terça-feira, 28 de abril de 2015

AS RUAS DAS ÁRVORES QUE CHORAM - HISTÓRIAS EM PETRÓPOLIS





Havia a Rua da Feira. Nunca soube, e até hoje não sei, o nome daquela rua. Só sei que era lá que eu ia com minha mãe uma ou duas vezes por semana, bem cedinho, quando o dia mal amanhecera. Saíamos de casa com nossas bolsas de feira coloridas feitas de couro sintético. A minha era pequena, com quadrados verdes e vermelhos, e eu carregava nela as verduras mais leves: alface, couve, cheiro-verde. Mal chegávamos à feira, e aquele mundaréu de gente carregando sacas enormes, cheiros misturados de flores, peixes, verduras e coisas em decomposição, cães abandonados, os sons dos pregões dos feirantes, tudo ia entrando pelos meus olhos, ouvidos e nariz. Uma confusão de cores, sons e cheiros.

Começávamos ali no início da feira com as sacas vazias. Minha mãe escolhia os tomates, as batatas, as cenouras, as maçãs. Pechinchava com os feirantes. Reclamava quando achava que estava caro. Eu ficava com medo de me perder no meio daquele monte de gente, e ficava praticamente grudada na barra da saia dela. De repente, uma voz atrás da gente: "Dona, deixa eu carregar?" Era um garoto pequeno, pouco mais velho que eu, e eu me perguntava se ele aguentaria carregar aquela saca enorme cheia de legumes. Minha mãe deixava ele pegar em uma das alças, só para dar a ele uns trocados mais tarde. Ele nos seguia por toda a feira, até que acabássemos de comprar tudo, e nos levava ao ponto de táxi ou de ônibus. Hoje, seríamos acusadas de escravizar uma criança!

Eu gostava quando minha mãe ia às compras com minha irmã mais velha, aos sábados, e eu, já adolescente, ficava com a casa só para mim: eu escrevia em meu diário, fumava cigarros "Charm" e escutava música no último volume. Também gostava quando íamos todos juntos às compras: eu (criança), minhas duas irmãs (a outra irmã e o irmão mais velho estavam no trabalho) e nossos pais. Entrávamos no antigo supermercado ENSA - que mais tarde, virou CB, e depois, ABC, e depois EXTRA, e mais tarde, Princesa, e hoje eu nem sei mais. A gente circulava pelo mercado tentando lembrar as regras: "Não peçam nada!" Minha mãe às vezes tinha pena, porque eu ficava olhando os iogurtes caros que não podíamos comprar, e ela pegava um, dizendo: "Termine antes de chegarmos ao caixa!" E eu comia com a mão, passando o dedo no fundo do pote.

As compras de roupas aconteciam uma ou duas vezes ao ano. Meu pai nos levava à loja Mona Modas e fazia um crediário gigante. Comprava um vestido para minha mãe e algumas roupas para nós, crianças. Tínhamos excelentes lojas em Petrópolis, como a antiga Casa Sloper, que vendia de tudo, desde roupas e sapatos a brinquedos, bijuterias e cama e mesa. Era uma loja grande e luxuosa, bem no centro da cidade. Eu adorava comprar lá, mas isso raramente acontecia. Tínhamos a Sapataria da China, a Sapataria Moderna, a Schetini... comprar sapatos era um evento! Eu chegava em casa e ficava andando pelo quintal, olhando meus sapatos novos, com cuidado para não arranhá-los. A vida era difícil. Logo minha mãe ralhava: "Vá tirar esses sapatos, que são de sair!"

