quinta-feira, 10 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XIV







O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XIV





Durante as férias de 1947, o pai não pode ir vê-la. Precisou acompanhar Madame Fonseca em uma viagem, pois ela desejava vender uma de suas propriedades, uma fazenda em São Paulo. Mal sabia ele que, lá chegando, veria o rosto de sua falecida mulher, Vicentina, mãe de sua filha, no rosto de outras duas crianças, dois meninos! Ao conversar com o casal que era responsável pela manutenção da fazenda, foi logo perguntando sobre as crianças, e a mulher confessou que os meninos tinham sido adotados quando ainda eram bebês, e lá deixados por uma linda jovem de Petrópolis que nunca mais voltara. Ao ouvir tal história, Régis não pode deixar de se emocionar, pois sem querer, encontrara os irmãos de Regiane! Explicou ao casal o que descobrira, contando-lhes parte de sua história. Quando terminou sua narrativa, todos – inclusive Madame Fonseca – tinham lágrimas nos olhos. Os dois meninos, alheios a tudo o que os adultos conversavam, brincavam no pátio lá fora, correndo atrás das ovelhas e cães. Régis sabia que eles não eram seus, e que nenhum direito tinha sobre eles; também sabia que eram amados, e que talvez tivessem uma sorte melhor do que sua própria filha, pois eram meninos, e jamais sofreriam discriminação por causa de sua origem, porque tinham sido oficialmente adotados por um casal de pessoas honestas, tornando-se filhos legítimos. Madame Fonseca não sabia que seus empregados tinham as duas crianças, e ao constatar que a venda da fazenda faria com que suas vidas fossem totalmente modificadas, decidiu não vendê-la mais, enquanto os meninos precisassem dela. Aumentou o salário do casal, dando-lhes o cargo de administradores. Régis agradeceu-lhe efusivamente. Antes de partirem, Régis deixou com os pais dos meninos um cartão com seu endereço em Niterói, caso um dia eles desejassem ir à cidade de Petrópolis e  conhecer sua irmã.

Na viagem de volta, enquanto estava sentado diante de Madame Fonseca no trem, aproveitou-se do fato de que ela estava olhando a paisagem à janela do trem,  e passou a reparar melhor em sua patroa. Viu que, apesar de ser quase quinze anos mais velha que ele, Madame Fonseca ainda era uma bela mulher. Tinha cabelos fartos e castanhos, sempre presos em um coque comportado, o rosto alvo e quase sem rugas, lábios cheios e sensuais e olhos esverdeados encimados por longos e grossos cílios. O corpo era bem cuidado, forte e esguio. Madame gostava de manter-se sempre bem vestida e penteada, e cuidava da dieta. Usava cremes que vinham de Paris e também conhecia receitas caseiras para a pele, que ela mesma preparava na cozinha da mansão. Régis pensou no quanto seu patrão tinha sido tolo ao abandonar tal mulher, sempre tão forte e tão bondosa!

Era a primeira vez que Régis a olhava daquela forma. Estava tão absorto em seus pensamentos, que quando voltou a si, deu com os olhos dela cravados nele. Faíscas percorreram a distância entre os dois. Foi ele quem baixou os olhos primeiro, sentindo o rosto avermelhar. Régis estava confuso, pois nunca na vida uma mulher causara-lhe aquela reação. Era sempre ele quem determinava o rumo da relação, início, meio e fim, e era sempre ele que colocava o ponto final. Mas tinha tanto respeito e admiração por aquela mulher, que sentia-se alguns níveis abaixo dela. Ao olhá-la novamente, viu que ela ainda não parara de olhar para ele, e sustentou o olhar por mais tempo. Um solavanco nos trilhos fez com que ambos desviassem os olhos.


