitos preferem se suicidarem ainda jovens. Como sua mãe e Feliciano. Mas não se engane com a aparência dele, ele é tão velho quanto muitos. Quanto a desfazer o feitiço... é o que muitos têm tentado fazer sem sucesso. Porque apenas a bruxa que o lançou poderá desfazê-lo.

- E onde ela está? Não voltou?

-Não. Incrivelmente, Hélida não voltou. Mas o seu corpo está guardado no porão da casa 9. Ela nunca se decompôs.

Ela franziu o cenho, desarmada pela primeira vez diante dele. Trataria de revisitar a casa 9 após sair dali.

-Se vocês sabiam dessa... maldição, por que decidiram me trazer ao mundo? E como minha mãe, que tinha a aparência tão bonita, aceitou ficar com você, um velho encarquilhado e amargo?

Ele não demonstrou estar ofendido; pelo contrário, os olhos dele pareceram estar vendo algo que ela jamais entenderia.

-Nossa história começou há muito tempo, quando eu era um jovem atraente. Sua mãe... uma linda  mulher, sempre. Aguardar a volta dela é tudo o que tenho feito. É a única coisa que me motiva um pouco. E saber que ela ainda me ama, mesmo sendo como sou, mesmo eu não tendo a coragem de segui-la. Quanto a você...

Ele a olhou como se ela fosse um inseto.

-Você não passou de um acidente de percurso. Sua bisavó não queria que você nascesse, e fez de tudo para tentar impedir sua vinda ao mundo, pois não queria que sua linda bisneta tivesse um compromisso com alguém como eu, um simples empregado. Mas Viviane e eu fugimos, e só retornamos quando você nasceu. Mas ela não a trouxe de volta. Contratou pessoas para cuidar de você. Seus pais adotivos. Chegando aqui, nós combinamos de nos matarmos juntos, mas eu, mais uma vez, não tive a coragem. Eu traí a confiança dela. Como das outras vezes.

Eduína levantou-se, afirmando:

-Eu quero ver Hélida. Agora.

Ele olhou-a por alguns instantes, antes de se levantar e pegar um molho de chaves que estava pendurado junto à porta de entrada. Retirou uma chave do molho, entregando-a à Eduína, que aprontamente a segurou, perguntando:

-Você não vai comigo?

Ele riu, ironicamente:

- E por que eu iria?

Ela virou-se de costas para ele e saiu batendo a porta.

A porta de entrada da casa 9 rangeu amargamente quando Eduína a empurrou. Lá dentro estava escuro, e o cheiro de bolor era desagradável. Ela procurou o interruptor, e uma luz fraca acendeu no teto do salão. Eduína olhou em volta e percebeu que aquela deveria ser uma das casas mais antigas da rua. Com certeza, a casa mais antiga que ela já entrara. Mesmo assim, não estava mal cuidada. Talvez um pouco empoeirada.

Ela logo achou o caminho que a levaria para o porão, uma portinhola na cozinha. Eduína sentia como se o tempo todo alguém a estivesse vigiando, e não gostava daquela sensação, mas se queria descobrir alguma coisa, deveria suplantar sua insegurança.

Deparou com um animal morto num canto da cozinha, já ressecado: um rato. Mas apesar de detestar ratos, Eduína simplesmente o ignorou.

Abriu a portinhola e começou a descer vagarosamente as escadas de madeira estreitas que levavam ao porão – e contou todas elas: trinta e nove degraus. O porão era um lugar enorme, cheio de livros, mesas com frascos cheios de líquidos estranhos, esqueletos de animais, plantas ressecadas e muitas teias de aranha. Finalmente, ela encontrou, em um canto, o caixão de vidro onde estava o corpo de Hélida.

