terça-feira, 24 de novembro de 2015

O DOM DE ESQUECER - PARTE IV






Se tive medo? Sim, o tempo todo. Mas eu precisava fazer alguma coisa com a minha vida, ou com o que restava dela. Acho que andei durante umas três horas, sem direção certa, apenas seguindo reto. Cheguei na saída da cidade e já clareava. Dirigi-me automaticamente para a rodoviária.  Os ônibus interestaduais estavam nos terminais, e algumas pessoas já esperavam para entrar. Comprei uma passagem no guichê com um funcionário sonolento, que nem olhou para a minha cara. Ele perguntou:  "Para onde?" Eu disse o primeiro nome que me veio à cabeça, ou seja, Sinai (uma cidadezinha que ficava a umas seis horas dali). "Janela ou corredor?"  Eu disse que queria a janela, peguei a passagem, e quando cheguei no terminal, o embarque já tinha começado. Eu era uma dos cinco passageiros. Eu já tinha ouvido falar daquele lugarejo, uma cidade bem pequenina e bonitinha que tem muitos sítios e comunidades hippies que cismavam em não perceber que os anos sessenta já tinham passado há muito tempo. A principal fonte de renda era o turismo nas muitas cachoeiras, o cultivo de mel de abelhas  e o artesanato.

Eu sabia daquilo tudo porque alguns amigos da escola me disseram que já tinham acampado por lá. Um deles tinha sido perseguido pelas abelhas e ido jogar-se em um riacho para proteger-se. Ele contava a história rindo muito, mostrando as marcas das picadas. Era amigo de Fred. Fred...

O peito doeu quando me lembrei dele novamente. Eu estava indo embora. Ia completar dezessete anos, em oito meses e estava fugindo de casa. Tinha trocado minha cara, cortando e pintando o cabelo (com certeza, espalhariam cartazes com fotos minhas de cabelos loiros e longos, e os meus agora eram bem curtos e castanho-dourados). Quanto mais o ônibus se afastava, mais longe eu ficava da vida que tinha tido junto a Fred, durante os três anos em que ficamos juntos. Ao mesmo tempo, eu pensava: teria agido somente pela vingança, para vingar-se de minha mãe? O que faria dali por diante? O que meus pais fariam, quando soubessem da verdade? Será que minha mãe já tinha ido ao meu quarto e dado pela minha falta?

Fred, Fred, Fred... eu olhava para fora, para a paisagem onde um sol dourado começava a se espalhar sobre tudo, e fingia que ele estava ao meu lado. Eu perguntava a ele: "E agora, Fred, amor da minha vida, o que eu faço?" Ele me abraçava e dizia que estaria sempre ao meu lado, que eu não deveria me preocupar tanto, pois ele nunca me deixaria sozinha. Ele me fazia deitar a cabeça no ombro dele, e me acariciava o rosto, e eu sentia o seu perfume, seu cheiro maravilhoso, o toque gentil e macio de seus dedos em minha pele. E tudo ia ficando melhor... o medo ia passando... ele disse que estaria sempre comigo, e era só o que eu precisava.

Quando acordei, senti que seus dedos estavam entrelaçados aos meus, mas não abri os olhos. Eu conseguia escutar o motorista do ônibus conversando com um dos passageiros, e os carros que passavam por nós. Sentia o calor do sol no meu rosto, entrando pelo vidro da janela, e o toque das almofadas do banco nas minhas costas. Sentia o cheiro do asfalto que entrava pela greta. E a mão segurando a minha, apertando a minha, me fazendo sentir segurança. Ele apertou minha mão mais forte, e depois retirou a sua bem devagar. Abri os olhos, e não havia ninguém ao meu lado. 

Quando o ônibus finalmente chegou à Sinai, já eram quase onze da manhã. O motorista estacionou, abriu a porta e todos os passageiros saíram, inclusive, eu, por último. 

Fiquei parada no meio da estação rodoviária, vendo as pessoas que seguiam cada qual o seu caminho, mas eu não sabia para onde ir, não conhecia ninguém. O motorista veio andando na minha direção, e eu tremi: será que ele estava desconfiado de alguma coisa, ou será que minha foto já estava por aí, e ele tinha me reconhecido? Fiquei parada olhando para ele, enquanto ele dizia:

"O rapaz que estava com você mandou dizer que está te esperando para o café no Tavinho's. Ele estava apertado para ir ao banheiro, e foi primeiro."

Fiquei visivelmente confusa, e não consegui responder. Que rapaz estava comigo? De quem ele estava falando? Ele interpretou meu silêncio como uma pergunta, e apontou o caminho, onde ficava o Tavinho's - uma lanchonete do outro lado da rua. Fui para lá correndo e olhei em volta, mas não vi ninguém. Sentei-me em uma das mesas e pedi um café e um pão com manteiga. Lembrei-me que não havia trazido nenhum remédio, o que deixaria minha mãe ainda mais furiosa. Quando a garçonete, uma moça nem bonita e nem feia, com cara de cansada, trouxe meu pedido, perguntei-lhe se ela conhecia alguma pousada, e ela me indicou A Leona's. Pensei: Será que tudo aqui tem um apóstrofo no nome? E ela completou: "Mas se você não se importa em ficar num quarto com mais pessoas, tem o Paulo's, logo depois da esquina." Preferi ficar na Leona's, e fui andando à pé na direção que ela me indicou. Eu estava usando um jeans velho, tênis, camiseta marrom de mangas longas e um chapéu. Não chamava muita atenção num lugar onde a maioria dos habitantes pareciam-se com hippies que tinham saído de um livro de história dos anos sessenta ou setenta. 

