segunda-feira, 6 de junho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO VII








- Eu nasci em Caminho do Mato, uma cidadezinha tão minúscula quanto esta, próxima daqui. Meus pais não eram ricos, mas tínhamos uma pequena fazenda - esta - que produzia leite e também plantávamos algumas frutas que garantiam nossa subsistência. Eles a compraram logo depois que eu nasci, com as economias que meu pai herdou após a morte de meu avô. 

Tive dois irmãos; um deles, o mais velho, logo enrabichou-se por uma moça da cidade grande que ele conheceu durante um passeio, e foi embora atrás dela. Nunca mais voltou ou deu notícias. O mais novo morreu de febre. Ficamos mamãe, papai e eu, sozinhos para cuidar da fazenda, o que não era o que papai esperava; ele contava com os meninos para ajuda-lo. Mas fomos levando. Um dia, surgiu uma oportunidade para meu pai: um banco chegou à nossa cidade, oferecendo empréstimos para quem quisesse ampliar os negócios. E esta foi a nossa ruína...

Naqueles tempos, não tínhamos muita gente trabalhando conosco, mas papai pegou o empréstimo e contratou mais seis funcionários, comprou sementes de milho e de café e começou a plantar. Eu tinha uns dezesseis anos naqueles tempos, e trabalhava feito um homem na plantação da fazenda. Não pude estudar muito, mas era uma menina tola e romântica, e gostava de me esconder nas horas vagas – as poucas que eu tinha – e ler romances comprados em bancas de jornal. Colhemos a primeira leva de milho e café, e reinvestimos parte dela para o replantio, e com a outra, pagamos uma parte das dívidas com o banco, mas papai achou que se pedisse mais um empréstimo, poderia ampliar ainda mais as nossas atividades... mal sabia ele que aquilo seria a nossa ruína total!

Décio percebia as mudanças de expressão no rosto de Endora conforme ela ia contando a história. Ela dava algumas pausas no caminho de sua narração, e suspirava. Mais e mais, ele não conseguia acreditar que estava diante de uma criminosa que matara tantas pessoas de uma só vez. Ela continuou:

-E foi então que veio uma longa seca. Não choveu por quase dois anos. As plantações morriam, e as dívidas aumentavam. Estávamos à mercê de perder tudo. Foi um período horrível, pois eu via minha mãe chorando pelos cantos, e embora tivéssemos conseguido entrar em contato com meu irmão mais velho, ele disse que tinha se casado e tinha um emprego na cidade, e não poderia ajudar. Estávamos para perder nossas terras para o banco.

E foi numa tarde quente, em que eu acompanhei papai até a cidade, dirigindo o nosso caminhãozinho a fim de vender um pouco de leite, que eu conheci as pessoas que selariam meu destino para sempre.

Ela tossiu, e Décio serviu-lhe um pouco da água que estava em uma moringa sobre a mesa. Perguntou se ela desejava continuar outro dia, mas Endora negou com a cabeça, e depois de mais um acesso de tosse, limpou a garganta, tomou outro gole de água e continuou:

-Eu estava de pé, ao lado de meu pai na vendinha da cidade. Ele negociava o leite com o dono da venda, e de repente, notei que havia um moço bonito me comendo com os olhos. Sim, ele era bonito. Cícero Damata era um homem másculo, bonito e de olhar intenso.  Parecia ter uns bons dez anos a mais que eu, mas eu não me importaria, se ele não se importasse. Acordei do meu transe com meu pai sacudindo meu ombro, e sem-graça, olhei para ele e nós saímos da venda sem olhar para trás. Meu pai me avisou que aquele homem era Cicero Damata Filho, um dos fazendeiros mais ricos do local. Ele riu, e quando nos sentamos no caminhãozinho, ele me cutucou com o cotovelo. Sem querer, olhei para fora, e Cícero estava encostado na porta da venda, olhando para nós, ou melhor, para mim. Meu pai ligou o caminhão e fomos embora.

Quando chegamos em casa, ele imediatamente contou o ocorrido para minha mãe, e ela arregalou os olhos de surpresa. Eu, com meu coração romântico, fui lá para fora, e sob a sombra de um enorme jatobá, comecei a sonhar com o dia em que aquele moço bonito viria para levar-me embora com ele... ah, se eu pudesse ter sabido!

