terça-feira, 29 de janeiro de 2019

INOCÊNCIA - PARTE 1, CAPÍTULO III







SOBRE BERTA

Quando eu nasci, Berta tinha seis anos. Mamãe contava que começara a sentir as dores do parto na véspera do aniversário de Berta, e devido a correria, todos tinham se esquecido de comprar-lhe um presente. Até mesmo vovó, que ainda era viva naqueles tempos. Quando me trouxeram para casa (as pessoas contavam aquelas histórias achando muita graça, menos Berta, que escutava tudo de braços cruzados e cara fechada), mamãe pareceu se lembrar do aniversário de sua filha mais velha de  repente, e por falta de presente, sentou Berta no sofá, colocando-me no seu colo e dizendo: “Tome! Aqui está o seu melhor presente: uma irmãzinha!” Dizem que Berta pareceu confusa, e depois começou a chorar e berrar tão alto, que tiveram que me tirar do seu colo!

Nossos aniversários – meu, de Berta e de Cristina - eram comemorados juntos, já que havia apenas uma semana de diferença entre as datas de Berta e Cristina e  um mês de diferença entre as datas de Berta e eu, e minha irmã odiava ter que aturar as decorações nas festinhas. Cristina não se importava, e até ajudava nos detalhes.

Não sei se por causa do nosso começo traumático, sempre senti que Berta guardava um pouco de ressentimento contra mim. Sabia que ela me amava, assim como eu a amava muito, mas às vezes, ela agia de maneira um pouco cruel, e sabia ser competitiva – principalmente quanto à afeição de papai, de quem sentia muito ciúme. Mas para seu desgosto, papai sempre demonstrou um carinho enorme por mim. Ele me chamava de “Minha Bonequinha.” Até mesmo depois que me tornei adulta. É claro que ele amava Berta, mas às vezes, ele se esquecia de deixar aquilo bem claro para ela. Berta orbitava em volta dele, principalmente quando eu estava por perto. Ela o rodeava quando ele estava no escritório, lendo seu jornal, e eu brincava de recortar minhas bonecas de papel sobre a sua escrivaninha. Berta chegava por trás dele e o abraçava, cobrindo-o de beijos. Papai às vezes ralhava com ela em tom de brincadeira: “Hey! Desse jeito, você vai acabar me enforcando, menina!”

Aquilo era o suficiente para que Berta saísse da sala pisando duro e me olhando de soslaio, como se eu tivesse alguma culpa.

Papai adorava sair com a gente. Aos sábados, enquanto mamãe e Flora cuidavam da casa e preparavam o almoço, ele colocava a mim, Berta e Cristina no carro, e nos levava ao zoo, à praia ou a qualquer outro lugar que crianças adoravam. Às vezes ele nos levava para pescar no lago. Quando  meus tios Aurora e Antonio compraram uma casa de campo perto da nossa, ele também levava meus primos Joanna e Marcelo. Éramos cinco crianças ao todo, e Berta quase tinha um ataque de nervos se ela não viajasse no banco da frente, perto de papai. Nós nos ajeitávamos na traseira do Aero Willys de papai. Aqueles eram dias felizes! Por volta do meio-dia e meio, estávamos todos em casa, e corríamos para tomar banho antes do almoço. Eu e Berta tínhamos permissão para usar o banheiro da suíte dos nossos pais, que tinha uma banheira enorme, enquanto meus primos tomavam banho em sua casa e Cristina podia tomar banho na nossa casa, no banheiro do corredor. Ela adorava usar nosso banheiro, pois dizia que ele era grande e arejado, diferente do banheiro do apartamento sobre a garagem onde ela morava com os pais, que era pequeno e escuro, sem janelas, com apenas um pequeno basculante.

Depois almoçávamos todos juntos. Se o dia estivesse bonito, Flora e Eugênio armavam uma grande mesa no jardim, debaixo da jabuticabeira, e juntavam-se a nós. Aquelas tardes sempre terminavam com todo mundo dançando “Twist” no piso escorregadio da varanda. Às vezes, eu me afastava de todos e ficava sentada em um canto, observando tudo aquilo, sentindo uma saudade estranha e sem razão de ser. Intuitivamente, eu sabia que um dia tudo aquilo seriam apenas memórias... eu nem suspeitava, ainda, que a perda da minha inocência seria uma coisa gradativa, e que cada episódio causaria muita dor. Aqueles dias se aproximavam no horizonte. Vinham junto com as nuvens negras de chuva que os derramavam sobre o telhado feliz da nossa casa. Aos poucos, eles aguardavam nos cantos da casa, em volta do jardim, prontos para esperar a hora certa para destruir tudo.

Berta tinha muitos amigos na escola. Era muito popular, e muito bonita também, embora eu achasse que ela não fosse tão bonita quanto Cristina. Ela tinha uma personalidade alegre, quase esfuziante, dominadora. Uma líder nata. Aonde quer que Berta estivesse, estaria cercada de admiradores. Os rapazes se apaixonavam por ela facilmente, embora raramente fossem correspondidos, e as moças tentavam copiar seu modo de vestir e se pentear. Eu a admirava, mas a maneira condescendente e distante com a qual Berta me tratava, fazia com que eu me mantivesse longe. Eu queria muito que ela me amasse. Faria qualquer coisa para que aquilo acontecesse, e quanto mais eu tentava e fracassava, mais eu me aproximava de Cristina. Berta não me tratava mal; simplesmente me ignorava a maior parte do tempo. Quando eu forçava as circunstâncias para tentar ficar por perto, ela se irritava e me colocava para correr, dizendo que eu não passava de uma criança. Se eu conseguisse ficar longe dela e de seus amigos, e fizesse tudo o que ela queria (às vezes ela precisava de mim para que papai a deixasse ir a certos lugares aos quais não permitiria que fosse sozinha, principalmente quando começou a namorar Sebastian) ela me tratava muito bem. Se eu concordasse em fazer pequenas tarefas para ela, quando estava em casa rodeada de seus amigos, como ir até a cozinha e pedir que Flora preparasse um lanche para todos, ela me tratava bem e permitia que eu ficasse por perto observando, “desde que eu não fosse uma intrometida.”