Meu pai comprava tudo a crediário: nossa geladeira demorou dois anos para ser totalmente paga. Os móveis de cozinha, as camas, colchões, a TV... tínhamos uma preto-e-branca, daquelas de válvula, que precisava esquentar um pouco antes da imagem aparecer. Ela ficava tão quente, que se tocássemos nela, queimávamos a mão. Meu pai a desligava durante os comerciais, "para esfriar." Um dia, ela queimou. Ao levá-la ao conserto, meu pai exclamou: "Mas eu não sei o que houve! Até desligava na hora dos comerciais, para esfriar!" O técnico riu, e disse: "Foi por isso que ela queimou! Esse liga/desliga/liga/desliga..." Nunca mais ele desligou na hora dos comerciais, mas comprou um estabilizador que pesava uma tonelada e esquentava feito o inferno. Quando ele chegava do trabalho, colocava a mão rapidamente sobre o estabilizador, e se estivesse quente, ele brigava: "Vocês ficam vendo TV o dia todo! Vai acabar queimando, e depois, o ferrado sou eu!" Assim, desligávamos alguns minutos antes que ele chegasse... eu me lembro de ter assistido à suposta chegada do homem à lua, em 1969, aos quatro anos de idade, naquele aparelho de TV...

Quando a TV dos vizinhos queimava, era comum que a família inteira aterrissasse de para-quedas na nossa sala de estar e ficasse lá até tarde da noite. Meu pai ficava furioso, mas não queríamos ofender ninguém, então, quando ele achava que estava na hora dos vizinhos irem embora, ele dava boa noite a todos, e dando a volta por fora da casa, ia até o local da antena e a virava, para que os canais saíssem do ar. Ele fazia aquilo sempre. Não sei como eles não desconfiavam...

Acho que uma das poucas lojas da cidade que resistiram até hoje, é a filial das Lojas Americanas. Quando eu saía do colégio, geralmente ia até lá com alguns colegas. Eles vendiam balas à varejo, e era comum todo mundo pegar uma ou duas quando passava por elas. Todos faziam aquilo, adultos e crianças, e ninguém considerava aquilo como roubo, mas uma vez, sem querer, acabei 'roubando' um caderno: coloquei-o no meio dos outros para pagar quando saísse. Minha mãe pegou um outro caderno, sem reparar que eu já havia pego um. Ela pagou por ele. Ficamos algum tempo fazendo compras, e esqueci-me totalmente do caderno que estava comigo. Só percebi quando chegamos em casa.

Infelizmente, as boas lojas de Petrópolis fecharam. Hoje, o que mais se vê por aqui são drogarias e lojas de 1,99, a não ser na Rua 16 de Março, onde ainda se pode comprar alguma coisa. Fico pensando: Por que será que todas as lojas que abrem por aqui hoje em dia acabam fechando? Parece que alguém enterrou uma cabeça de burro em algum lugar... quanto às tentativas de shopping centers, elas sempre falham. Acho que petropolitanos não gostam de shoppings. Preferem andar pela rua ao fazer suas compras, mesmo debaixo de chuva ou com frio. Os petropolitanos adoram novidades; quando abre um novo restaurante, loja ou clube, fazem fila na porta; depois de algum tempo, desaparecem, e o negócio acaba falindo por falta de clientes. Não dá para entender!

Temos fama de sermos ricos. Se chegamos a alguma outra cidade e dizemos que somos de Petrópolis, todo mundo nos olha com uma certa reverência ou inveja: "Hum, você é de Petróópolis?!?!" A fama que a Família Imperial deixou por aqui permanece até hoje, e acho que eles pensam que todo mundo aqui tem sangue nobre. Muito pelo contrário: Petrópolis hoje é uma cidade que sofre devido à invasão de suas encostas, desmatamento, uso indevido da água, explosão demográfica - basta dar uma olhada em Itaipava o número absurdo de condomínios que estão sendo construídos, e  eu não sei como essa gente vai circular por aqui quando todos estiverem prontos e ocupados, ou se vai ter água para tanta gente. 

Mesmo assim, ainda desfrutamos de boa qualidade de vida por aqui, na maioria dos bairros.

(continua)








segunda-feira, 20 de abril de 2015

AS RUAS DAS ÁRVORES QUE CHORAM - HISTÓRIAS EM PETRÓPOLIS





"Midnight, not  a sound from the pavement. Has the moon lost her memory? She's smiling alone..."

