quarta-feira, 23 de março de 2016

O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVIII









O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO XVIII



Regiane achou melhor não comentar com ninguém o que lhe aconteceu enquanto estava na colina. Todos notaram que ela estava calada, mas ela respondeu que estava apenas um pouco indisposta. Sentindo-se culpada pela discussão que acontecera mais cedo, Fiorela serviu-lhe uma xícara de chá e convidou-a para passar a noite, mas Regiane disse que precisava voltar para casa, pois Dália não gostava de ficar sozinha. João levou-a de carro, pois já estava escuro, e durante o trajeto, ela não disse palavra, apenas pensando no que acabara de ocorrer.

Nos dias que se seguiram, prestar atenção às aulas era quase impossível, e Regiane precisou estudar com muito afinco a fim de passar nos testes. Felizmente, Ricardo voltara, e a ajudava com as matérias, ela às vezes se perguntava como ele podia saber tantas coisas, e como, apesar da passagem do tempo desde que se conheceram, ele mantinha sempre a mesma aparência. Ela contara a ele sobre o ocorrido, e após ouvi-la com muita atenção, Ricardo disse:

-Você teve uma linda experiência, Regiane. 

Ela ajeitou a saia, levantando-se da cama e caminhando pelo quarto:

-Você acha?

-Mas é claro! Você é médium, não há a menor dúvida.

-Mas... e se tudo não passou de imaginação?

Ele olhou-a profundamente nos olhos, segurando-a pelas mãos:

-Acredite em mim: você é médium, e das melhores. 

Ela riu:

-O que você sabe sobre isso?

-Não muito...mas apenas sei.

-Meu pai gostaria que eu frequentasse suas reuniões espíritas, pois ele acha que se eu for com ele, mamãe aparecerá... na verdade, eu tenho um pouco de medo dessas coisas... não gosto muito de fantasmas... a não ser os que eu conheço. Ah, se as freiras soubessem que eu fui a um lugar daqueles, com certeza me expulsariam da escola! Imagine, a madre Superiora, com toda a sua ‘superioridade’, descobrindo que uma de suas alunas católicas, uma das suas Filhas de Maria, está frequentando reuniões espíritas!

Ele riu, mas seu sorriso era triste.

Os olhos deles pareciam melancólicos. Ele parecia muito triste naqueles últimos meses, desde que começara a se ausentar, e por mais que ela perguntasse, ele jamais dizia aonde ia ou quando iria voltar, deixando-a muito angustiada. Pedia que ela confiasse nele. Regiane não tinha qualquer outra alternativa; restava-lhe ter esperanças e confiar.

No sábado, Regiane e seu pai estavam esperando ansiosamente pela chegada de seus irmãos, Antônio e Pedro, marcada para aquela tarde. Régis lembrava-se da surpresa que tivera ao vê-los pela primeira vez, pois um deles parecia-se muito com ele – apesar de Vicentina ter-lhe jurado que não eram seus filhos. Mal via a hora de estar frente a frente com os rapazes novamente a fim de esclarecer de vez a sua dúvida. 

O trem chegaria à uma da tarde. Apesar da contrariedade demonstrada por Fiorela, João convidara a todos – inclusive Dália e seu noivo Otávio – para almoçarem no casarão. Estavam todos lá, aguardando que Régis chegasse com Regiane e os meninos. Mas a hora da chegada do trem passou, e nada de trem... de repente, os dois começaram a ouvir um burburinho na estação, e pessoas apressadas e preocupadas corriam de uma lado para o outro, carregando papéis, batendo portas, os rostos preocupados e muito aflitos. Outras pessoas que também aguardavam o trem começaram a ficar apreensivas. Regiane sabia que algo errado havia acontecido, e naquele momento, lembrou-se da conversa que tivera com a mãe. Logo, chegaram as más notícias: o trem descarrilhara, matando cinco passageiros e ferindo vários outros.

Ávidos por mais notícias, Régis e Regiane consultaram os funcionários da ferrovia, já atarefados e confusos com tantas perguntas e podendo fornecer tão poucas respostas. No fundo, Regiane desconfiava do que tinha acontecido. Todos queriam a lista de passageiros a fim de saber se seus amigos e entes queridos estavam realmente naquele trem, e se estavam, queriam – ou melhor, exigiam – saber se estavam bem. 

Logo, o funcionário da bilheteria anunciou que se acalmassem, pois os feridos estavam sendo conduzidos ao Hospital Santa Teresa. Regiane e o pai correram para lá, e quando chegaram, havia à porta do hospital uma enorme confusão de macas, ambulâncias, repórteres, pessoas aflitas e curiosos. Régis pensou no quão rapidamente as más notícias se espalhavam! 