Quando eu reclamava com mamãe sobre essas coisas, ela apenas dizia, sem dar muita atenção às minhas mazelas: “Sua irmã já é uma mocinha. É natural que ela queira estar entre pessoas da sua própria idade. Você precisa fazer seus próprios amigos, Yara.” E eu tentava. Mas acho que na tentativa de parecer-me com o que eu achava que Berta era, e de agir como ela agia, as outras crianças acabavam me achando autoritária e metida, se afastando de mim. Daí eu me agarrava à Joana, e ficava pendurada na saia de Cristina quando me sentia fragilizada.

Eu tinha poucos amigos na escola, e era muito comum que eu fosse excluída das festinhas. Muitas vezes, na segunda-feira, eu escutava os comentários dos colegas antes das aulas, enquanto eles falavam das festinhas de aniversário no final de semana anterior – as quais eu quase nunca era convidada. Eu sofria com aquilo, mas fingia não ligar.

Mas Berta era convidada para tudo. Tanto, que muitas vezes tinha dois eventos em uma só noite. Todos a queriam por perto. Eu crescia à sombra de minha irmã mais velha, amando-a e me sentindo sempre apagada junto a ela, que nada fazia para que eu me sentisse bem-vinda. Se eu sabia que ela gostava de mim, eram por causa das raras ocasiões em que ela me defendia do bullying no pátio da escola, e convencia mamãe a me comprar presentes caros de aniversário que ela sabia que eu gostaria de receber. Então eu me sentia no céu! Quando eu e Berta estávamos bem uma com a outra, eu era a pessoa mais feliz e realizada do mundo.

Mais velhas, os ciúmes e a impaciência de Berta diminuíram. Nos tornamos boas amigas. Mas eu não mais precisava da amizade dela tanto assim, pois crescera sem a atenção dela, e acabei me acostumando com aquilo. Então eu me sentia mais tranquila em relação a ela, sem a necessidade de chamar sua atenção ou conseguir sua aprovação. Por incrível que pareça, aquela atitude a trouxe para mais perto de mim – não sei se por curiosidade ou admiração. Com o tempo, compreendi que aquela mania de Berta de sempre fazer questão de estar cercada de pessoas, era carência, e não auto confiança. Ela liderava porque tinha medo de desaparecer; ela temia a solidão. Ela precisava estar no centro para saber quem ela era. Ela tinha uma necessidade quase mórbida de saber-se amada, pois ela se via dentro dos olhares alheios, e não diante do próprio espelho. Berta precisava de aprovação constante, e não sabia lidar com críticas ou fracassos.

Mesmo durante os muitos anos que passamos separadas, ela tentou me procurar poucas vezes, e não insistiu quando não lhe dei atenção. Na verdade, eu queria que ela tivesse insistido; mas Berta tinha medo de ser deixada ao relento. Ela não queria insistir, pois não suportava a rejeição. Não sabia lidar com uma pessoa que não fizesse exatamente o que ela queria, e eu não estava disposta a continuar fazendo. Eu pensei que ela tinha desistido de mim porque não me amava, mas não tinha sido por isso que ela simplesmente me deixou ir embora. Descobri isso muito mais tarde – quem sabe, tarde demais. É que ela não conseguia sentir-se rejeitada. É que ela me amava demais para isso.

Quando papai morreu, eu tinha vinte e cinco anos, e ela, trinta e um. Ela não derramou uma lágrima sequer durante o velório, enquanto eu simplesmente me desmanchava. Mas quando todos foram embora, encontrei-a sentada na sala escura, os olhos vermelhos, as mãos trêmulas. Eu não sabia que ela estava ali. Quando acendi a luz e deparei com ela ali sozinha, ela se levantou e veio até mim, implorando:


-Por favor, Yara, não vá embora... eu não sei ficar sozinha...

 Eu segurei as mãos dela, repetindo que ela jamais estaria sozinha, pois tinha Sebastian, tinha mamãe e tinha seus amigos. Ela ficou me encarando durante muito tempo, e vi quando parou de chorar e suas sobrancelhas se crisparam de dor. Na hora, eu não compreendi aquilo, não sabia por que ela me olhava como se eu não tivesse entendido alguma coisa... ela respirou fundo, suprimindo um novo soluço, e concordando com a cabeça, deixou a sala. Hoje eu entendo o que ela quis dizer com aquele gesto e aquela súplica: Era de mim que ela precisava. Era a mim que ela queria ter por perto. Ela abriria mão de tudo se eu apenas ficasse e a ajudasse a passar por tudo aquilo.

Quando Berta compreendeu a minha importância, eu compreendi que, apesar de importante, ela não era indispensável à minha vida. Entendi que era capaz de me virar sozinha, e foi ela quem me ensinou a não depender dela, a não confiar em ninguém. Quando ela finalmente compreendeu que precisava de mim, eu já não mais precisava dela. A vida é engraçada.

(continua...)





2 comentários:

  1. Oi Ana, a vida é mesmo engraçada, irmãos é bem isso que você relatou.
    Muitos beijos.

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  2. Brilhante texto/conto!! Amei

    Beijo...Boa noite!

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