segunda-feira, 5 de setembro de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - PARTE IV









FEITIÇOS DE AMOR – PARTE IV


Papai entrou na sala, e olhando em volta, logo sentiu o clima de tensão. Mamãe olhou-o nos olhos e estendeu a mão. Ele caminhou até ela silenciosamente, segurando a mão estendida, e apertando-a afetuosamente. Sentou-se no braço da poltrona ao lado dela, e os dois trocaram um olhar de cumplicidade. Ele sabia do que estávamos falando, e sua voz grave ressoou pela sala:

-Acabo de vir da casa de Nestor e Joana. Eles me disseram o que aconteceu. Vocês duas tem razão, já é hora de saberem de toda essa história. Vó Duda também tem razão. Quem sabe, após este relato, não nos sentiremos mais próximos? (dissera aquela última frase olhando para mamãe).

 Ela pareceu confortada e fortalecida pela presença dele, e começou aquele relato sobre as coisas que deixara enterradas no passado, e sobre os medos que elas sempre causaram. Notávamos o quanto era difícil para ela falar sobre aquilo – é sempre difícil admitir culpas e despertar velhos fantasmas. 
Assim, ninguém a interrompeu. 

-Eu me apaixonei por seu pai assim que vi Maya entrando com ele, de mãos dadas. Eu não pude evitar. Quis negar para mim mesma. Entendam, não foi uma coisa que eu escolhi! Era uma tarde de domingo, e todos a aguardávamos. Mamãe tinha preparado um lanche maravilhoso para todos, e a chegada de Maya para nos apresentar aquele que ela dissera ser o homem de sua vida, com quem desejava casar-se, era ansiosamente aguardada. Eu pretendia me redimir de minhas culpas e erros com ela, e aceita-la, finalmente, como minha irmã. 

Papai acariciou a nuca de mamãe, encorajando-a.

-Ele nem notou minha presença... cumprimentou-me, como um cunhado ao ser apresentado à irmã de sua namorada. Não notei nada de diferente em seu olhar. Mas ao tocar sua mão, senti um arrepio de eletricidade, que percorreu todo o meu corpo. Adorei suas mãos enormes, apreciei sua altura, o porte do seu corpo, o tom grave da voz. Seu pai sempre foi um homem muito bonito, meninas. A tarde ocorreu como previsto: nós nos sentamos e conversamos, e eu tentei agir naturalmente. Mas passei a ver Maya como uma rival que eu teria que derrotar. Tentei me conter, mas desde aquele instante, eu sabia que teria que ter Berto para mim, que estava tudo errado: ele era para ser meu, e não dela. 

Mamãe olhou papai nos olhos, e continuou:
-Conforme os dias passavam, mais aquela certeza me dominava. Eu fazia de tudo para ficar à sós com ele, e conversávamos muito; mas ele só me dedicava a atenção de um irmão. Aquilo me deixava exasperada! Papai um dia entrou na sala sem que nós víssemos, enquanto Maya ajudava mamãe na cozinha e eu tinha ficado à sós com Berto. Não sei durante quanto tempo ele nos observou, mas naquela noite, quando todos dormiam, mamãe entrou em meu quarto e me disse que papai tinha presenciado uma cena da qual não gostara: eu tentava seduzir Berto. Perguntou-me se era verdade, e eu neguei veementemente. Ela foi dormir, mas passou a observar-me cuidadosamente a partir daquela conversa. E chegou às suas próprias conclusões, baseada no óbvio. Ela me repreendeu, dizendo que eu não tinha o direito de estragar mais uma vez, a felicidade de Maya, e que aquilo não passava de uma disputa infantil. Mas eu admiti tudo, confessei que estava apaixonada por Berto e que não ia desistir dele por nada. E que ela não tinha o direito de me condenar por tentar. É claro, Maya não ficou sabendo daquela conversa! 

Mamãe respirou fundo, e continuou seu relato, olhando para o chão. 

-E então, um dia, Maya percebeu minha tentativa. Tínhamos vindo de uma festa de aniversário na casa de amigos, e eu bebi um pouco. Estava... um pouco alegre, e também meio-tonta. Ela e Berto  me ajudaram a chegar em casa. Quando estávamos na sala, eu apoiada por eles, virei a cabeça e beijei Berto na boca. Na frente de Maya. Ele riu, tentando deixar tudo menos complicado, e repetia sempre que eu estava bêbada. Mas eu não estava: tinha apenas bebido um pouquinho, e sabia muito bem o que estava fazendo. Achava que se o beijasse, ele perceberia que era a mim que ele realmente queria. Maya exasperou-se, e começou a me acusar de deslealdade. Nós acabamos brigando feio, e papai e mamãe acordaram, e vieram separar a briga. Berto foi embora a pedido de papai.

