quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O DOM DE ESQUECER - PARTE V






Dormi, e quando acordei, o quarto estava bem escuro, e chovia muito pesado. Meu estômago roncou, mas apesar da fome, eu sabia que não conseguiria comer nada, pois sentia muita ansiedade, e a boca estava seca. Fui ao banheiro e tomei água da torneira, escovei os dentes. Olhei meu novo rosto no espelho e resolvi modificar minhas sobrancelhas, que eram cheias, arqueadas e marcantes. Peguei a pinça na mochila, e deixei-a bem mais fina que o normal. Ensaiei afinar os lábios com a ajuda de um batom marrom-claro sem brilho, e o resultado foi surpreendente: aquela pessoa ali no espelho não era eu. Achei melhor escolher outro nome também, e criar uma história para mim, caso alguém perguntasse. E é claro, durante o dia continuaria a usar meu chapéu e óculos escuros, se necessário.

Achei que meu novo nome seria Fernanda. Sempre gostei deste nome. Eu era do Rio de Janeiro, e estava passando férias pela primeira vez sozinha, pois descobrira que meu namorado estava tendo um caso... não; não gostei daquela ideia. Eu estava passando férias sozinha porque tinha perdido meus pais, que me deixaram uma herança e... não; aquela história também não estava boa, exagerada e dramática demais.

Finalmente, decidi: Meu nome seria Fernanda, ou Nanda para os íntimos; eu tinha dezoito anos recém-completados, vinha do Rio de Janeiro (morava na Barra da Tijuca) e estava passando férias sozinha pela primeira vez porque queria. Estava cansada de viajar com meus pais todo ano. Não gostava muito de conversar com estranhos, e era de falar bem pouco.

Meu estômago roncou de novo. Achei melhor ir procurar alguma coisa para tentar comer. Não comia desde cedo. Não tinha almoçado, e sequer terminara meu café com pão no Tavinho's. Tranquei a mochila no armário e joguei a chave dentro de um par de sapatos, que deixei em baixo da cama. Peguei um pouco de dinehiro e coloquei no bolso. Desci as escadas, e escutei música de violão, gaita e gente cantando. Anna ainda estava na recepção, e perguntei se ela sabia onde eu poderia comer. Anna me disse que a pousada servia um caldo toda noite, com croutons e fatias de pão, e que eu podia escolher entre abóbora com gorgonzola ou creme de ervilhas. Ela me levou até a cozinha, que era um espaço grande, cheio de mesinhas, onde meia-dúzia de jovens jantava, e dois deles tocavam a música que eu estava ouvindo. Sentei-me em uma mesa no canto, me sentindo observada. Acenei para eles, mas procurando não ser simpática demais,  e fiquei observando o ambiente.

Era self-service, por isso levantei-me e peguei um pouco do caldo de abóbora com gorgonzola, uma fatia de pão e um copo de suco de cajú de garrafa. Sentei-me para comer, a cara enfiada no prato para não ter que olhar para ninguém. Mais uma vez, imaginei que Fred estava ao meu lado, me dizendo para erguer a cabeça. Ele também comentou sobre meu novo corte de cabelo, e zombou de minha nova aparência. Eu ri disfarçadamente. Fred pegou a colher e provou do meu caldo, fazendo careta e dizendo que detestava gorgonzola. Eu sabia. Depois, ele ficou muito sério, e me olhando bem fundo, disse: "Você precisa descobrir uma maneira de voltar a ser feliz. Não de ser a mesma, pois tudo o que aconteceu mudou você. Sua vida mudou, seus pais se separaram, eu morri, e você descobriu algumas coisas importantes, como por exemplo, o que suas amigas realmente pensam sobre você, e porque... agora, precisa encontrar um jeito de se readaptar, mudar suas atitudes em relação às pessoas e seguir em frente." 

Eu disse que não conseguiria sem ele. Precisava dele. Ele não tinha o direito de morrer e me deixar tão sozinha. Ele era a única pessoa que me amava e me entendia, mesmo sabendo o quanto eu era besta e metida. Uma metida a besta. Ele sacudiu a cabeça, e ainda sério, respondeu: "Eu sempre vou amar você assim, ou seja como for, pois eu já te amo há mais tempo do que você imagina. Já nos conhecemos antes, Nina, mas você não se lembra... " aquilo me deixou confusa: perguntei, 'Como assim nos conhecemos antes?' Ele disse que um dia eu ia entender tudo, mas que não era importante agora. 

