sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O DOM DE ESQUECER - parte I






Uma tarde linda, entre cores avermelhadas que se misturam sob um céu matizado de laranjas, amarelos e rosados, como se as cores tivessem sido pinceladas por algum artista habilidoso sobre uma tela azul imaculada. O burburinho das ruas, os cafés cheios de pessoas de ternos ou camisas sociais de mangas arregaçadas, carregando pastas, mostrando que estão relaxando após um dia de trabalho. Os primeiros faróis de carro se acendendo e transformando a paisagem urbana em uma miríade de cores brilhantes, enquanto o azul do céu vai, aos poucos, se transformando em uma caixa de veludo salpicada de diamantes. Nos pontos de ônibus, as pessoas aguardam, olhando ansiosamente o horizonte da avenida, tentando enxergar os letreiros dos ônibus que se aproximam para saber se finalmente, poderão embarcar e ir para suas casas, onde calçarão seus chinelos, afagarão seus cachorros e se sentarão nas salas, partilhando as novidades do dia enquanto ralham com as crianças para que façam silêncio na hora do telejornal começar.

E enquanto tudo isso acontece, sinto tua mão na minha. Tudo parece certo, tudo está em seu lugar quando o meu lugar no mundo está perto do seu. Penso: será que essas pessoas de olhares cansados sabem o quanto tem sorte, simplesmente por poderem ter um lugar para voltar no final ao cada dia? Será que elas olham para os rostos que os saúdam quando chegam em casa, e conseguem enxergar a beleza e a bênção de suas presenças? 

Há alguns dias, passei por um mendigo, e o que mais me chamou a atenção, não foram suas roupas sujas ou seu cabelo emaranhado, ou o fato de que ele mancava; é que nossos olhares se cruzaram por alguns instantes, e os olhos dele gritavam solidão. Era um perfeito estranho para mim, mas tinha a sua história escrita nas páginas deste mundo, uma história que eu não conhecia, que a maioria das pessoas não conhecia - e nem desejaria conhecer. Me perguntei o porquê de ele estar ali, naquela situação. Senti-me estranha, pois não senti nenhuma piedade por ele, e sim, uma imensa curiosidade, coisa que antes de tudo acontecer, eu jamais havia sentido em relação a qualquer pessoa. 

Sempre fui do tipo de que vive e deixa viver, sem me perder em questionamentos holísticos sobre a origem da vida, a causa das acontecimentos ou o que há depois da morte. Nunca me demorei muito nos rostos das pessoas, apenas o suficiente para identificar suas características físicas a fim de reconhecê-las ou lembrar-me delas  mais tarde. Para mim, cada um tinha seu próprio caminho a seguir, e deveria fazê-lo de modo a não perturbar os caminhos dos outros (principalmente, o meu). Ser feliz faz com que a gente se torne um tanto egoísta, com o tempo. Não é que eu não gostasse de ver as outras pessoas felizes. Não; só não me deixava afetar pela infelicidade delas, quando era o caso. Me afastava sempre que via alguém com cara de quem estava triste ou com problemas. 

Uma tarde linda, e tua mão na minha: isso era tudo o que eu mais precisava para sentir-me feliz. Quando o dia estava difícil demais, eu me lembrava de você, e que daqui a algumas horas, estaríamos juntos novamente, e tudo ficava mais fácil. Enquanto caminhamos de mãos dadas, furando anonimamente o vai e vem da multidão que nem sequer se dava conta da nossa existência, eu olhei para o lado e vi seu rosto. Reparei em cada uma das suas pintinhas. Vi seu cabelo sendo agitado por uma brisa repentina, e o movimento das suas bochechas enquanto mascava o chiclete de hortelã. Vi seus olhos focados no caminho a nossa frente, com seu ar sempre otimista. Vi a gola um pouco puída de sua camisa de malha azul, aquela que você mais gostava de usar, pois dizia que era "macia."

Vi seu rosto virar-se na minha direção, e você sorriu para mim. Senti sua mão apertando a minha, e acordei, para uma manhã cinzenta, fria e solitária, como os olhos do mendigo. 