Depois daquilo, Berto mantinha distância de mim, a pedido de Maya, e nosso relacionamento voltou a ser ruim; aliás, pior do que era, pois dessa vez, a raiva não era unilateral. 

Ela fez silêncio. Vimos que mamãe estava muito embaraçada, e era como se algo estivesse entalado 
em sua garganta. 

-Daí eles marcaram o casamento, e eu me desesperei...

Papai interrompeu-a:

-Naquela noite, quando Agnes me beijou, eu senti uma coisa forte, diferente do que eu sentia por Maya. Mas é claro que eu não queria admitir. Já vinha sentindo antes. Sua mãe não acredita, mas quando eu olhei para ela pela primeira vez, também achei que poderia apaixonar-me por ela, e fiquei confuso. Mas por razões óbvias, eu tentei negar a mim mesmo. Devia respeito à Maya e à sua família. Soquei meu sentimento tão profundamente, que realmente acreditei ainda estar apaixonado por Maya, e depois do beijo, achei melhor marcar logo o casamento. E não foi por causa de Maya que mantive distância de Agnes desde aquela noite, ela nunca me pediu isso, embora sua mãe também não acredite; foi por causa de mim mesmo, por medo dos meus sentimentos. Não queria ferir Maya, pois realmente gostava muito dela, mas apaixonei-me por sua mãe, e ela me obrigou a admitir isso. Desfiz o noivado com Maya, e casei-me meses depois com sua mãe. Então, vó Duda achou melhor nos afastarmos de novo, e vendeu sua casa, comprando esta onde moramos, e também a lojinha da família no centro. Maya estava muito magoada, e vó Duda mandou-a em uma viagem pela Europa com o pai, ficando aqui para resolver toda a documentação da venda da casa e da nossa mudança para cá. Logo depois da viagem, ele juntou-se a nós, mas meses mais tarde, veio a falecer. 

Perguntei:

-E isso é tudo, papai? O que aconteceu com Tia Maya?

Mamãe respondeu:

-Ela casou-se com um espanhol, e passou a morar na Espanha, mas quatro anos depois, divorciaram-se. Eu e seu pai nos casáramos, e já tínhamos você, Eleanor, e Flora, pequenininhas. Maya veio visitar-nos aqui em Rio Verde, e garantiu que as coisas do passado deveriam ficar para trás. Eu a recebi com carinho, e acreditei no que ela dizia. Porém... crianças, é muito difícil para mim conversar sobre essas coisas com vocês...

Papai tomou-lhe a fala:

-O que sua mãe quer dizer, é que eu e sua tia Maya acabamos tendo um caso. Durou dois meses, o tempo que ela passou aqui em Rio Verde. 

Uma forte tensão tomou conta da atmosfera na sala. Eu e Flora nos entreolhamos, mal acreditando no que acabáramos de ouvir. Tutti e Greco ergueram as cabeças, e começaram a abanar suas caudas, olhando para um canto escuro da sala. Eu olhei naquela direção e deparei com vó Duda de pé, apoiada em um canto da parede. Ela acendeu a luz. 

Vó Duda entrou na sala, ainda de roupão. Estava um pouco pálida, não parecia nada bem, e todos olhamos para ela. Mamãe tentou ajudá-la a sentar-se, mas ela negou com um aceno de mão e  ajeitou-se na poltrona oposta a dos meus pais, dizendo:

-Mas existe uma parte neste segredo que nem você conhece, Berto, e deveria conhecer. Eu venho guardado este segredo há muito tempo, achando que talvez seja melhor para todos. Mas isto tem mantido Maya afastada do restante da família, como se ela devesse ser ignorada por todos. Nem todo o mal que ocorreu nesta família foi por culpa dela. 

Vó Duda olhou para mamãe, sustentando um olhar implacável, obrigando-a a dizer o que disse em seguida. Ela sabia que a hora da verdade tinha chegado, e que era inútil continuar tentando escondê-la. Ela segurou a mão de papai com força, dizendo: 

-Berto, não sei se vai me perdoar depois do que tenho a dizer-lhe... 