Regiane olhava a profusão de feridos que chegavam, tentando adivinhar em seus rostos as feições dos irmãos que nunca vira. Régis telefonou ao casarão avisando do ocorrido, e em poucos minutos, Rosa, João, Dália e Otávio chegaram ao hospital. Fiorela permanecera em casa com as crianças. 
Finalmente, após algumas horas, saiu a lista dos mortos – que subira para doze pessoas. 
Regiane constatou que os nomes de seus irmãos estava entre eles.  Rosa a abraçou, enquanto Régis tentava chegar aos corpos. Com a ajuda de Otávio e João, foram tratar dos papéis, e as mulheres tomaram um táxi para casa. 

Ao abrir a porta e ver as outras tão abatidas, Fiorela imediatamente deduziu o que acontecera. Abraçou a sobrinha, que parecia mortificada – mas que não chorava, apenas fitava o vazio – e tratou de acomodá-la no sofá, servindo-lhe uma pequena dose de licor. Dália passou um braço em volta dos ombros de Regiane, e Rosa segurava-lhe a mão. Apesar de sentir-se amparada pelas tias e pela amiga, Fiorela gostaria de estar nos braços de Ricardo naquele momento. De longe, a pequena Léa olhava aquela cena triste, sem nada entender. De repente, ela aproximou-se da prima, fazendo-lhe uma carícia no rosto. Regiane abraçou-a, chorando finalmente. 

Após algumas horas, Otávio, João e Régis retornaram, avisando que os corpos já estavam sendo preparados para o funeral, que ocorreria na tarde de domingo. Regiane anunciou:

-Quero passar a noite na capela. 

Régis adiantou-se:

-Não, querida... vá para casa com Dália, eu cuido disso.

-Não! São meus irmãos! Eu não vou abrir mão de acompanha-los em seu último dia na terra. Jamais os conheci, mas ansiei e me alegrei pela chegada deles, que se aproximava... agora que chegaram, eu irei recebe-los, mesmo que já não estejam mais aqui.

Régis concordou com a cabeça. Disse:

-Eu ficarei com você. 

E de repente, todos, exceto Fiorela, que teria que ficar cuidando das crianças, partiram para a casa funerária. 

Ao chegarem lá, Regiane, que parara de chorar, aproximou-se dos dois caixões que tinham sido postos lado a lado, e olhou nos rostos estranhos. Meninos ainda... meninos que jamais acordariam. Meninos que tinham uma vida inteira pela frente, e que por uma armadilha do destino, agora teriam pela frente apenas uma longa morte, uma misteriosa morte... ela acariciou seus rostos, e disse-lhes palavras aos ouvidos. Depois, sentou-se junto com os outros, pronta para passar uma das piores noites de sua vida. No dia seguinte, todos estavam exaustos. 

Regiane pensava em Ricardo, e no quanto ela gostaria que ele estivesse ali com ela, mas nem tivera tempo de ir à escola avisá-lo. Algumas das freiras compareceram, mas Irmã Malvina não dera o ar de sua graça – apenas enviara, através de Irmã Dulce, um ramo de flores do jardim: agapantos e rosas em um lindo buquê. Alguns vizinhos também passaram por lá rapidamente, em respeito à família. 

Quase na hora do sepultamento, chegaram os pais adotivos dos meninos. Eles se postaram respeitosamente ao lado dos filhos. A mulher chorava baixinho, amparada pelo marido. Pareciam conformados. Era como se a vida lhes tivesse emprestado aquelas crianças para que fossem felizes durante algum tempo, mas chegara a hora de devolvê-los. 

Súbito, todos os olhares se dirigiram para a porta da capela: era Diana que chegava. Usava um véu preto cobrindo o rosto, mas sua maquiagem pesada, que aparecia sob o véu,  e o corte ousado  de suas roupas, denunciavam que ela não pertencia àquele grupo de pessoas. Régis a reconheceu imediatamente – a cafetina que abrigara Vicentina. Deixou que ela se aproximasse dos caixões e fizesse o sinal da cruz, permanecendo lá por alguns instantes. Depois, ela caminhou até a irmã e o cunhado, abraçando-os. Conversaram por alguns instantes. Todas as pessoas observavam a cena. De longe, ela deu uma boa olhada em Regiane, parecendo reconhece-la. Em seguida, seus olhos pousaram em Régis. Ele a cumprimentou com um aceno de cabeça. Depois, como nada mais tivesse a fazer ali, Diana virou as costas e afastou-se. 

Régis levantou-se, seguindo-a:

-Senhora Diana... espere, por favor!

Ela estancou o passo, sem olhar para trás. Régis tocou-a no antebraço, obrigando-a a olhar para ele:

-Eu preciso saber: um daqueles meninos era meu?

-Ela o encarou com desprezo nos olhos, ironizando-o:

-Vocês homens são sempre tão engraçados! Abandonam suas mulheres à própria sorte após usá-las, e depois fingem preocupar-se com elas ou com o que lhes acontece! Seria um súbito ataque de culpa? Saiba que Vicentina teve seus momentos de felicidade em minha casa, e que se estes meninos sobreviveram, foi porque eu os ajudei. Que direito de paternidade poderia qualquer homem ter sobre eles? E por que preocupar-se com isso, agora que estão mortos?