Sobre a mesinha de cabeceira, o remédio da manhã. Ele me deixava um pouco tonta e como que anestesiada, e eu não gostava muito de tomá-lo, mas minha mãe fazia questão, e sempre verificava a cartela para ver se os comprimidos estavam sendo usados. Alguns eu conseguia jogar fora, mas um dia, ela percebeu o que eu estava fazendo após revirar a lixeira do meu quarto, e desde então, passou a fazer-me tomá-los em sua presença. Eu não conseguia entender esta mania que minha mãe tinha de querer curar as dores da alma através de remédios, pois para mim, eles não tinham nenhum efeito, a não ser colocar-me em um estado de semiletargia no qual a dor não passava, apenas tornava-se mais lenta.

Um dia, ela tentou apagar os arquivos do meu computador. Aquilo gerou uma grande briga entre nós, na qual eu gritei com ela e a empurrei, ganhando forças que eu nem sei de onde tirei, e proibindo-a de remexer meus arquivos de forma tão veemente, que ela chegou a chorar, e não se atreveu a discutir comigo. Não me arrependi por minha rispidez. Ela não tinha aquele direito. Conseguiu apagar algumas fotos apenas, que eu recuperei na lixeira, mas só o fato de pensar que ela poderia ter apagado, varrido para o nada, grande parte das minhas melhores lembranças, encheu-me de fúria e pavor. Definitivamente, ela não tinha aquele direito, e quando contei a papai, ele concordou. Já bastava me fazer engolir aquelas pílulas horrorosas, e me proibir de tocar no nome de Fred. 

Eu chegava em casa da escola e me trancava no quarto, para ficar longe dela e de seu blá-blá-blá doméstico, no qual eu não estava interessada. Minha mãe tem a mania de fingir que as coisas desagradáveis não existem. Pensando, bem, eu antes era como ela, exatamente como ela. Minutos depois que eu chegava, ela começava a bater na porta: "Nina, fiz aquele frango que você adora! Vamos almoçar e dar uma volta no shopping? Você precisa de vestidos novos." E eu pensava: "como ela pode sequer pensar que eu esteja disposta a dar uma volta no shopping e comprar vestidos novos? Só fazem três meses!" Assim, eu gritava: "Me deixa em paz!"

Ela insistia mais um pouco, e eu jurava que tinha comido um sanduíche na escola, e ela me deixava em paz por algum tempo - até a hora de tomar o próximo remedinho. 

Minha vida tinha se tornado um tormento. Minha mãe não percebia que quanto mais ela se empenhava em me fazer esquecer, mais me fazia lembrar. Nem mesmo quando o Dr. Rodrigo assegurou-lhe que é preciso viver o luto, ela deixou-me em paz para viver o meu. Ela respondeu ao Dr. Rodrigo rispidamente, dizendo que o estava pagando para me ajudar a esquecer, e não para me fazer lembrar. Eu fiquei ali, boquiaberta, escutando ela falar de mim como se eu não estivesse presente, e ao mesmo tempo, insultando Dr. Rodrigo, que era sempre tão gentil. O rosto dele permaneceu impassível, como o de alguém acostumado àquele tipo de reação.

Minha mãe achava que as coisas tinham se complicado mais ainda porque a morte de Fred acontecera  alguns dias antes da separação dela e de papai. Na verdade, eu estava aliviada por não ter mais que atravessar aqueles jantares de família constrangedores, nos quais ela sorria e agia como se estivesse tudo bem entre eles, temperando a comida com suas conversas casuais e fingindo crer  que papai não tinha outra há mais de dois anos, quando até eu sabia, pois já tinha visto os dois juntos algumas vezes na cidade.

Foi após o meu bolo de aniversário de dezesseis anos, que papai entrou em meu quarto uma noite e me disse que estava indo embora. Dizia que sentia muito, mas queria ser feliz. Viver com minha mãe estava cada vez mais difícil, pois ela queria sempre controlar tudo, e ele já não aguentava mais. Perguntei-lhe sobre a outra mulher, e ele ergueu as sobrancelhas tentando desconversar, mas quando insisti, dizendo não ser mais criança, ele abriu um sorriso tímido e me disse que achava que poderia ser feliz com Cátia (era o nome dela). Eu sabia que Cátia era mais jovem e muito bonita. Bem mais bonita que minha mãe.


Mas ele não foi embora naquele dia, ainda ficou mais algum tempo, pois estava procurando um apartamento para viver com sua nova mulher.



Fred escutou-me com toda atenção quando contei-lhe sobre a separação dos meus pais, mas manteve-se neutro. Ainda disse que talvez eu estivesse sendo dura demais com mamãe: "Cada um enfrenta seus problemas como sabe, Nina." Mas eu mudei de assunto, pois não queria estragar aquela noite maravilhosa e perder a trama do filme porque estávamos falando sobre a vida de meus pais. 