Aproximou-se dela vagarosamente, e ao chegar perto, limpou o vidro empoeirado com as mãos e um pano velho que achou por lá, e então deparou com uma das mulheres mais lindas que já vira. Hélida parecia dormir. Tinha cabelos negros e longos, cuidadosamente arrumados em volta do corpo, e sua pele parecia feita da mais rica porcelana. As duas mãos cruzadas no peito eram finas e delicadas, unhas longas pintadas de vermelho vivo. Os lábios pareciam terem sido esculpidos à mão por um competente artesão, e os cílios longos e negros eram encimados por um par de sobrancelhas naturalmente arqueadas. A mulher era uma verdadeira obra de arte!

Eduína percorreu com os olhos o vestido roxo antigo bordado de negro, até os pés descalços e muito brancos. Depois, seus olhos foram subindo devagar, concentrando-se nas pulseiras de pedrarias e nos anéis de rubi ou esmeraldas, até chegar novamente ao rosto perfeito, onde dois olhos verdes a fitavam.

 

 (CONTINUA)





 


terça-feira, 7 de maio de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 6




 PARTE 6 – FAMÍLIA


No dia seguinte, após uma noite praticamente em claro, Eduína decidiu colocar toda aquela história sobre a mesa. Carregou os álbuns de retratos um a um até a sala de estar, colocando-os sobre o sofá. Guiomar esperava por ela de pé, ao lado da mesa da sala de jantar onde o café da manhã tinha sido servido, e Eduína podia ouvir Beatriz limpando o andar superior da casa. As duas mulheres se cumprimentaram com um aceno de cabeça e um bom dia sussurrado, e Eduína sentou-se à mesa. Guiomar serviu-lhe o café em silêncio. 

Após comer, Eduína dirigiu-se à porta, e só então se deu conta de que Félix não estava por perto. Indagou:

-A senhora sabe onde o Félix está?

Guiomar lançou-lhe seu sorriso escorrido, dizendo:

-Oh, acredito que ele esteja por aí, pelo jardim. A senhorita já visitou a floresta? É muito bonita.

Eduína percebeu que a sugestão de Guiomar continha alguma segunda intenção, e sem responder, saiu para o jardim dirigindo-se à floresta que ficava nos fundos da casa. Encontrou Félix distraindo-se com algumas borboletas que voejavam por ali, e assim que ele a viu, correu para perto dela. Eduína ajoelhou-se para festejá-lo, e quando casualmente olhou para o lado, ela viu um pequeno cemitério antigo.

Ela o percorreu vagarosamente, sentindo a atmosfera sombria que a enregelava. Apertou o casaco contra o corpo, tentando conter o frio repentino. Nas lápides, havia fotografias amareladas das mesmas pessoas que ela tinha visto nos álbuns. Eduína, que era boa fisionomista, conseguiu até mesmo lembrar-se dos nomes. De repente, ela deparou com a lápide de sua mãe. Passou a mão sobre a fotografia tentando remover o lodo que crescia sobre ela. De repente, Eduína sentiu a presença de alguém de pé atrás dela, e virou-se rapidamente. 

Era um homem jovem e alto e esguio, aparentando talvez trinta anos de idade, cabelos castanho-avermelhados ondulados e olhos verdes. Vestia um suéter preto de gola alta e calças igualmente pretas. Ele a olhava como se a conhecesse, um sorriso disfarçado entre os lábios, e ela pensou que as pessoas dali (como ela) não eram muito de sorrir. O que ela mais reparou nele, foi o ar de arrogância que ele destilava. Eduína sentiu um arrepio quando os olhos dela se prenderam aos olhos dele, e para manter o controle da situação, pigarreou:

-Quem é você? O que quer aqui?

Naquele momento, Félix correu na direção do rapaz, esfregando-se em suas pernas e sendo acariciado por ele. O rapaz olhou para as pontas dos sapatos caros, esfregou as calças para retirar os pelos do gato e erguendo os olhos novamente, respondeu, apontando em direção à rua:

-Sou Feliciano. Moro na casa 11.

Ela concordou com a cabeça, respondendo: 

-Eu sou...

Ele a interrompeu:

-Eduína. Como vai você?