Régis deixou escapar uma lágrima, que ele secou rapidamente com a manga do casaco:

-Por favor... preciso saber da verdade.

-Não seria melhor se não soubesse?

Dizendo aquilo, ela virou-lhe as costas, afastando-se a passos largos e pesados. Régis ficou parado no corredor, sentindo o peso daquelas palavras reduzirem-no à poeira que estava depositada nas mesas e nos cantos dos rodapés. Em volta, a morte se espalhava. O descuido daquela sala retratava perfeitamente o estado de seu coração. 

Ele jamais ficaria sabendo, oficialmente,  qual dos meninos era seu filho, mas no fundo, ele sabia. Soubera no primeiro momento em que olhou para ele, naquela fazenda.

A vida segue após cada morte. Os vivos tem suas urgências, e precisam atende-las a fim de continuarem vivos. Quando a tampa de um caixão se fecha, fecha-se também um ciclo da vida. Há uma separação definitiva. Um corte. E nem toda a saudade do mundo poderá fazer com que aquela tampa se abra novamente, e que aquela pessoa volte a abrir os olhos e ser quem sempre foi. O que ela se torna após a morte, está nos livros fechados do mistério, e o que ela foi em vida, é pouco a pouco reinventado por aqueles que dela se lembram. Caráteres rascantes vão se tornando doces pouco a pouco; os bêbados tem seus adjetivos trocados por palavras mais amenas, como românticos, boêmios, sonhadores e tristes. As prostitutas passam a ser lembradas como pobres mulheres a quem a  vida não deu o dom da boa sorte. As mães tornam-se santas, não importando que tipo de mães elas foram. As crianças, estas, tornam-se anjos. 

Regiane teria dois anjos velando por ela. Assim disseram-lhe as pessoas, tentando confortá-la. E assim ela passou a pensar nos irmãos. 

Acontecimentos tristes e alegres intercalam-se nos caminhos da vida. Dias após o choro, aquelas pessoas que estavam reunidas em volta dos caixões se reencontraram a fim de celebrar um casamento. Logo estavam todos usando suas melhores roupas e sorrisos, as mulheres com seus vestidos de festa esvoaçantes, os homens vergando ternos novos e bem cortados. Um casamento era celebrado.

A noiva estava linda, pois todas as noivas são sempre lindas. O noivo, feliz, esperava-a no altar, e enquanto ela se aproximava vagarosamente, sendo conduzida por seu primo João, Otávio sentia-se o mais feliz dos homens, e ela, tímida, sonhava com a noite de núpcias na qual descobriria os prazeres do sexo nos braços do seu marido. E nada poderia tirar a magia que estava sobre as coisas naquele momento; nem mesmo o futuro que lhes aguardava, a realidade após o sonho, o marido tornado alcoólatra, que perderia nas mesas do Cassino Quitandinha grande parte do que ganhava. Nada faria com que as fotografias não fossem lindas, e os olhares nelas eternizados emanassem promessas de felicidade a quem quer que as olhasse, mesmo anos depois, retirando-as de caixas de papelão, quando já fossem amareladas e cheirassem a mofo. As imagens sobrepujariam a realidade. Toda vez que a caixa fosse aberta, as pessoas que ficaram no passado invadiriam as salas, os cômodos das casas, os corações das pessoas do presente, que por alguns instantes de magia, sentir-se-iam novamente jovens, cheios de sonhos e de boa vontade. 

Dália guardaria aquela caixa mágica sobre o armário, recorrendo a ela nas noites solitárias em que seu marido estava longe – quem sabe, nos braços de outras mulheres – bebendo, jogando e acabando com o pouco patrimônio que seus pais lhes deixaram. Felizmente, a casa estava em nome dela e eram casados com separação de bens, o que evitou que fossem colocados na rua. Foi-se o pouco dinheiro no banco, suas joias (que ele levava na calada da noite), algumas roupas e objetos valiosos, o salário que ele recebia, e ás vezes, quando ele conseguia encontrar, o salário que ela recebia trabalhando em meio expediente em um consultório médico. E ela apenas sorria, tentando mascarar a realidade aos olhos dos outros, honrando seu marido e sua família exatamente como sua mãe a ensinara a fazer, tudo pelo bem das crianças. Afinal, o casamento era uma instituição sagrada e indissolúvel. 



(continua...)








2 comentários:

  1. Nossa, que triste desfecho!
    Adorei a lucidez com que descreveu a morte.

    Obrigada pelo acesso Ana, estarei ausente nos próximos dias, então, aproveito para te desejar uma feliz Páscoa.

    Um abraço.

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  2. Avisos que nos chegam, sempre se cumprem!
    Achei muito interessante a pergunta da Regiane: "Você o ama".
    Triste fim para uma moça que se guardou para o esposo.
    Quanta injustiça, seria ela merecedora?
    Se tivéssemos todas as respostas, será que poderíamos evitar o sofrimento?
    Abraços carinhosos
    Maria Teresa

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