Endora apoiou a cabeça em uma das mãos, num gesto de tristeza. Décio olhou o relógio: quase dez e trinta da manhã. Pausou a gravação:

-Está cansada, Endora? Quer continuar mais tarde?

-Não, eu estou bem. Não sei se estarei aqui mais tarde para contar a minha história, rapaz. Deixe-me continuar, e não me interrompa mais.

Ela olhou pela janela, e naquele instante, um vento fez com que a persiana batesse, escurecendo o ambiente. Décio levantou-se para abri-la novamente. Tratou de prendê-la daquela vez. Endora tomou fôlego:

-Aqueles encontros aconteceram ainda algumas vezes, antes que o pai de Cícero aparecesse com ele na nossa fazenda a fim de pedir a minha mão. Inocentes, ficamos tão felizes que nem percebemos as más intenções deles. Eu estava apaixonada, e meus pais finalmente teriam a ajuda que precisavam. Assinaram muitos papéis sem ler, assim que eu e Cícero os casamos, pois confiavam no genro. Meus pais continuaram morando conosco na casa grande, agora ampliada e totalmente nova. A casa da fazenda é esta que você vê hoje, mas naqueles tempos, era a casa mais bonita do local.  A fazenda voltou a progredir, pois eles a reformaram, trouxeram novos trabalhadores, fizeram irrigação e usaram técnicas mais modernas de plantio. As chuvas voltaram, coroando o sucesso. Cícero me tratava muito bem, e eu era feliz e apaixonada. Apenas não conseguira estabelecer uma boa relação com meus sogros, que moravam conosco, pois eles eram pessoas extremamente frias e até cruéis. Meus pais também fizeram de tudo para começar uma amizade com eles, mas eles os olhavam como se meus pais fossem pessoas inferiores, e mal falavam com eles, preferindo até mesmo fazer suas refeições isolados na varanda. Não comiam conosco. Várias vezes, eu vira meu sogro maltratando os cavalos da fazenda e também os empregados. Bastava que alguém cometesse um erro para ser veementemente humilhado por elee por minha sogra, e demitido sem direito a nada! Comecei a ouvir histórias a respeito da maneira como administravam os seus negócios, e passei a teme-los. Escutei falar de competidores que eles supostamente mandaram matar, assumindo suas fazendas, que compraram barato em leilões. Eu não sabia quais histórias eram verdadeiras, e um dia, inocentemente, fui perguntar ao meu marido sobre elas. Ele ficou furioso! Aquela foi a primeira vez que ele me bateu.

Endora ficou por um tempo olhando o vazio, as lembranças daqueles acontecimentos sobre as rugas da testa.

-Eu não perguntei de novo, mas a partir daquele dia, meu marido começou a me tratar com cada vez mais frieza. Certa vez, meu pai teve uma briga feia com o pai dele por causa de um cavalo que ele estava surrando sem piedade. Meu pai interferiu, os dois rolaram em uma briga e Décio teve que separá-los. Ficou ao lado do pai, mesmo após saber do motivo da briga. Ainda disse que um cavalo não era motivo para que destratassem seu pai.

No dia seguinte, fez com que meus pais se mudassem para uma casinha de empregados, nas imediações da fazenda.

-E seu pai não protestou?

Ela demorou um pouco a responder, tomando mais um pouco de água.

-Sim, mas então Décio mostrou-lhe os documentos que ele havia assinado sem ler, nos quais passava para ele tudo o que tinha. E então eles foram expulsos para aquela casinha, sem direito a nada! Eu reclamei, protestei, e tudo o que consegui, foi mais uma surra. Depois daquela, meus sogros passaram a me bater também. Me obrigavam a fazer a limpeza como se eu fosse uma criada. Tornei-me uma criada dentro de minha própria casa! Mas quando os parentes deles vinham para passar aquelas infernais temporadas na fazenda, Décio me obrigava a bancar a esposa feliz e servil. Mandava virem vestidos da cidade, contratava uma cabeleireira chamada Margarete, com quem eu sabia que ele andava dormindo, para pentear meus cabelos. Ela também tinha medo dele, e acabamos ficando amigas, até que ele descobriu tudo e ela nunca mais apareceu.

-E o que foi feito dela?