Eduína não respondeu, nem devolveu o cumprimento. Ao invés disso, mudou de assunto:

- As pessoas são sempre assim por aqui? Invadem as casas alheias?

Feliciano fitou-a longamente antes de responder.

- Não estou invadindo. Costumo vir aqui desde criança para brincar no jardim, bem antes de você aparecer... Sempre morei nesta rua. Aliás... lamento por sua bisavó.

-Eu nem a conhecia, não lamente. E ela me deixou uma fortuna, afinal. Eu nem sequer conheci a minha mãe (ela apontou para o túmulo de Viviane). Ela me abandonou quando nasci. 

Ele concordou com a cabeça.

- Você é sempre tão direta e prática? Talvez o verbo não seja ‘abandonar.’ Quem sabe, ela só estava tentando livrar você de um destino pesado?

-Como assim? O que você sabe de mim? O que sabe sobre essas pessoas?

Ele respirou fundo, e encolhendo os ombros, olhou-a com ar desafiador:

- Absolutamente tudo. Ou quase tudo, talvez. Como já disse, sempre morei aqui e venho brincar nesta casa desde criança. Conheci muito sua mãe – linda mulher. Conheci também a sua avó e sua bisavó quando jovens. E também seu avô, bisavô, tataravós, tios... primos... pai.

Ela riu, confusa pela narrativa dele e pelo ar divertido com o qual ele a encarava; sentiu-se invadida, e retrucou:

-Bisavós e tataravós? Você só pode estar louco! Como pode ter conhecido essa gente toda se a maioria deles morreu antes de você nascer?

Ele franziu as sobrancelhas, demonstrando surpresa:

-Então você ainda não sabe...

Os dois se encararam em silêncio, e ela gostou de sentir que ele estava constragido enquanto via a autoconfiança dele escorregar até o chão. Não, ela ainda não sabia. Mas alguém teria que contar alguma coisa a ela, a qualquer momento.

Ele pareceu lembrar-se de algo de repente, e já se afastando em direção à rua, disse:

- Bem, eu preciso ir agora. A gente se vê por aí. Querendo aparecer, já sabe, estou na casa 11. Sempre estou em casa a partir das 6 da tarde, e moro sozinho.

Ela nem teve tempo de perguntar mais nada, pois ele simplesmente deixou-a de boca aberta, a frase não dita sobre a língua. Ela engoliu suas palavras, olhando para os túmulos silenciosos e cobertos de lodo. Pensou: “Eu tenho tempo.”

Ao voltar para dentro de casa, Felix não a seguiu; desapareceu entre os arbustos que ladeavam o caminho que dava para a floresta, logo atrás das fileiras de túmulos. Ao abrir a porta, Eduína deparou com Guiomar e Beatriz murmurando no sopé das escadas, mas assim que a viram, Beatriz encaminhou-se para a cozinha, e Guiomar, erguendo o rosto e segurando as mãos na frente do corpo, encarou-a:

-Algum pedido em especial para o almoço, senhorita?

Ela dirigiu à Guiomar um olhar frio:

-Pare de me bajular, senhora. Pode me chamar pelo meu nome. Não, não quero nada de especial, façam o que quiserem fazer. 

Guiomar concordou com um aceno de cabeça, e já se preparava para deixar a sala quando Eduína a parou:

- Afinal, quando é que vocês vão me contar o que eu preciso saber? Vão ficar fazendo mistério até quando?

Guiomar pensou que a moça era bastante mau humorada, igual à mãe. Fazendo um gesto para que Eduína a acompanhasse até a mesa da sala de jantar, onde os álbuns de fotografias ainda a aguardavam, Guiomar esperou que a moça se sentasse e pedindo licença, sentou-se na frente dela, pegando um dos grossos álbuns e abrindo-o, virando-o na direção de Eduína:

- Estes são...

Eduína não deixou que ela completasse a frase:

-Meu bisavô, minha bisavó, Viviane,a mulher que me pariu, e este ao lado dela é Lázaro. Mas este outro aqui nessa outra foto, que parece ter vivido há uns cem anos, também se parece com Lázaro. 