E olhando para nós:

-Meninas... durante todo este tempo em que vivemos nesta casa, eu me aperfeiçoei na arte das ervas. Passei a estudar as forças da terra e da natureza, e isso me deu conhecimento para ajudar as pessoas. É uma forma de me redimir do que eu fiz... da coisa medonha que eu fiz. 

Eu mal respirava, e meu coração batia descompassado. Olhei para Flora, e vi que ela estava da mesma forma que eu, e esticando o braço, pus minha mão sobre a dela, que estava fria. Mamãe reprimiu um soluço, e escondeu o rosto nas mãos antes de continuar. Depois, recompôs-se e respirando fundo, continuou sua história:

-Naquela época, eu encomendei um feitiço. Procurei uma mulher que se dizia feiticeira, e pedi-lhe que fizesse um feitiço de amor sobre Berto para que ele viesse a me amar e esquecesse Maya. 

Papai olhou-a, apavorado. É claro que ele não conhecia aquela parte da história! 

-O que? Como assim... você fez um feitiço para me prender?

Mamãe concordou com a cabeça, sem olhar para ele. Papai levantou-se, indo até a janela e escancarando-a, colocou a cabeça para fora e tomou uma grande lufada de ar fresco. Vovó ergue-se da poltrona. Notei o quanto ela tinha envelhecido naqueles poucos dias. Tinha emagrecido, e já não trazia mais o imponente coque na nuca, mas tinha os cabelos cortados bem curtos, rentes ao couro cabeludo. Caminhou até mamãe, e inclinando o corpo, deu-lhe tapinhas na mão, consolando-a. 

-Você fez bem, filha querida. Agora, está livre. Mas por favor, chame Maya até aqui, pois temo que se você demorar muito, será tarde demais. 

Depois, ela foi caminhando devagar de volta para o quarto, e os cães pularam do sofá e a seguiram. 
Papai parecia estar em transe, parado à janela olhando os últimos resquícios de luz daquele dia difícil. Pensativo. Talvez estivesse tentando tomar alguma decisão, e eu tive muito medo sobre qual ela seria. 
Em desespero, eu me ergui do sofá, e passei a rir daquilo tudo, chamando-os de volta à realidade:

-Mas gente, todo mundo sabe que essa bobagem não funciona, não é de verdade. Não é, pai? Não é mãe? Essa coisa de feitiço de amor... tudo bobagem! Estão juntos porque se amam, e vão continuar juntos, certo? Chamei Flora com um aceno de mão, e ela juntou-se a mim, hesitante. Eu sabia que mais do que ninguém, Flora acreditava nos feitiços e poções de mamãe; tanto, que ela mesma estava tentando aprendê-los. De mãos dadas com ela, eu continuei meu pequeno discurso:

-Gente... olha só, nós somos uma família feliz! Vó Duda adoeceu, é verdade, mas ainda temos muita coisa para viver juntos! Mãe, chama logo a Tia Maya, e ela virá, falará com vó Duda, todos poderemos fazer as pazes e perdoar uns aos outros. E então, tudo vai voltar a ser como antes! Olha, mãe, ninguém aqui está condenando a senhora... a senhora agiu num momento de desespero, feitiços não funcionam, a senhora os faz para confortar as almas das pessoas que vem aqui, desesperadas como a senhora. Dá a elas um pouco de fé nelas mesmas, e com essa fé, elas agem e resolvem os próprios problemas. 

Mamãe me olhou, desanimada:

-Eleanor, querida, feitiços funcionam. Nunca duvide da força do pensamento, do poder das energias que agem (ela fez um gesto com as mãos, apontando para o ar e girado os punhos) em volta de nós. É possível alterar a realidade, mas para tudo há um preço a se pagar. E eu estou no momento do resgate. Não devo lamentar mais, e sim, aceitar as consequências dos meus atos. (E virando-se para Flora) Aprenda, Flora, a não cometer os mesmos erros que eu cometi. Jamais aceite fazer coisas assim. Siga um caminho limpo, e as boas energias sempre a acompanharão. 