Ao som desta canção e sob uma lua cheia fantasmagórica, eu fui atraída para fora de casa em um anoitecer frio. Minha mãe veio atrás de mim, para saber de onde vinha a canção. Vinha da casa vizinha. Barbra Streisand cantando "memories."  Nós ficamos escutando aquela música linda no quintal, enquanto o luar branqueava a superfície brilhante das folhas de bananeiras. Quando a música terminou, ficamos algum tempo ainda mudas, como que encantadas por alguma espécie de magia. 

Eu às vezes caminhava pelas ruas invernais de Petrópolis com músicas na minha cabeça, as mãos nos bolsos do casaco marrom de capuz que chegava aos joelhos, os olhos grudados na calçada. Na minha cabeça, como se fosse uma play list, iam surgindo as letras musicadas de Supertramp, Queen, Barbra Streisand, Elton John, Peter Frampton - a galera que fazia sucesso naqueles tempos. Eu às vezes erguia os olhos e olhava para os carros passando, as pessoas, as árvores, o céu. Criava vídeo clipes em minha mente.

Certa vez me perguntaram, enquanto caminhávamos pela Rua Paulo Barbosa em uma sexta-feira movimentada: "Por que você anda olhando para o chão?" Não sabiam que eu via tudo, menos o chão. Mas a partir daquele dia, com medo de que me achassem esquisita, passei a andar de cabeça erguida, olhando para frente. E não vi mais nada. Muitas pessoas reclamavam e me perguntavam por que eu não as cumprimentava. É que eu ia focada naquilo que eu precisava fazer, eu respondia. Tentando não parecer esquisita, eu parecia mais esquisita do que antes.

Eu amava ir ao cinema sozinha nas tardes de sábado. Sentava-me nas cadeiras do balcão do cinema Casablanca, que fica em um hotel que, naquela época, era luxuoso. Não tinha quase ninguém no cinema. Eu ficava ali, totalmente envolvida pela história que rolava na tela, como se fizesse parte dela. Uma vez, estava tão absorvida que nem percebi quando alguém sentou-se ao meu lado. Só notei quando senti uma mão atrevida sobre o meu joelho.

Aquilo foi chocante... acho que eu tinha apenas doze ou treze anos. Olhei para o lado com o canto do olho, e vi que era um homem que fingia estar assistindo ao filme enquanto tentava me bolinar. Ergui-me de repente da cadeira, assustada, e acho que o assustei mais ainda, pois ele levantou-se e saiu, de cabeça baixa, sem olhar para trás.  Nunca contei aquilo para ninguém, pois temia que meus pais nunca mais me deixassem ir ao cinema, mas aprendi que, em um cinema vazio, toda vez que alguém senta-se ao nosso lado, devemos levantar e ir embora o mais rápido possível.

E um dia, cantando "Bohemian Rhapsody," do Queen, entrei na loja onde uma de minhas irmãs trabalhava. Me perguntaram que música era aquela, e eu repeti o que havia aprendido traduzindo a letra com um dicionário. Me disseram que a música era horrível, ridícula, e aprendi que a gente não deve sair por aí falando das coisas que gosta com qualquer um, pois corremos o risco de ser ridicularizados. 

Caminhando pelas ruas de Petrópolis, aprendi a olhar muito, imaginar muito, pensar muito e falar bem pouco. Adolescente, eu às vezes ia sozinha às palestras do Centro de Cultura. Certa vez, assistia a uma palestra sobre racismo, onde a palestrante era uma moça negra muito bonita, mas com o cabelo esticado para ficar como o de uma branca. De repente, ela convidou a platéia a fazer perguntas. Meu coração batia na garganta. E eu me vi abrindo a boca e perguntando a ela por que ela esticava o cabelo, pois se ela se orgulhava de ser negra, não deveria esticar o cabelo. Eu estava tão nervosa que nem me lembro da resposta que ela me deu. Meus ouvidos taparam-se. Só sei que algumas pessoas da plateia se viraram para me olhar, e ao constatarem a minha pouca idade (deveria ter uns quatorze anos), apenas balançaram a cabeça em desaprovação. Aprendi que não se deve fazer perguntas embaraçosas durante palestras.