Os olhares de ambas se encontraram. Guiomar percebeu o sorrisinho zombeteiro e ao mesmo tempo, curioso de Eduína. A moça tentava demonstrar o domínio da situação, mas estava demasiadamente confusa, e o ataque, para os membros daquela família, era sempre a melhor defesa. Diante do silêncio de Guiomar, Eduína fechou o álbum com força, levantando uma nuvem de poeira:

- Então... eu sou uma pessoa bastante prática, e não gosto de perder tempo. Vai falar ou não?

Guiomar deu um de seus sorrisos, curvando os lábios para baixo:

- A senhorita tem tempo... Eduína. Todo o tempo desta vida, e de outras.

Eduína apertou os olhos; não gostava de metáforas.

-Desembucha, senhora. Ou vou ter que contratar outra pessoa.

Guiomar deu uma sonora gargalhada, jogando a velha cabeça para trás. Eduína sentiu um arrepio percorrer sua espinha, mas piscando para que as lágrimas não caíssem, revelando seu medo repentino, manteve ambas as mãos cruzadas sobre a mesa. Esperou que Guiomar parasse de gargalhar, e seu riso cessou tão de repente quanto começou. 

-Quer saber a verdade, não é, senhorita? A verdade, é que vocês voltam.

Eduína começou a tamborilar os dedos sobre a madeira escura, a ponto de perder a paciência. O tic-tac do relógio cortava o silêncio da sala, mascarando o canto dos pássaros nas árvores lá fora, parecendo aumentar de intensidade e ocupar toda a sala. Ela instintivamente levou as mãos aos ouvidos, cobrindo-os momentaneamente. A velha senhora aproveitou-se de  seu momento de fraqueza e completou:

-Sua família não parece gostar muito do... “outro lado.” Vocês morrem, mas sempre voltam. E morrem de novo, e voltam outra vez. Assim como Beatriz, assim como eu. Assim como Félix. Isso acontece há mais de quatrocentos anos. Ninguém sabe como começou. Alguns pensam que é simplesmente o sangue da família. Mas então as pessoas que vieram trabalhar nesta casa começaram a voltar também. Então concluiu-se que talvez seja o solo, o ar da rua, as árvores, alguma coisa na água... na verdade, ninguém sabe. Talvez uma maldição? Só sei que não nos foi dado o direito de morrer. E nem a você. Em algum momento a partir dos trinta anos de idade,  deixará de envelhecer. Isso pode acontecer aos trinta, aos quarenta e cinco... ou aos noventa, como aconteceu comigo há cento e quinze anos, quando já trabalhava na casa há mais de setenta. Se não ficar doente antes, poderá viver por mais de cem anos sem que sua aparência mude. E a cada cem anos, talvez envelhaça dez. quem sabe, viva até os trezentos? O único porém, é que isso não nos torna imortais. Nós morremos. Adoecemos, como qualquer um, sofremos acidentes ou cometemos suicídio. Mas sempre voltamos. E temos consciência disso.

Eduína murmurou:

-Então a senhora quer me dizer que tem mais de cento e oitenta e cinco anos?

A velha senhora concordou com a cabeça, parecendo divertida com o olhar confuso da moça.

Eduína estava fascinada, e não conseguia tirar os olhos da velha senhora. Sabia que cada palavra que ela proferia não era exagero ou fantasia, mas a mais pura verdade. Ela continuou:

- Esta é a sua primeira vida. Você foi um acidente de percurso, sua mãe não tinha  a menor intenção de tê-la. O mesmo posso dizer a respeito de Feliciano, o velho jovem com quem você conversava lá fora. A mãe dele sofreu um estupro há quase cento e cinquenta anos, e engravidou dele. Naqueles tempos, abortos eram complicados. E a senhorita... bem, sua avó fez de tudo para que sua mãe a matasse antes de nascer, mas ela a teve longe daqui, e deu-a à adoção ao casal que cuidou da senhorita, contanto que cuidassem de você até que pudesse cuidar-se sozinha. Na verdade, eles não morreram naquele acidente. Foi tudo uma grande montagem. Eles estão vivos, quem sabe, em algum lugar do Caribe?