Já tinha caminhado alguns metros, quando a garçonete - seu nome era Gilda - veio correndo atrás de mim: "Você esqueceu isto." Peguei o envelope amassado que estava na mão dela, e já ia dizer que não era meu, quando reconheci a letra: era de Fred.

Atônita, abri-o: era uma carta que ele tinha escrito para mim há dois anos, no nosso primeiro aniversário juntos. Como ela tinha ido parar ali? Todas as cartas de papel - três, ao todo, uma para cada aniversário nosso - que Fred me escrevera estavam trancadas em uma caixa de madeira, no sótão de minha casa! Enquanto eu caminhava devagar, reli a carta:

"Oi, lindinha! Hoje é nosso primeiro aniversário (mas é claro que é, e por isso estou escrevendo para você, mas por que eu ia te escrever uma carta ao invés de mandar um e-mail? Já explico: meus pais mandavam muitas cartas um para o outro quando namoravam, e algumas delas eles leram para mim. Achei legal, e pensei: por que não?) Bem, daqui a muitos anos, quando estivermos ambos bem velhinhos, poderemos ler estas cartas para os nossos netos. Mas peraí... acabei pulando uma parte importante: antes de termos netos, precisamos ter filhos, e eu terei um enorme prazer em fazê-los junto com você. E quem sabe, leremos estas cartas para eles antes de lermos para os nossos netos? Veremos. 

Ah, tanta bobagem... sou péssimo em escrever cartas, amor. Mas só quero te dizer que você tem sido a pessoa mais importante da minha vida e que eu te amo muito, de verdade verdadeira. Você nunca vai se livrar de mim. É destino, conforme-se!" 

Assim, Fred despedia-se. Percebi, após a segunda carta, que ele nunca assinava o nome ou colocava data nas coisas que escrevia, e que era adepto dos parênteses com textos longos e das coisas sem sentido que, apesar de não dizerem nada, diziam tudo. Os envelopes eram sempre baratos, parecendo reutilizados, e ele escrevia: "Para minha lindinha."

Dobrei a carta e coloquei-a na mochila. 

Quando cheguei ao Leona's, vi que não havia muitos hóspedes. Era uma casa grande e antiga, branca de janelas azuis marinho. Havia uma trepadeira entrelaçada nos madeirames da varanda, de onde brotavam  flores lindas e perfumadas cujo nome eu não sabia, mas que mais tarde, descobri serem jasmins.  Comentei o fato da pousada estar vazia, e Anna, a  recepcionista, uma menina aparentando ter a minha idade  e  muito simpática, foi logo explicando: "É porque você veio fora da temporada. Isso aqui ferve no inverno!" Me entregou a chave, explicou o horário do café e me indicou as escadas de madeira que me levariam ao meu quarto. Fui subindo as escadas do casarão antigo, e deparei com um corredor cheio de portas. Meu quarto era o de número 100. Girei a chave na fechadura e entrei, trancando a porta atrás de mim. Larguei a mochila em um canto. Mentalmente, fiz as contas e vi que o dinheiro que eu tinha daria para mais ou menos um mês de hospedagem - se eu economizasse bastante e não almoçasse todos os dias. Quem sabe, eu conseguiria um emprego na cidade, lavando pratos ou algo assim?

"E agora?", pensei. Pulei na cama, testando as molas, e vi que eram firmes e boas. O quarto era pequeno mas aconchegante, e estava limpo. Gostei das cortinas de renda branca e do tapetinho feito de tiras reaproveitadas, de várias cores, que estava junto à cama. O banheiro era minúsculo, mas estava limpo, tinha um box que não dava espaço nem para abrir os braços, mas eu não precisava de mais nada.

Coloquei meu telefone para recarregar, mas não sem antes retirar o chip e colocá-lo na gaveta da cabeceira. Vi que havia duas mensagens de mamãe, que eu não li. Não queria ser importunada por ninguém. Abri as cortinas, e vi que havia um pinheiro bem na direção da minha janela. Era lindo, e tinha muitos pássaros cantando nos galhos. Deitei-me na cama macia, a cabeça apoiada no travesseiro enorme, e meus olhos foram se fechando à medida que eu descobria que, há muito tempo, não me sentia tão em paz. 

Você estava sentado comigo à mesa do café. Me dizia que tinha trazido a carta para que eu nunca me esquecesse de que estaria sempre ao meu lado, que eu nunca estaria sozinha, mesmo quando você parecesse estar ausente. Aproximou seu rosto do meu, e eu fechei os olhos para receber o seu beijo, que você depositou suavemente sobre minha boca. Eu queria muito mais. Você riu. De olhos fechados, eu sabia que você estava rindo. E então nós estávamos no quarto , meu quarto no Leona's, e você me abraçou, puxando meu corpo para bem perto do seu. Eu queria mais, mas você sussurrou em meu ouvido: "Sshhh... silêncio!"

Então, você me repetiu que trouxera a carta para me lembrar, para que eu nunca me esquecesse de que você estaria sempre comigo, sempre... mesmo quando parecesse estar ausente.



(continua...)

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