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Regiane, após um final de semana na companhia dos tios e primas, percebeu que seu grande sonho de morar com eles não era mais verdadeiro. Amava os tios e primas, e gostava dos momentos em que passeavam juntos pelas calçadas da Avenida Koeller e Rua Ipiranga, olhando as mansões tão bonitas, ou de quando ajudava Tia Rosa a preparar macarrão caseiro, pendurando a massa em varais pela cozinha para que a mesma secasse. Gostava da companhia deles, mas não desejava mais viver no casarão. Acostumara-se à escola. Não sentia mais aquela casa como sendo seu lugar, e nem aquelas pessoas como parte de sua família. Crescer fez com que ela percebesse que há coisas dentro das pessoas que as crianças ignoram – e que só passam a compreender quando elas próprias tornam-se adultas. Regiane sentia cada vez mais a rejeição que sofrera por parte deles quando ela mais precisava. Não a quiseram vivendo naquela casa. Não abraçaram sua infância, não a protegeram das tantas coisas ruins que aconteceram a ela; coisas que poderia ter sido evitadas, dores das quais ela poderia ter sido poupada, não fosse a omissão de todos. Aquele amor morno que lhe dedicavam servia-lhe apenas nos dias de férias, nas horas vagas. Era um amor com regras (eu a aceito se você for boa e obediente), um amor que não tocava em assuntos que ela precisava discutir.
Regiane sentia-se acolhida no velho porão, na presença de Ricardo, que a envolvia em uma nuvem de amor, compreensão e acolhimento. Ele era a sua verdadeira família, o seu refúgio. Fora ele quem a acalmara quando, numa manhã de domingo, ela acordou para descobrir que seu lençol estava coberto de sangue. Assustada, ela caminhou pelos corredores vazios, mas ainda era cedo demais – estava escuro – e todos dormiam. Percebeu de onde o sangue vinha, e pensou que fosse um castigo pela sua condição de filha de uma prostituta, e que aquele fluxo a acompanharia pelo resto de sua vida, a não ser que Jesus viesse até ela e fizesse um milagre, como na Bíblia, naquela passagem na qual ele salvara uma mulher que sofria de um fluxo de sangue.

Ela precisava pedir perdão. Foi até a capela vazia, e sem acender as luzes, postou-se de joelhos diante do altar, e chorou. O sangue, que manchara suas pernas, estava sob suas unhas, e sem perceber, ela sujara a camisola branca. Havia uma grande mancha sobre suas nádegas, como se fosse alguma coisa cômica, algo do qual as pessoas teriam rido naquele circo onde as irmãs a levaram há alguns anos. Então ela se lembrou de Ricardo, e atravessando o pátio gelado em plena madrugada, bateu à sua porta. Mal ele a abriu, ela agarrou-se em seu corpo magro e frio. Ele tentou acalmá-la, notando as manchas de sangue e imediatamente, compreendendo o motivo de tanto desespero. Mandou-a entrar, colocou um cobertor sobre seus ombros, abriu um de seus livros e mostrou a ela a causa de tudo aquilo, e aos poucos, ela foi se acalmando, compreendendo melhor a função da menstruação. Ele abriu uma outra página, e Regiane descobriu, maravilhada, de onde vinham os bebês. Não houve sinal de constrangimento por ser Ricardo quem estivesse explicando-lhe aquelas coisas; pelo contrário, aquela parecia ser a coisa mais certa do mundo. Quando Regiane já estava bem calma, Ricardo mandou que ela fosse tomar um banho, mas antes procurasse uma das irmãs e pedisse alguma coisa que ela pudesse usar a fim de conter o sangue no lugar certo. Irmã Dulce abraçou-a, e deu-lhe uma toalhinha higiênica forrada com um pedaço de plástico, e mostrou-lhe como ela deveria costura-la na calcinha, trocando-a quando estivesse molhada demais. Também disse que ela agora era mulher, e que deveria tomar muito cuidado com meninos, mas não deu detalhes (porém, ela já sabia de tudo). Mostrou-lhe um tanque escondido atrás do pomar, dizendo a ela que lavasse ali suas toalhinhas, longe da vista de todos. Naquela semana, ela foi dispensada das aulas por quatro dias, e não deixaram que ela lavasse a cabeça durante o banho.