- Meus pais adotivos... estão vivos?

-Sim. 

Eduína ergueu-se da cadeira, e começou a andar de um lado ao outro da sala, enquanto Guiomar permaneceu sentada à mesa. Eduína tentava lidar com aquela enorme quantidade de informação totalmente inusitadas, pensando na cremação dos pais adotivos e no velório, onde algumas pessoas estranhas apareceram, mas não falaram com ela. É claro que os corpos podiam ter sido substituídos por outros antes da cremaçãoela lembrou-se de terem pedido a ela que deixasse a sala de velório a fim de finalizar alguns documentos.

-Bem... você disse que nós voltamos. Então minha mãe vai voltar?

-Sim. Ela vai voltar.

-Quando?

Guiomar encolheu os ombros:

-Difícil prever. Pode ser amanhã, ou daqui a dez anos. Ou quem sabe, hoje mesmo? É imprevisível. A senhorita gostaria de rever seus pais adotivos, ou falar com eles?

Eduína considerou o assunto antes de finalmente responder:

-Na verdade, não. Não sou uma pessoa sentimental, e tenho certeza de que eles também não são. Nunca sentimos amor verdadeiro uns pelos outros, era como se o tempo todo eu soubesse... nós nos respeitávamos, é claro, gostávamos uns dos outros, mas eu jamais soube o que é amar. Não sei o que esse sentimento significa.

A velha senhora colocou ambas as mãos sobre a mesa, traçando com as pontas dos dedos os veios da madeira:

- Todos nesta família têm um certo grau de sociopatia. Alguns mais, outros menos.

Eduína estava fascinada; sentou-se novamente ao lado de Guiomar, chegando o rosto bem próximo dela, que recuou instintivamente:

- E os outros? Onde estão? Como eles voltam?

Guiomar fez um gesto com a mão:

-Por aí. Pelas casas, ou pelo mundo. Mas quando eles ficam muito tempo fora, começam novamente a envelhecer após um ou dois anos. 

-A senhora quer dizer que se eu sair daqui, se eu for embora por muito tempo, volto a ser uma pessoa “normal?” (Ela fez o gesto de aspas com os dedos). 

A mulher concordou com a cabeça, acrescentando:

- Mas mesmo assim, ao morrer, vai voltar. Com a mesma aparência que tinha antes. Você não gostaria de passar a eternidade com a mesma aparência que eu tenho, gostaria?

Eduína percorreu com os olhos o rosto completamente enrugado da mulher, e negou com um gesto de cabeça. Então era por aquele motivo que havia tanta gente idosa em volta dela!

-Geralmente, a fim de não envelhecerem demais, os mais corajosos acabam cometendo suicídio. Como sua mãe. 

-Então ela não adoeceu?

-Sim, ela adoeceu. Na verdade, uma doença mental. 

-Por que Beatriz mentiu para mim sobre minha mãe?

Guiomar deu uma gargalhada:

-Beatriz é muito sentimental, não queria chocá-la, então inventou que Viviane morrera dando à luz a senhorita. Mas na verdade, ela se suicidou. Envelhecer a apavorava.

Eduína pensou que nada que pudessem lhe dizer a chocaria, e não entendeu o gesto de Beatriz. Mas seu pensamento rápido e prático logo levou-a a outras reflexões mais importantes.

Se aquilo era mesmo verdade – e ela sentia eu era – ela poderia viver eternamente, e manter a aparência jovem suicidando-se antes de envelhecer, ou então escolher envelhecer e voltar à vida com a aparência de alguém maduro. Pelas histórias que lhe contaram, sua mãe deveria ter cometido o suicídio algumas vezes. Quem sabe, também Feliciano, o belo jovem que se apresentou a ela naquela manhã? 