Eu estava chorando quando ergui a cabeça, e mexia o caldo já frio e quase intocado com a colher. Dei com um menino me olhando. Ele tinha cabelos compridos e loiros, e vestia uma camisa de xadrez, de flanela que eu achei o cúmulo da cafonice. Era bonitinho, mas a antiga Nina jamais olharia para ele com interesse, pois a aparência dele não era 'cool.' Ele não parava de me olhar mas antes que ele viesse com ideias de me perguntar qualquer coisa, peguei o pão, dei uma duas ou três colheradas no caldo, bebi o suco todo de uma vez só e voltei correndo para o quarto. Deixei para trás o som alegre da música de Bob Marley que eles começaram a tocar. 

No dia seguinte, a noite tempestuosa tinha cedido lugar para uma manhã radiante de luz, com direito a passarinhos cantando na janela, e o perfume do pinheiro entrando pelo quarto. Tinha sido uma noite sem sonhos, pela primeira vez desde que Fred morrera, e fiquei preocupada, apavorada diante da possibilidade de que os sonhos tão reais que eu vinha tendo com ele fossem apenas efeitos dos remédios, que eu já não tomava há dias. Mas lembrei-me da noite anterior, na cozinha da pousada, e fiquei mais tranquila. Era só fechar os olhos, e ele estaria comigo. Ele prometera.

Joguei as cobertas para o lado e fui tomar um banho, o primeiro em dois dias. No boxe do banheiro, resquícios escuros da tinta de cabelo de minha mãe escorreram pelo ralo. Sequei os cabelos curtinhos com a toalha, ajeitando-os com as mãos, e gostei do resultado. Nada de escovas demoradas sob secadores superquentes. Nada de horas e horas na cadeira do cabeleireiro, renovando o reflexo das madeixas. Cabelos curtos e escuros eram uma liberdade que eu nunca conhecera, e estava gostando.

Desci para o café, mas achei melhor tomá-lo no Tavinho's, pois não queria reencontrar o garoto da noite passada, que não parava de me olhar. Antes de sair, resolvi conversar com Anna, algo que eu jamais faria antes- puxar assunto com estranhos se não tivesse nenhum interesse pessoal neles - e Anna me recepcionou com um sorriso enquanto tirava o pó do balcão. 

Perguntei há quanto tempo ela trabalhava ali, e ela me disse que a pousada era de uma tia, que estava fora da cidade e dera-lhe o emprego há seis meses. Ela disse que gostava do contato com as pessoas, que conhecera muita gente interessante com os quais mantinha contato pela internet, e que alguns deles já tinham voltado a Sinai para revê-la. Fazia amizades facilmente. Pensei nos amigos que eu achava que tinha, e com os quais nunca me importava de verdade, e da distância deles na hora em que mais precisei - a mesma distância que eu estabelecia entre mim e alguém que estivesse em dificuldades. Pensei também que talvez Anna tivesse alguma coisa importante para me ensinar. Quem sabe, ela poderia me ensinar a ser humana?

Ficamos conversando mais alguns minutos, ela sempre me chamando pelo nome que eu assinara na ficha, ou seja, Fernanda, e eu me senti confortável por não ser mais a Nina antiga, e porque ninguém ali sabia quem eu era, ou conhecia meu passado, as coisas que eu tinha feito, meu egoísmo e superficialidade.

Quando cheguei ao Tavinho's, a lanchonete estava cheia, e fui tomar café no balcão. Fiquei surpresa ao ver que o rapaz atrás do balcão era o mesmo da noite anterior na pousada. Quando me viu, ele me atendeu de maneira simpática, mas eu me mantive distante. Ele de repente esticou a mão sobre o balcão e se apresentou: "Sou o Tavinho." Aquela atitude me desarmou, e pude sorrir e dar meu novo nome, apertando a mão dele. Perguntei-lhe se ele cuidava da cozinha da pensão, e ele me disse que gostava do caldo que eles serviam, e que ia lá quase sempre, ele e Anna eram amigos, mas que não trabalhava por lá.  Depois ele me perguntou o que eu faria após o almoço, e eu me fechei novamente.