-Não sei... Margarete não tinha família, ninguém procurou por ela... ela simplesmente sumiu.
Décio imediatamente percebeu o que poderia ter acontecido com a tal Margarete, e um arrepio percorreu sua espinha. Aquela casa era muito sinistra, e aquelas pessoas eram muito diferentes das pessoas com as quais ele estava acostumado a lidar. Mas Sophie exercia sobre ele um fascínio que nenhuma outra mulher exercera. Enquanto ele estava perdido naqueles pensamentos, a voz de Endora o trouxe de volta à realidade:

-Eu passei a ficar muitas horas do lado de fora da fazenda, passeando pelos jardins... e foi quando eu conheci o grande amor da minha vida... seu nome era Ruy. Ele um jardineiro novo, que Cícero trouxera de outra de suas fazendas. Ele me olhava quando eu passava, e um dia, ele me trouxe um ramo de flores do campo, dizendo que era para que eu as colocasse em um vaso bem bonito, para alegrar a casa. Agradeci, mas sem querer, acabei confessando que seria muito difícil fazer com que aquela casa se alegrasse. Ele ficou surpreso com a minha resposta, e acabei contando a ele sobre meu martírio. Ficamos amigos. Naquele mesmo dia, eu fiquei sabendo da doença de meu pai. Eu estava fragilizada, e ele passou a ser a única pessoa que conversava comigo.

Endora enxugou uma lágrima furtiva com uma das mãos, respirou fundo e continuou:

-Passamos a nos encontrar em um curral abandonado, que ficava a uns três quilômetros da casa principal. Tínhamos muito cuidado, e não nos víamos todos os dias, apenas quando Décio estava ausente, viajando a negócios. Mas as viagens dele foram se tornando cada vez mais constantes. Minha mãe cuidava de meu pai doente, e não sabia de nada. É claro, acabamos virando amantes. Foi a melhor época de minha vida. Não me lembro de ter vivido nada melhor.

-E foram amantes por quanto tempo, Endora?

Ela olhou para ele, despertando de suas lembranças:

-Dois anos e meio. Até que eu engravidei. Cícero não tinha relações comigo há anos, e sabia que não era o pai de meu filho. Ruy queria que fugíssemos juntos, mas eu temia o que poderia acontecer `a minha mãe se o fizéssemos. Além do mais, já convivera tempo suficiente com aquelas pessoas para saber que eles iriam atrás de nós, nos achariam e nos matariam. Escondi a gravidez o quanto eu pude... ainda bem que meu pai morreu antes que alguém ficasse sabendo, ou teria morrido de vergonha do que me aconteceu depois...

-E o que aconteceu?

-Meu pai morreu, e minha mãe foi admitida na casa grande novamente, para trabalhar de empregada, embora meus sogros dissessem que o faziam por misericórdia. Ela dormia em um quartinho junto à cozinha. Eu gostaria de ter feito alguma coisa para ajuda-la, mas não podia... bem, um dia, Cícero voltou de uma de suas viagens de surpresa, e me pegou terminando de tomar um banho. Eu me enrolei como pude na toalha... mas ele notou minha barriga de cinco meses de gravidez. Ele ficou furioso, e me bateu muito naquele dia!

-Mas você estava grávida!

-Isso não fazia nenhuma diferença para ele. Depois, ele pensou melhor e achou que ninguém deveria saber. Seria uma desonra para ele e sua família. Fingiríamos que o filho era dele. Ao mesmo tempo, ele me fez confessar quem era o pai da criança, ameaçando mandar minha mãe para o olho da rua se eu não confessasse. Em uma sessão de torturas, na qual ele puxava meu cabelo, dava tapas em meu rosto e ameaçava chutar minha barriga, acabei gritando o nome de Ruy. Ele me soltou imediatamente, e saiu do quarto trancando a porta. Eu estava muito machucada. Consegui arrastar-me para a cama e fiquei rezando para que o pior não acontecesse. Acabei adormecendo, após chorar muito. Ele voltou à noite, e me acordou com um safanão, e disse: “Que o nome deste cabra nunca mais seja pronunciado nesta casa!” Eu quis saber o que ele tinha feito, mas ele apenas repetiu sua ordem, desta vez, com a mão fechada pressionando meu rosto. Eu me calei.

-E o que aconteceu com Ruy?

Endora olhou para as próprias mãos, que estavam cruzadas sobre a mesa empoeirada.