Ela precisava pensar, entender tudo aquilo. Virou-se para Guiomar, que a esperava pacientemente sentada à mesa, as mãos abertas sobre a madeira antiga:

- Como podem ter certeza de que eu tenha herdado a condição da família, se fui criada longe daqui e essa condição talvez esteja ligada à permanência das pessoas neste lugar?

Guiomar olhou-a com frieza:

-Ninguém nunca afirmou que a senhorita tem a condição. Mas precisamos da senhorita para que as pesquisas científicas possam ser concluídas e para que possamos nos livrar dessa maldição que nos assola.

Naquele momento, Eduína conseguiu vislumbrar um ar de desespero no semblante de Guiomar.

-O restante dos membros da família não têm mais filhos por decisão própria, e Feliciano e a senhorita são os únicos membros jovens da família.

-Mas Feliciano foi criado aqui!

-Sim. Ele tem cento e vinte anos. Foi criado aqui até os seis anos de idade e depois enviado para uma das propriedades da família fora da Rua dos Ausentes, onde cresceu. Mas quando ele voltou para cá, há alguns anos, de repente começou a envelhecer. Não sabemos se devido ao tempo em que ficou fora, mas ele parece ter conseguido.

-A senhora fala sobre isso como se envelhecer fosse um mérito!

Guiomar ergueu-se da mesa de repente, ficando de costas para Eduína:

- Nunca pense que não morrer jamais seja uma bênção! A vida é cansativa. Após alguns anos, tudo se torna apenas tédio, amargura, e... um enorme cansaço. Deseja-se morrer. Morrer é necessário! E quem sabe, a senhorita ou Feliciano possam ter em sua genética a resposta ao mal da vida?

-Mas e se eu decidir não envelhecer mais, aceitando a “maldição” da família? Não acho que seria ruim demais ser bilionária e jovem para sempre, mesmo que eu precise sair de cena de vez em quando durante alguns anos!

Naquele momento, Beatriz surgiu na sala, assustando a moça ao gritar:

-A senhorita não sabe o que diz! Acredite, a vida precisa ter um limite! Nós nos deixamos envelhecer na esperança de que a morte pudesse nos alcançar, e agora estamos condenados a viver para sempre em corpos envelhecidos, e a voltar a viver neles para todo sempre após dias ou anos! Poucos conseguiram permanecer mortos por muito tempo. Mas existem pessoas que não voltaram antes de cem anos, mas eventualmente, eles voltaram, velhos e acabados! Eu sou um deles, e afirmo que a eternidade não é um presente!


(continua)







segunda-feira, 15 de abril de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

 





PARTE 5 – AS SERVIÇAIS

 

Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao despertar na manhã seguinte e encontrar as janelas da casa escancaradas para uma manhã de sol. Mas já não estava mais na sala de estar: alguém a carregara para o seu quarto. Escutou ruídos no andar de baixo da casa. Espreguiçou-se, sentando-se na cama para encontrar o gato preto, que parecia ter acabado de acordar, deitado na poltrona em frene à sua cama.

Eduína vestiu seus jeans velhos, as botas surradas e uma suéter cinza de gola alta que já tivera dias melhores. Olhou-se no espelho: estava magnífica! A pele brilhava, e os cabelos escovados moviam-se em volta dela quando ela se virava. A roupa não fazia a menor diferença. “O que uma boa noite de sono não faz!”, ela pensou.

Ao descer as escadas para o primeiro andar, seguida pelo gato, notou que a mesa da sala de jantar estava posta para o café da manhã, e um bule fumegante ladeado por croissants perfumados, frutas, bolos e sucos coloridos a esperavam. Estancou ao deparar com as duas mulheres de pé no meio da sala, as mãos cruzadas em frente aos corpos. A primeira, que parecia ser mais nova, aparentando ter setenta anos, aproximou-se:

-Bom dia, Sra. Eduína. Sou Beatriz, a arrumadeira, e ela (apontando ligeiramente para a outra, que aparentava ter algo entre noventa e cem anos), chama-se Guiomar, a cozinheira.