Ricardo era seu amigo, irmão, pai, professor. Ajudava-a com as lições da escola, ouvia seus pensamentos, dava-lhe conselhos. Mas Regiane sentia que ele era muito mais que apenas amigo. Porém, ela não sabia explicar nem a si mesma o que sentia por ele. Apenas passou a perceber que gostava de olhar para ele, o que passou a fazer com mais intensidade. Quando estavam muito próximos, ela sentia uma coisa estranha que nunca sentira antes, quando era só uma menininha. Era uma espécie de calor, um aceleramento das batidas do coração. Se ele a tocasse por acaso, ao virar a página de um livro, ela se arrepiava. E Ricardo percebia aqueles sentimentos brotando, mas não parecia querer corresponde-los, embora fossem mútuos. Ela chegava com seu uniforme, e sentava-se na cama dele displicentemente, a saia erguendo-se até os joelhos, e então chamava-o para que se sentasse ao lado dela, e encostava seu ombro no dele, colocando os pés sobre os pés dele, como fazia quando era criança. E ele sentia seu hálito cheirando a pitangas, maçãs e laranjas do pomar. Às vezes, ela chegava mastigando folhas de hortelã. Ele começava a ler para ela uma de suas muitas histórias, e ela às vezes dormia, a cabeça deitada sobre seu peito. Ele achou que precisava fugir, afastar-se de Regiane um pouco, fazer com que ela percebesse que ele nada tinha a oferecer-lhe. Por isso, ela passou a não encontrá-lo mais com tanta frequência quando ia ao porão. Batia à porta que não era atendida, e ao olhar sob a greta, não enxergava nenhuma luz. Voltava mais tarde, e a mesma coisa ocorria, até que, dias depois, para seu alívio, ela o encontrava. Aqueles dias sem vê-lo, ao invés de arrefecerem seus sentimentos, apenas os incendiava. Ele abria a porta e ela jogava-se sobre ele, os braços em volta de seu pescoço, num longo abraço de saudades do qual ele gostaria de poder esquivar-se.

Ela tinha apenas treze anos, mas a natureza, talvez pelo fato de ela estar há tanto tempo acrescentando dois anos à sua idade real, tinha acelerado seu crescimento, e ela passava tranquilamente por uma moça de quinze, com todos os sentimentos, ânsias e desejos de uma adolescente. Ela resolveu assumir a sua idade de mentira, e com o tempo, tratou de se esquecer sua idade real. E foi assim que ela chegou aos quinze anos reais – dezessete anos oficiais. Aquilo significava que, dentro em breve, ela teria que deixar a escola, pois eles só mantinham meninas até os dezoito anos. Regiane sabia que não poderia simplesmente dizer às freiras que tinham mentido sobre sua idade, e que ela, na verdade, tinha apenas dezesseis anos, o que lhe daria mais dois anos na escola. Assumira seu segredo, e teria que conviver com aquela decisão.

Em uma de suas visitas à casa das tias durante as férias escolares, Regiane saiu para um passeio com Régis. Era uma linda e iluminada manhã de verão, e ambos caminhavam pelas ruas Petropolitanas, onde o clima ameno convidava as pessoas a um passeio à pé. Algumas carruagens e carros passavam vagarosamente, seus ocupantes desfrutando a beleza da paisagem. Régis comprou-lhes dois algodões doces, e sentaram-se em um dos muitos banquinhos da Praça da Liberdade para comê-los. Ele olhou para a filha, e viu que ela transformara-se em uma cópia quase exata da mãe, só que ainda mais bela. O destino dela muito o preocupava. Queria ter certeza de que sua filha seguiria por um bom caminho, e não seria envolvida por um crápula como ele mesmo fora em sua juventude. Régis pensava em uma maneira de casar sua filha, mal ela deixasse a escola, e já tinha em vista alguns rapazes que julgava serem bons candidatos. Ele não sabia que Regiane tinha planos bem diferentes. Arriscou tocar no assunto:

-Filha, oficialmente, este é o seu último ano na escola Nossa Senhora da Ajuda, e no ano que vem, deverá deixa-la. Precisamos discutir o seu futuro. Suas tias disseram que a aceitarão no casarão, o que é uma ótima notícia!
Regiane pegou um bom pedaço do doce e deixou que derretesse na boca antes de responder:
-Quando eu mais precisei, elas não me quiseram naquela casa. Agora, que Lea cresceu e foi mandada para um colégio interno luxuoso, não represento mais nenhuma ameaça para a moral e os bons costumes, não é?
O pai ralhou com ela:

-Não seja mal-agradecida, Regiane! Se elas não a aceitaram antes, foi porque não podiam cuidar de você. Não gosto que fale assim de suas tias!