Não estava pronta para  aquilo. Não queria. Não podia, não ia aguentar. Portanto, disse que tinha um compromisso, e pela cara dele, vi que não acreditou em mim, mas não discutiu.

 Anna me convidou para ir até sua casa após o expediente, e aceitei. Saímos juntas e fomos caminhando e conversando sobre coisas de escola. Quando estávamos nos aproximando da casa, Anna apontou-me uma casinha branca, que ficava por trás de um portão baixo de ripas de madeira. A casa era muito simples. O quintal era de terra, pequeno, com árvores frutíferas que Anna me apontou (parecia orgulhosa delas) e me apresentou como sendo a goiabeira, a jabuticabeira (coberta de frutos; me encantei, jamais imaginara como seria uma jabuticabeira), a pitangueira e o pé de limão. Havia alguns cães passeando pelo quintal, que recepcionaram Anna com festinhas e latidos alegres. Fiquei com um pouco de medo, mas ela me convenceu a acariciá-los, e eles logo tornaram-se amigáveis.

A casa de Anna era de uma simplicidade tocante, que eu nunca experimentara. Muito diferente das casas às quais eu estava acostumada, pensei. Era a primeira vez que eu entraria em uma casa daquelas, e fiquei um pouco apreensiva - resquícios da educação distorcida que recebera.

Antes de abrir a porta da sala, Anna segurou meu braço, dizendo: "Fernanda... devo prevenir você sobre minha mãe... ela às vezes é meio-esquisita." Eu ri alto: "Ah, é porque você não conhece a minha!" Ela riu também, e completou: "Não é isso... é que minha mãe é médium, e às vezes fala coisas estranhas, mas não preste atenção." Concordei com a cabeça, desta vez bem séria. Entramos.

A sala era pequena. Havia um sofá de três lugares, uma estante velha e lascada com alguns livros e um televisor antigo, uma cadeira em um dos cantos e um tapete artesanal no meio do cômodo. As paredes eram pintadas de azul claro, e havia uma imagem de Cristo, um rosto, na parede oposta a da TV, atrás do sofá. As cortinas da única janela, que dava para a frente da casa, era de renda branca barata. Mas havia uma coisa naquela pequena casa que eu nunca tinha visto ou sentido nas casas que eu estava acostumada a frequentar: paz. Logo, a mãe de Anna veio da cozinha, e quando me viu, tomou um ar um pouco formal. Anna nos apresentou: o nome dela era Gabriela, e ainda era bem jovem, aparentando ter uns quarenta anos. Um pouco cheinha, mas bonita, e quando ela me cumprimentou com um beijo no rosto, senti um perfume delicado de alfazemas.

Ela nos chamou para a cozinha, pois estava preparando o jantar, e me intimou a jantar com eles.

Na cozinha, percebi que seria melhor aceitar o convite, pois o cheiro era delicioso. Gabriela estava preparando carne moída com azeitonas, arroz e feijão, e sobre a mesa já havia um prato de salada de tomates e alface. De repente, minha fome voltou com força total!

A cozinha era bem maior que a sala. O chão, de azulejos hidráulicos antigos, era imaculadamente limpo. O fogão era branco e bem velho, a geladeira também. Havia uma mesa de madeira enorme bem no meio, com cadeiras diferentes umas das outras. Em um canto, um fogão à lenha. Eu nunca tinha visto um de perto. Gabriela me explicou que ainda preparava refeições nele, para economizar gás quando necessário, e também fazia pizzas e bolos para vender. Anna explicou que sua mãe preparava festas, fazendo doces e salgados. Seu pai era serralheiro, e tinha uma pequena oficina nos fundos do quintal. O pai de Anna entrou naquele momento, enxugando o suor da testa, e me cumprimentou com simpatia. O chiado da panela de pressão intensificava aquele ambiente tão doméstico, simples e pacífico. Pedro, o pai de Anna, pediu licença, dizendo que precisava de um banho antes  do jantar.