Eduína espantou-se com a aparência envelhecida de Guiomar, mas apenas cumprimentou-as com a cabeça. 

Guiomar era impressionante: alta, magra, muito esguia, tinha olhos verde escuros e nariz adunco, usava os cabelos brancos presos em um coque atrás da cabeça, vestido preto simples sob um avental branco e sapatos de saltos baixos e grossos. Quando sorria, os lábios curvavam-se ligeiramente para baixo. O que era impressionante, é que quando ela falava, sua aparência envelhecida e cansada desaparecia, dando lugar a uma mulher cheia de vida, talvez com sessenta anos. Eduína pensou que ela era bonita, apesar da idade. Já Beatriz, a mais nova, era baixa, gorda e atarracada, tinha cabelos grisalhos encaracolados presos por uma faixa de malha branca, usava um vestido igualmente preto e simples mas sem o avental. Igualmente, logo que se acostumou com ela, Eduína notou que ela talvez não fosse tão velha quanto pensara antes, pois movia-se pela casa vigorosamente, abrindo e fechando janelas, espanando móveis, arrumando as almofadas do sofá, limpando o chão. E todos os seus movimentos pareciam rápidos e eficientes, e ela jamais ofegava, nem mesmo após encher a bandeja com as louças sujas do café e dirigir-se à cozinha.

O café da manhã estava maravilhoso, e ela comeu até se fartar. Surpreendeu-se consigo mesma, já que nunca fora de comer muito, mas aquela comida era a coisa mais deliciosa que já provara, mais ainda do que  a sopa da noite anterior. Mas apesar de ter comido muito, sentia-se leve.

Eduína riu por dentro, imaginando que as duas mulheres fossem, na verdade, duas bruxas, e que tinham mais de trezentos anos de idade. Ela encontrou o olhar do gato naquele momento e podia jurar que ele fizera um sinal afirmativo com a cabeça.

Eduína passou o resto da manhã andando pelo jardim, e também pela rua. As casas pareciam segui-la com os seus olhos de janelas quando ela passava, mas ela não viu ninguém. Ao chegar à entrada da rua, avistou a casinha branca onde Lázaro morava, e viu a fumaça saindo da chaminé.

Também viu o portão de ferro da guarita fechado a cadeado.

Ela tinha pensado em dar uma volta na cidade, mas desistiu; não queria incomodar o homem àquela hora da manhã apenas para abrir o portão para ela. Sendo assim, Eduína caminhou de volta até a casa, sempre seguida pelo gato.

 

-Como ele se chama? – ela perguntou à Beatriz, apontando para o gato. – A quem ele pertence?

Beatriz lançou um olhar carinhoso para o gato, chamando-o para lhe entregar um pequeno petisco:

-Este é o Félix. Está na famíia há muito tempo. Depois que Madame Évora se foi, ele ficou meio perdido... mas parece que gosta da senhora. Encontrou uma nova dona.

Eduína concordou com a cabeça.

-Como era a minha bisavó?

-Madame Évora, sua bisavó, era uma pessoa muito reservada. Não tinha amigos, e não saía de casa jamais. E sua avó Hermínia, filha de Madame Évora, era uma moça muito bonita e cobiçada pelos homens! Quando ela engravidou de sua mãe, ainda solteira, Madame Évora não ficou nada feliz. Mas aceitou o fato. Porém, anos depois, sua mãe faleceu dando à luz você.

-E como minha mãe era?

Beatriz deixou seus olhos se perderem na paisagem à janela da cozinha ao responder:

-Dona Viviane era uma criatura maravilhosa. Belíssima. E seu pai...

Ela estancou a fala de repente, dizendo:

-Preciso ajudar Guiomar a cuidar do almoço agora. Com licença, senhorita.