-Eu não sei. Nunca mais o vi, ou soube dele. Mas você deve imaginar o que aconteceu. Então... meu filho nasceu. E foi tirado de mim ainda bebê, aos cinco meses. Pareceu-me que Cícero queria que eu me apegasse a ele antes de tirá-lo de mim. Nunca soube para onde ele foi levado, se está vivo... se ainda existe, se ele é hoje um homem feito. Eu o chamei de Teófilo. Meu pequeno Téo. Um dia eu acordei, e ele não estava mais lá. Gritei, chorei, exigi ter meu filho de volta. Minha mãe temia por mim, e pedia que pelo amor de Deus, eu me calasse. Meus sogros repetiam apenas que meu filho morrera. Que eu deveria esquecê-lo. Cícero partiu em uma longa viagem.

-Você não foi à polícia?

-Fazer o quê lá? Eles dominavam a cidade toda! Aqueles eram os tempos dos coronéis, o delgado era gente deles, o prefeito também. Meu filho nascera em casa, amparado pela minha sogra. Minha mãe não pode participar do parto. Ele não tinha deixado que eu batizasse meu bebê, e nem que eu o levasse para fora da casa grande. Éramos como prisioneiros! E eu não tinha nenhuma prova ou documento que dissesse que eu tivera um filho. Era a palavra deles contra a minha!

-Mas você podia ter... alguém deveria saber que você tivera um filho!

Endora olhou-o, dizendo com rispidez:

-Nenhum empregado da fazenda ficaria a meu favor. Todos temiam aquela família! Eu não tive outra saída, a não ser sofrer em silêncio... e um ano depois daquilo, minha mãe morreu. Sofreu uma queda da escada. Mas eu nunca soube o quanto aquela queda foi acidental ou não.

Décio estava apavorado! Agora compreendia tudo o que tinha acontecido, e pensou que, se fosse com ele, talvez tivesse matado toda aquela família também, com as próprias mãos, e não com veneno. Nunca tinha escutado uma história tão absurdamente triste e cruel. Quando olhou para Endora novamente, viu que ela estava extremamente pálida, e correu até ela, amparando-a na cadeira ao mesmo tempo que gritava por Sophie. As duas entraram na sala correndo, e ao depararem com 
Endora a ponto de desmaiar, puseram-na na cadeira de rodas e com a ajuda de Décio, levaram-na para cima, colocando-a na cama. Diana administrou-lhe alguns comprimidos para dor, e fez com que ela tomasse uma caneca de suco de frutas, que ela deixou antes da metade.
Enquanto assistia, atônito e preocupado, enquanto Endora mergulhava em um sono profundo, Décio indagou:

-Sophie, não seria melhor leva-la a um hospital?

Sophie dirigiu-lhe um olhar frio:

-Não, ela quer morrer em casa, e nos fez prometer que não morreria cheia de tubos e fios em um hospital.

Ele ainda ficou alguns minutos, de braços cruzados no canto do quarto, esperando que alguém lhe dissesse alguma coisa, mas Diana, muda e discreta, estava muito ocupada cuidando das coisas de Endora, e não lhe disse nada. Após alguns minutos, Sophie, que olhava o rosto pálido da mãe sentada ao seu lado na cama, pareceu lembrar-se que ele estava ali, e disse-lhe:

-Acho melhor você ir embora, Décio.

Aquilo não fora uma sugestão. Décio balançou a cabeça, e antes de sair, ainda tocou-a de leve no ombro, sentindo sua tensão sob os dedos:

-Se precisar de mim, deixei meu número na mesinha de cabeceira.

Ela não olhou para ele enquanto ele saía do quarto. Décio concluiu que o convite para o almoço não estava mais de pé, e saiu. Também achou melhor não pedir um carro emprestado, já que elas poderiam precisar dele, e voltou para casa à pé.

Ao chegar lá, cansado e suado após quase duas horas de caminhada sob o sol escaldante, abriu o portão da casinha que alugara de Marta e levou um tremendo susto ao deparar com Brian, seu meio-irmão fugitivo, sentado nos degraus da entrada.



(continua)










2 comentários:

  1. KKKK, GENTE.

    ANA, ME RESPONDE. COMO CONSEGUE TER TANTAS SURPRESAS!!
    AGORA, QUEM É O FILHO QUE FOI TIRADO DELA. E ESSE BRIAN AGORA. QUE O QUE???

    AMANDO!! BJS

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  2. É, Ana, existem pessoas que são extremamente más e perversas.
    Quanta maldade fizeram à Endora, não podemos julgar sem saber...
    Até o próximo encontro, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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