Eu estava farta daquela conversa. Meu pai estava de costas para nós, ainda à janela. Flora não dizia nada, parecia uma boneca de pano apática, e mamãe ficava repetindo aquelas coisas sobre energias e feitiços e poções. Achei que eu estava na cena de algum filme de mistério, ou de terror! Precisava sair dali, espairecer. Precisava de um pouco de tempo sozinha para digerir aquilo tudo. Virei-me de costas, caminhei até a porta e saí, fechando-a com um estrondo. 

Comecei a caminhar. A noite estava fresca e perfumada pela floração das Damas da Noite plantadas há muito tempo por vó Duda, e o céu já se cobria de milhões de estrelas. Lembrei-me de uma crônica que eu adorava ler, em um dos livros de mamãe; uma crônica de Richard Bach chamada “O Sempre Céu.” Nela, ele dizia que não importa o que aconteça aqui em baixo, o céu continua, sempre o mesmo, imbatível, inatingível. E que isso dava muita paz, se pensássemos bem. Respirei fundo, passando as mãos pelos cabelos e sacudindo-as longe do corpo, como mamãe nos ensinara ao nos sentirmos ‘pesadas.’  Ganhei a rua, passando pelo nosso portãozinho branco de madeira. Já tinha caminhado uns cinco minutos, quando ouvi passos atrás de mim. Era Dora. Ela não disse nada: apenas me alcançou, e segurou minha mão. Continuamos caminhando assim durante uns bons dez minutos, e finalmente, senti a garganta doer e derramei todas as lágrimas que estava tentando segurar. Ela me abraçou. Senti o conforto do seu corpo um pouco roliço me aconchegando.

-Foi difícil, hein?

Concordei com a cabeça. Achei que ela tinha o direito de saber, tanto quanto todos nós:

-É... sabe o que aconteceu, Dora? Mamãe fez um feitiço de amor para separara papai e tia Maya, há muitos anos...

Ela riu, incrédula:

-Sabe que não acredito muito nessas coisas.

-Ou você acredita ou não acredita. Não dá para acreditar mais ou menos.

-Bem, você sempre me disse que não acreditava... ou acredita?

-Nem sei mais. Mas, pela reação de papai, acho que ele acredita. Ficou lá, parado. Não disse nada, mas notei que ele estava confuso e zangado. 

-E agora?

Encolhi os ombros:

-Não sei. Sinceramente, não sei... parece que está tudo desmoronando ultimamente, Dora. A doença de vó Duda, essa história macabra de família. Só notícias ruins!

-É a vida. Mas nem tudo é ruim, sabe.

Olhei para ela, e vi que ela tentava reprimir um sorriso de alegria. Pensei: alegria, a essa hora? 

Mesmo assim, encorajei-a:

-O que você quer dizer? Está tentando me contar alguma coisa?

Ela concordou com a cabeça, e dando um risinho, disse:

-Depois que vocês saíram, recebi uma mensagem. Desculpa se não te contei antes, mas é que eu não queria contar pras pessoas e depois ter que passar um vexame quando elas me perguntassem, e eu tivesse que dizer que não consegui.

-O que você conseguiu? Fala logo!

Ela abriu os braços, e me agarrou. Surpresa, deixei-me ser agarrada por ela, e quando ela me soltou, quase gritou:

-Fui selecionada para cantar no Crystal Voices! 

Eu sabia que o Crystal Voices era um famoso programa de calouros, que só selecionava os melhores. Dora já tinha me falado sobre mandar um vídeo para eles antes, mas eu não levei fé, embora a tivesse incentivado. Dora continuou:

-Mandei o vídeo no mês retrasado. Já tinha até esquecido, mas no mês passado eles me ligaram e...

-Espere um momento: mês passado? E mês retrasado? E você não me contou nada?

Eu me senti ferida e excluída, fiz cara feia e fiz questão de ser uma verdadeira estraga prazeres e demonstrar. Dora tentou consertar a situação:

-É que eu não tinha certeza se seria selecionada, como você já sabe. São mais de cem mil candidatos! Como eu poderia saber?

-Mas você mandou o vídeo há três meses, e agora me disse que há um mês eles telefonaram, e... a mensagem, você a recebeu hoje à tarde. O que ela diz?

-Bem, ela diz que eu vou fazer um teste ao vivo!

Eu realmente tentei ficar feliz por ela, mas me sentia amarga e traída. Fechei a cara, e disse a pior coisa que eu poderia ter dito:

-Muito bem! Pelo menos, alguém aqui está feliz!