Gabriela, a mãe de Anna, Colocou os pratos, garfos e copos sobre a toalha imaculadamente branca da mesa, e no meio, uma garrafinha de molho que ela transformara em vaso de flores, contendo algumas margaridas. Percebi que talvez aquela fosse a melhor toalha que tinham, para ocasiões especiais, e que aqueles pratos e copos simples, mas com aparência de novos, eram os melhores que tinham, e senti-me honrada. Jantamos, e há muito tempo eu não comia tanto e com tanta vontade. Gabriela encheu meu prato três vezes, e eu tentei recusar por educação, mas as três vezes, ela repetiu: "Você precisa se alimentar melhor. Está magrinha, não come direito há muito tempo." Lembrei-me do que Anna dissera sobre a mediunidade da mãe. Eu não acreditava naquelas coisas,  e concluí que Gabriela era apenas uma boa observadora.

Após o jantar, Anna levou-me para conhecer seu quarto.

Sobre a cama, uma colcha de retalhos linda, toda colorida, que ela disse ter sido feita pela avó, que morava perto dali. Havia também uma mesa de estudos, um aparelhinho de som, um armário de roupas antigo e uma cadeira. Não havia televisor ou banheiro privado. Tudo era extremamente simples, mas também ali, eu senti uma paz enorme. Escutamos música baixinho, enquanto os pais dela assistiam TV na sala. Os ruídos domésticos eram tão serenos, a água na pia da cozinha, a TV, os cães brincando do lado de fora. Senti que gostaria de ter nascido ali. Descobri que adorava aquela vida, e comparei-a à casa enorme e luxuosa onde eu vivia e ninguém se entendia, a sala de visitas quase sempre vazia. As casas de meus antigos amigos também eram como a minha: decoradas como casas de revista, frias, impessoais.

Passei a frequentar a casa de Anna quase todos os dias, e também conheci alguns de seus vizinhos.

As pessoas ali eram simples, seus problemas eram de origem prática - o que preparar para o jantar, o tema da festinha de aniversário, a pintura da parede. Ninguém ficava racionalizando a vida, tentando ver coisas por trás das coisas, adivinhando nos outros pensamentos ou intenções que não existiam. Não havia preocupação com aparências, competições, luxo. A maioria das pessoas não frequentara faculdade, e ganhavam a vida através de trabalhos como marcenaria, artesanato, apicultura, mecânica de automóveis, confecção de doces e salgados, costura, serralheria, agricultura, administração de pequenos negócios como bares, restaurantes e pousadas. As casas eram simples e confortáveis, aquecidas e práticas. Não havia grandes ambições de vida. Eram felizes.

Quando alguém morria, eles faziam o enterro, a missa de sétimo dia, e depois deixavam a pessoa ir, continuando a levar a vida, sem questionar ou revoltarem-se contra Deus ou quem quer que fosse. No período em que estive lá, Anna perdeu uma prima ainda jovem, e todos choraram, e se despediram, e falavam sobre ela normalmente durante dias, sem constrangimentos, e aos poucos, foram curando suas dores.

Eu os invejei.

Enquanto isso, naquelas duas semanas em que comecei minha amizade com Anna e constatei todas essas coisas, eu continuava chegando ao meu quarto na pensão, fechando os olhos e chorando por Fred. Sentia saudades dele o dia todo, mas ao mesmo tempo, eu estava gostando de ser a Fernanda. Era como se meu novo nome e minha nova vida fossem também um universo no qual a dor não existia. Apenas quando eu estava só e voltava a ser a Nina, a dor também voltava. Eu me lembrava de minha antiga vida, de meus pais, da escola que abandonara. Às vezes eu pensava que poderia nunca mais voltar; poderia escolher ficar ali para sempre, sendo a Fernanda, quem sabe até conseguiria documentos falsos. Nunca mais teria que enfrentar meus velhos fantasmas e problemas novamente.

Mas logo aqueles pensamentos e desejos seriam confrontados por Gabriela.




(continua...)







2 comentários:

  1. Me apaixonei por essa historia. Por mostrar a realidade e que a simplicidade da vida é o que nos da força para viver. Enquanto perdemos tempo nos importando com coisas superficiais, vamos deixando de nos importar com o que relamente nos faz feliz, gradativamente, sem percebermos. E assim a vida passa, sendo comum e tediosa, triste e dolorosa. E essa tem sido a realidade de muitos. Uma vida deatruida pela falta de dialogo e sustentada pelas aparências. Por favor, escreva logo o proximo capitulo.

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    1. Eu fiquei com vergonha de pedir,
      mas como você tomou a iniciativa,
      Larissa, eu assino embaixo; Aninha
      escreve logo o próximo capítulo, vai!

      Um beijo às duas.





      .

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