-É... o senhor tem razão! Quando passo o final de semana com elas, sou sempre muito bem tratada, e também não faltam tarefas caseiras. Da última vez, deram-me uma pilha de lençóis para passar, e tive que lavar os banheiros da casa. Quem sabe, elas queiram uma empregada, não é, meu pai?

Régis perdeu a paciência, erguendo um pouco a voz:

-Quando foi que você aprendeu a ser assim, tão ingrata e irônica? As mulheres são responsáveis pela limpeza da casa, e já que elas a aceitaram como hóspede, é seu dever ajudar nas tarefas.

Regiane não se intimidou:

-Pai, quero um dia poder cuidar da minha própria casa. Da minha própria família, e não ser uma intrusa na casa dos outros! Não quero viver com minhas tias.

-E o que você sugere, então? Só há uma saída: casar-se! Ou então virar freira.

Regiane engoliu em seco. Não queria casar-se apenas por não ter outra alternativa, e não tinha fé o suficiente para tornar-se uma religiosa. Havia muito da vida que ela queria descobrir. Desejava viajar, ter uma profissão, ser uma mulher independente.

-Eu quero ser independente, ter minha casa e meu dinheiro, pai.

Régis riu com desdém:

-Independente? Que coisa é essa, filha? Quem foi que pôs essas ideias absurdas na sua cabeça? Mulheres nasceram para casar e ter filhos! Devem cuidar dos maridos e de suas casas.

-Minha mãe nunca se casou! Graças ao senhor.

Aquelas palavras tiveram o impacto de um forte soco em Régis. Regiane percebeu a força negativa de suas palavras:

-Desculpe, pai... eu não queria...

-Cale-se! Não quero mais ouvir nada de você hoje.  (Ele ergueu-se do banco, jogando o algodão doce em uma lata de lixo próxima) Quando terminar seu doce, vá para casa.

Dizendo aquilo, Régis afastou-se. Regiane ficou sentada no banco da praça, segurando o doce, e acabou jogando-o fora. De uma coisa o pai tinha razão: ela precisava decidir o que fazer de sua vida. Tinha apenas um ano e dois meses na escola. E ainda havia Ricardo... será que, caso deixasse a escola, nunca mais o veria? Aquela possibilidade deixava-a cheia de pavor! Queria ter uma vida inteira com ele; gostaria de leva-lo para fora daquele porão, e passear de mãos dadas com ele pela calçada. Queria sentar-se com ele em um banco de praça como aquele, e dar muitas risadas, e fazer planos de terem uma pequena casinha branca de janelas azuis, onde poderiam criar seus filhos.

Apenas com Ricardo aquela possibilidade existia, e era algo feliz.

Mas por dentro, Regiane sabia que havia muitas coisas sobre Ricardo que ela não imaginava, e que aqueles segredos que ela tanto temia poderiam afastá-los um do outro. Cada vez mais, desejava saber quem era a mãe de seu amigo, e por que ele tinha sido condenado a permanecer ali para sempre, perdendo sua infância e parte de sua juventude em um porão escuro e sem janelas, saindo apenas à noite ou quando ninguém estivesse por perto, tornando-se tão esquivo a ponto de virar uma lenda, um fantasma que habitava a imaginação das pessoas.


(continua...)









2 comentários:

  1. Nossa, Regiane cresceu forte, não deixou que suas carências a seguissem, isso é maravilhoso, *queria ter agido assim, mas, a vida me ensinou, rs...

    Achei de uma delicadeza sem fim Ricardo te-la acolhido naquele momento...

    Adorei demais esse capítulo, parabéns!

    *Cada dia mais envolvida!

    *Apaguei comentário anterior porque tinha me empolgado demais... rs..

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