A mágoa que apareceu no rosto de Dora trouxe lágrimas aos seus olhos, e ela me disse, a voz embargada:

-Pensei que ficaria feliz por mim.

Percebei a idiotice que eu tinha feito, e abracei-a, dizendo sem muito entusiasmo, mas tentando dar alguma ênfase ao que dizia:

-Eu estou, Dora, eu estou! Me desculpe.. é que hoje foi um dia muito difícil. Parabéns! 

Enquanto eu dizia aquelas palavras, tinha certeza absoluta de que não havia motivos para que eu me alarmasse; afinal, ela seria desclassificada durante o teste ao vivo mesmo! Não pude deixar de pensar daquela forma mesquinha, mas disfarcei. Dentro de mim, eu dizia a mim mesma que estava com medo de perder minha prima e amiga. Tentava negar a minha inveja. Dora me afastou:

-Eu conheço você, e sei que não está feliz por mim, Eleanor. Mas eu vou te perdoar, pois sei que você está passando por momentos difíceis. Amanhã nos falamos.

E ela voltou pelo caminho que tínhamos feito, me deixando plantada no meio da rua escura e quase deserta. A noite já estava bastante escura, e eu fiquei ali, olhando-a afastar-se de mim cada vez mais, a blusa branca mergulhando na escuridão até desaparecer na curva do caminho. Ainda fiquei por ali durante algum tempo, mas logo comecei a sentir frio.

Enquanto eu mesma também voltava para casa, ia pensando no quanto Dora tinha sido egoísta, contando-me sobre a felicidade dela em um dos piores momentos da minha vida. Ela não tinha o direito de esfregar toda aquela alegria na minha cara! No dia seguinte, na escola, eu tentaria ignorá-la. Daria um gelo nela, até que me pedisse desculpas. Naquele momento, fiz a única coisa que podia ter feito: voltei para casa. Mas quando cheguei à porta, senti um clima tão pesado que ao invés de entrar, dei a volta na casa e fui para o estúdio onde meu pai pintava seus quadros. Enquanto me aproximava, vi a luz acesa sob a greta da porta e soube que ele estava lá. Dei meia-volta, não querendo atrapalhar, pois entendi que se ele estava ali, era porque desejava ficar sozinho. Mas antes de me afastar, a curiosidade fez com que eu me aproximasse e espiasse pela janelinha. Para meu azar, fiz aquilo no exato momento em que papai, sentado em uma poltrona, olhava naquela direção. Ele viu meu rosto, e sobressaltou-se. Escondi a cara depressa, e comecei a voltar pelo caminho de seixos, mas ele abriu a porta do estúdio:

-Eleanor! Volte, querida.

Fechei os olhos por um instante. Me sentia constrangida por ter sido pega espiando. Me virei e comecei a andar em direção a ele.

-Desculpe, pai, eu... não sabia que você estava aqui. eu fiquei preocupada e quis saber se você estava bem.

-Estou bem, querida. Quer entrar?

Ele abriu passagem para mim. Me surpreendi ao ver que Flora estava enroscada na outra poltrona, adormecida. Eu me sentei num almofadão velho, que ficava no canto da parede. Papai retomou seu lugar na poltrona. Eu fiquei quieta, brincando com meus anéis, colocando-os e retirando-os dos dedos. Papai estava bebendo um pouco de gim. O silêncio foi quebrado por um ronco de Flora, que nos fez rir. Perguntei:

-E agora?

Ele encolheu os ombros.

-E agora o quê?

-Você e mamãe.

Papai coçou a testa:

-Acho que eu e ela precisamos conversar, só isso. Mas vou deixar que a noite coloque tudo no lugar. Conversar de cabeça quente não é bom, Eleanor.

Concordei com a cabeça.

-Você acredita em feitiços de amor, pai?

-A ideia não é exatamente se eu acredito ou deixo de acreditar, filha. O problema, é que sua mãe acredita. Para ela, tomar alguém de outra pessoa através de um feitiço é possível. Isso faz com que a intenção dela não tenha sido boa naquela época. Ela manipulou os sentimentos de duas pessoas para conseguir algo que queria, e isto não está certo. Vai contra tudo em que eu acredito, e em tudo que eu gostaria que minhas duas filhas acreditassem. E você sabe que Flora, mais do que ninguém, acredita nessas coisas. Não quero que ela cresça achando que tem o direito de interferir nas vidas de outras pessoas. 