Um dia, quando acordei numa manhã de sábado, papai já não vivia mais conosco. Na mesa do café, mamãe estava calada e pensativa. Eu queria que ela dissesse alguma coisa. Seria possível que ela iria continuar fingindo que papai e ela estavam bem, e que ele tinha apenas saído para comprar o jornal? Resolvi arriscar, e perguntei-lhe sobre papai, fingindo que não sabia onde ele estava. Ela me olhou como se tivesse notado que eu estava ali apenas quando eu falei, e respondeu: "Ele foi embora. Decidi que seria melhor se nos separássemos. Mas a vida segue, e prefiro que você não se envolva nesses assuntos, ele continua sendo seu pai." Eu mal pude acreditar no que acabara de ouvir! Ela agia como se a decisão tivesse sido dela, quando eu sabia mais do que ninguém que se não fosse por ele, mamãe poderia continuar naquele jogo de faz-de-conta o resto da vida!

Nos dias que se seguiram, ela continuou a fazer compras e preparar as refeições, dando ordens à Diana , nossa diarista, como se estivesse tudo bem. Mas eu a via, poucos minutos antes do jantar, olhando ansiosamente pela janela como se esperasse papai voltar a qualquer momento, sentar-se à mesa como sempre e dizer que queria continuar a viver com ela, sem que houvesse necessidade de explicações ou perdão. É claro, isso nunca aconteceu.


Eu aprendera com minha mãe a lição do esquecimento. Tinha  a habilidade de colocar de lado qualquer experiência que pudesse ser dolorosa para mim. Solidariedade era uma palavra que nem existia muito em meu vocabulário. Minhas amigas me adoravam e me consideravam (eu pensava) a pessoa mais legal e divertida do mundo, mas sabiam que eu não era apropriada para ouvir problemas ou dar conselhos. Eu nem sequer percebia o quanto aquela atitude tornava meus relacionamentos superficiais. Eu não sabia o que elas falavam de mim quando eu não estava presente. Fiquei sabendo por acaso, após a morte de Fred, quando ia entrar no banheiro e me detive ao escutar as vozes de Margô e Frida; a primeira dizia: "Agora talvez ela entenda o que é sofrimento. Sinto muito por Fred, mas sinceramente, quero que Nina se dane. Ela nunca foi solidária com nenhuma de nós. Nem quando meu irmão sofreu um acidente e eu a procurei; ela disse que adoraria ir ao hospital comigo, mas tinha hora marcada na manicure! Dá pra acreditar?" Frida concordou, e acrescentou: "Eu tenho pena dela. Com aquele ar superior, vai acabar sozinha, agora que não tem mais Fred. Não sei como ele nunca percebeu o que ela é." 

Eu não entrei no banheiro; ao invés disso, corri para longe. Sentei-me atrás de uma árvore de tronco grosso, em um lugar afastado no pátio da escola, e vomitei. Jamais pensei que era aquilo que pensavam de mim, e admitir que elas tinham razão foi a parte mais difícil. A partir daquele dia, eu ficava sempre sozinha nos intervalos, isolava-me para me proteger, pois não aguentava as trocas de olhares entre elas. Depois da morte de Fred, ninguém me telefonou para perguntar como eu estava, e nem mostrou qualquer tipo de solidariedade quanto ao meu luto. E agora eu sabia porque, e bem que eu  merecia. E sabia que a culpa era toda de minha mãe, aquela rainha da frieza, que me ensinara a ser como ela.

(continua...)




2 comentários:

  1. Olá, querida Ana
    Quando os olhos gritam solidão.... tudo vai muito mal... mas sempre é tempo de recomeçar...
    Conheço alguém (uma mãe também) que é a rainha da frieza... e muito se herda quando é assim...
    Bjm fraterno

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  2. É tão difícil Ana, julgar a solidão!
    Muitas vezes, as pessoas se isolam, por não ter outra opção!
    Nina aprendeu com a mãe, que deve ter tido alguma razão para ser assim. Pessoas muito sensíveis se envolvem demais e se desgastam por conta dos outros, precisam de defesa, acredito que a defesa seja a frieza, para não se machucar.
    Esta história promete, obrigada, até o próximo capítulo.
    Abraços carinhosos
    Maria Teresa

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