Eduína ficou parada no meio da cozinha, enquanto as duas mulheres descascavam legumes em silêncio. Félix ronronou, esfregando seu corpo macio contra as pernas dos seus jeans velhos. Ele saiu da cozinha, parando à porta, para ver se ela o seguia. Agora que ela sabia seu nome, era como se os dois tivessem se tornado ainda mais íntimos. Ela foi atrás dele, e ele subiu as escadas da casa, sempre parando no caminho e olhando para trás.

Eduína estava intrigada: agora que descobrira que tinha uma família, ela a perdera. E as pessoas da casa não pareciam gostar de falar sobre eles.

Félix entrou em um dos quartos, cuja porta estava entreaberta. Eduína seguiu-o, e ele parou diante de uma cômoda, olhando para ela e para as gavetas. Eduína abriu a primeira gaveta, encontrando alguns álbuns de fotografias. Sentou-se na cama com alguns deles.

Ela viu as pessoas nas fotos, quase sempre sérias. Algumas fotos eram muito antigas, parecendo ser de outros séculos. As imagens eram fascinantes!

De repente, uma das fotos intrigou-a: a pessoa ali retratada, aparentando ser bastante jovem, parecia-se com alguém que ela conhecia. Mas quem? E como seria possível, se aquela fotografia estava datada em 1890? Eduína olhou para Félix, que a observava em sua pose de iogue. Como ela era muito boa fisionomista, logo identificou a pessoa: aquele homem parecia-se demais com Lázaro! Mas como poderia? Quem sabe, fosse um antepassado?

Naquele instante, o gato pulou da cadeira onde estava, ajeitando-se ao lado dela na cama, a pata direita batendo de leve no álbum, e virando a folha, Eduína encontrou os nomes das pessoas que estavam naquela fotografia. Ela leu devagar, o dedo apontando para as letras desenhadas à tinta preta: Lázaro Schumann. Ao lado dele, havia uma bela mulher que se parecia muito com ela. Ela segurava um lírio, e estava de braços dados com Lázaro. Eduína virou novamente a folha para ler o nome por trás dela: Viviane Siqueira Camargo. Sua mãe.

Mas como poderia ser? Se aquilo fosse verdade, Lázaro Schumann tinha mais de cem anos... com certeza, deveria ser outra pessoa, quem sabe, um antepassado? Mas o que a fotografia de um serviçal, de um simples empregado, estaria fazendo entre as fotos de família?

Eduína apanhou o album pesado e carregou-o para fora do quarto, indo pousá-lo na mesa da sala de jantar. Seu fiel amigo, Felix, seguiu-a, subindo em uma cadeira próxima a dela, sob a toalha da mesa de jantar, e ali permaneceu. Enquanto isso, a moça foi até a copa e praticamente arrastou Guiomar pela mão, já que Beatriz não estava por lá. Guiomar era ligeiramente mais alta do que ela, e deixou-se guiar sem tentar impedi-la, mas mantendo sempre seu ar altivo e distante. Eduína abriu o álbum, apontando a foto de Lázaro e Viviane com o dedo:

- A senhora poderia me explicar quem são essas pessoas, por favor?

A velha senhora deixou um ligeiro sorriso escorrer pelo canto dos lábios, olhando a moça bem dentro dos olhos:

-Se a senhorita já sabe, por que pergunta?

Eduína sentiu algo estranho; apesar do absurdo da situação, era como se aquilo tudo de repente fosse normal e fizesse sentido para ela. E repentinamente, ela compreendeu que aquela era sua estranha família, e que Lázaro era seu pai. Também intuiu, corretamente, que ela mesma teria uma vida tão longa quanto todos eles. E ao invés de sentir espanto por tudo aquilo, foi como se todos os pingos caíssem em seus respectivos “is”. Enquanto isso, Guiomar, virando-se de costas, caminhou de volta à copa.


(continua)



 

A RUA DOS AUSENTES - parte 10

  CAPÍTULO 10 –   TODAS AS RESPOSTAS?   Eduína recostou-se na poltrona, supondo que suas perguntas demorariam para serem respondidas...