Tive que concordar com ele mais uma vez. Aquilo não estava certo. Mas insisti em saber se ele acreditava em feitiços de amor.

-Bem, como sua mãe disse, existem campos energéticos entre as pessoas, e nisto eu acredito. Acho que uma força de vontade muito grande, pode realmente interferir nos pensamentos e atitudes alheias. Alguém com uma vontade forte, pensamento concentrado e as palavras certas (ou erradas) pode fazer muita coisa boa e muita coisa ruim. 

-Acho que sim. Mas se ela o fez, foi porque ama você, pai.

Ele ficou muito sério:

-Amar não nos dá o direito de fazer lavagens cerebrais nas pessoas. Lembre-se sempre disso.
Mais uma vez, concordei com a cabeça. Levantei-me para ir dormir. Antes de sair, olhei para ele:

-Você não vem dormir, pai?

-Ele ficou meio sem jeito:

-Na verdade, acho que vou passar a noite aqui no estúdio mesmo. Preciso terminar um trabalho, uma encomenda para a galeria. 

Olhei em volta, e não vi nenhum quadro que eu soubesse ser uma encomenda para a galeria da cidade, mas fingi acreditar nele. Desejei-lhe boa noite, e fui para casa. Entrei; a sala estava vazia, e a casa, silenciosa. Ainda não era muito tarde – não passava das nove da noite. Antes de ir para o meu quarto, passei na cozinha, fiz um sanduíche, peguei um pouco de suco na geladeira e me sentei à mesa para comer. Levei um susto ao escutar a voz de vó Duda atrás de mim:

-Você perdeu o jantar hoje.

-Fui dar uma volta, vó. Precisa de alguma coisa?

-Se eu precisar, ainda posso pegar eu mesma. Não estou morrendo ainda.

Ri diante da costumeira dureza de Vó Duda. Sinal de que ela estava se sentindo bem. Ela deu a volta no cômodo e arrastou uma cadeira, sentando-se na minha frente.

-Sua mãe telefonou para Maya. Ela chega no final de semana. Tive que praticamente obriga-la, mas finalmente, ela me escutou. 

-Deve estar envergonhada pelo que fez com ela.

Ela ergueu um pouco a voz, mas sem deixar de murmurar, sacudindo o polegar na frente do rosto:

-Não julgue sua mãe, sua moleca. 

Não me atrevi a responder. Baixei os olhos e mordi meu sanduíche. Vó Duda riu:

-Eu sei que pode soar estranho, mas você fez uma cara engraçada agora... ainda meto medo em você?
Quase engasguei com o sanduíche:

-Medo? Nunca tive medo de você, só respeito, vó.

Ela concordou com a cabeça.

-Acho que eu fui muito dura com você e sua irmã. Tive medo de que vocês tivessem as mesmas deficiências na educação que eu cometi com a mãe de vocês. Quis que crescessem sendo mais amigas, mais responsáveis, e menos mimadas. Mimei Agnes demais... acho que eu queria compensar, de alguma forma, por ter dividido minha atenção entre Joana, ela e Maya, que caiu de paraquedas na nossa família. Também não quis fazer com que Maya se sentisse excluída, e por isso, quando as duas se desentendiam, eu ficava sempre do lado dela. Isso deixou Agnes ressentida. Queria chamar minha atenção e a tenção do pai, e por isso, competia com Maya. 

Achei estranho que minha avó estivesse discutindo sua relação com a filha logo comigo, sua neta de quinze anos. Mas deixei-a falar.

-Fiz o melhor que pude. Tanto com elas quanto com você e sua irmã. Mas nunca faltou amor para nenhuma de vocês, ouviu? Não precisa ter medo de mim, Eleanor.

Eu não sabia o que fazer com aquela inesperada declaração de amor, que me comoveu, e decidi ignorá-la. Tinha medo que meus nervos em frangalhos me fizessem chorar.

-Não tenho, vó. Só estou cansada, e a senhora me deu um susto, chegando assim de repente por trás de mim. Quer um chá? Acho que vou tomar um pouco.

Ela assentiu, e comecei a colocar a água para esquentar enquanto preparava as xícaras. Escutamos a porta de entrada, e o passo arrastado de Flora em direção ao quarto. Nos entreolhamos, como se perguntássemos se deveríamos chama-la para juntar-se a nós, e decidimos que não. Teríamos que acordar cedo na manhã seguinte para irmos à escola. Mudei de assunto:

-A Dora me disse que foi selecionada para o Crystal Voice, e vai fazer o teste ao vivo. 

Vó Duda sempre assistia ao programa, e vi seus olhos se arregalarem:

-Mas que ótima notícia! Ela deve estar muito feliz, e Joana e Nestor também. Esteve com eles hoje?

-Estive, mas só soube do programa agora à noite, quando encontrei com Dora no caminho de casa. 

Achei estranho eles não terem contado nada para a gente.

-Hum... você quer dizer que achou estranho que Dora não tivesse contado nada a você?

Ela me olhou com seus olhinhos perscrutadores. Nada passava em branco pela mente astuta de Vó 
Duda, e era o que eu mais gostava nela: a capacidade de escutar aquilo que não gostaríamos de dizer, e que não dizíamos. Aquilo tornava nossas vidas mais fáceis. Ou mais difíceis, às vezes.

-Na verdade, fiquei chateada, vó. 

-Chateada... ou enciumada?

Aquela pergunta – que era mais uma afirmação -  foi como um soco desferido de repente, que eu não esperava. Mal pude conter a vermelhidão do meu rosto, e evitando olhar para ela, comecei a servir o chá. 

-Eleanor, sei que você e Dora são melhores amigas, além de primas, ficar feliz pela felicidade de uma migo, é a maior prova de amizade.

-É, vó... mas contar aos amigos sobre o que acontece com você também é. Sinal de confiança, sabe.

-Não me venha com ironias, menina! Você sabe muito bem que está com ciúmes. Ou com inveja. Quem sabe.

Ela disse aquilo como se estivesse falando com ela mesma. Arregalei os olhos, e quase me engasguei com o chá. 

-Eu? Com inveja de Dora?

Ela continuou, sem tirar os olhos de mim.

-É sim, minha cara neta. Ela sempre esteve por aqui, disponível para brincar com você quando eram pequenas e você sentia vontade, ou para ajudá-la com seu dever de casa quando você tinha uma coisa melhor para fazer - pensa que eu nunca percebi? -, ou então para fazer coisas para você, e agora, essa coisa maravilhosa acontece com ela, o que pode significar que daqui por diante, ela terá sua própria vida para cuidar, e não será mais a sua babá. Estou certa?

Vó Duda era assim: rascantemente sincera. Só consegui ficar calada, as lágrimas quentes descendo sobre meu rosto vermelho de vergonha e indignação por não conseguir esconder aquela verdade dela, e agora, de mim mesma. Ela sorveu seu chá com um prazer mórbido, as goladas barulhentas descendo por sua garganta. Depois, estendeu a mão, dando com sua mão quente alguns tapinhas em minha mão que descansava sobre a mesa, branca e gelada:

-Você está crescendo, Eleanor. E crescer dói. O tempo dirá se você é realmente uma boa amiga ou não. Mas infelizmente, não estarei aqui para ver. Espero que você consiga respirar fundo e ficar ao lado de sua amiga enquanto ela faz sucesso. Esta não é uma prova fácil, porém. 

Eu nunca tinha visto as coisas por aquele lado. Depois que ela saiu, fiquei sentada à mesa durante algum tempo, pensando nas palavras de Vó Duda e no quanto ela tinha razão: é muito fácil ser amigo quando o outro precisa e está mais fraco do que nós, mas é difícil suportar o sucesso de alguém com quem nos acostumamos a dividir a vida, achando-nos sempre em melhor posição. Concluí que na verdade, eu às vezes até desprezara Dora: a amiga gordinha, sempre disponível e não muito bonita, que Deus compensara com o dom da música, enquanto eu era a mais bonita, a mais inteligente e a mais esperta. E agora, qual seria a posição dela em relação a mim? Se Dora ficasse mesmo famosa, será que ainda poderíamos ser amigas?

Eu tinha medo da resposta, não por ela, mas por mim.


(CONTINUA...)



2 comentários:

  1. Seus contos são muito especiais e prendem nossa atenção,
    obrigada, Ana, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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  2. Quem consegue sentir e perceber os laivos para normais que nos envolvem a todo instante por certo encontrará mais que tanto encanto nessas auras de amor que umas ervas e palavras conspiram e fazem acontecer... Amei o que senti...... Querida Ana!

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