Eu saía para andar sozinha. Quando tinha dinheiro, comprava algum disco de vinil, e amava andar com meus discos debaixo do braço e levá-los aonde quer que eu fosse. Literalmente, Petrópolis me viu crescer com trilha sonora. Havia uma loja chamada A Musical, que deixava a gente escutar trechos dos discos antes de decidirmos se queríamos realmente comprá-los. Eu ficava sempre muito tempo por lá. Adquiri um gosto eclético, pois escolhia os discos pelas capas, pedia para ouvir e muitas vezes, descobria verdadeiras pérolas. Foi assim que conheci alguns compositores clássicos, e também o Aerosmith, Rick Springfield ( a capa me atraiu porque havia uma foto dele e eu o achei bonito demais), Bee Gees, Pink Floyd e muitos outros. A música era a minha vida. Não fazia nada sem que houvesse uma trilha sonora. Até quando eu sonhava acordada, punha uma musica ou a imaginava. 

Tantas e tantas vezes, lá no meu bairro, nós levávamos o aparelho de som para a rua e cada um levava um disco diferente! Ficávamos lá, escutando música após fazermos ligação direta da caixa de luz de um vizinho... conversávamos, dançávamos, tomávamos Coca-cola com rum e fumávamos escondido. Organizávamos festas de São João incríveis... cada um contribuía com alguma coisa. Eu adorava morar naquele bairro. Hoje, quando vou lá, vejo que quase nada mudou, e fico feliz de ter saído.

(continua...)





terça-feira, 14 de abril de 2015

AS RUAS DAS ÁRVORES QUE CHORAM - Histórias em Petrópolis

O ipê próximo à Praça da Liberdade


Cresci na Petrópolis das baixas temperaturas. No inverno, às vezes elas atingiam quase zero. A cidade era bem mais úmida, o que favorecia o crescimento das hortênsias que pintavam as ruas de vários tons de azul. Minha avó paterna morava em um bairro chamado Duchas. A casa dela ficava no topo de uma ladeira, de frente para a rua, e havia na lateral da casa um morro coberto de Marias-sem-vergonha brancas. Estas flores também são conhecidas como Impacient (já ouvi um jardineiro dizendo “impachent”). Eram muito comuns em Petrópolis, especialmente na subida da Serra, onde proliferavam na beira das estradas em cores que variavam entre branco, laranja, vermelho, rosa-claro, lilás, roxo, rosa-choque e vinho. Com a mudança do clima, hoje são bem mais raras. Crianças, brincávamos de ‘pintar as unhas’: passávamos água nas unhas e colávamos as pétalas sobre elas. Durava pouco, mas era divertido... havia muitas moitas destas flores lá em casa, e minha mãe era uma defensora feroz delas. Quando meu pai capinava o terreno, ela ia olhar toda hora para ver se ele não as estava arrancando. Minha mãe gostava de olhar da rua para a casa e ver as flores espalhadas pelo caminho. 

Mais tarde, as hortênsias foram sendo substituídas por lírios amarelos. Os canteiros da cidade passaram a apresentar estas flores. As hortênsias sumiram, praticamente desapareceram, e a alcunha de Cidade das Hortênsias deixou de ter sentido. Hoje eu as tenho em meu jardim, e adoro abrir a janela de manhã e deparar com elas, plantadas junto ao muro.

Na época da quaresma – e isto acontece até hoje, graças a Deus – Petrópolis cobria-se de amarelo e roxo. As quaresmeiras e manacás-da-serra em flor são uma coisa linda de se ver! A gente olha para as florestas e, entre as muitas espécies de árvores, vemos aquelas manchas coloridas de flores. Em setembro, são os ipês... rosas, amarelos e roxos. Árvores enormes - ou bem pequenas ainda, como as que foram plantadas no centro histórico - proporcionam um espetáculo inesquecível que dura apenas uma semana. Próximo à Praça da Liberdade existe um ipê famoso. Fica no jardim de um prédio, bem na entrada, e a floração é tão abundante e magnífica, que todo mundo para a fim de fotografar e admirar. Eu mesma tenho várias fotos dele. 

Cresci entre as hortênsias, Impacients, quaresmeiras, manacás-da-serra, lírios amarelos e Ipês. Quando comecei a trabalhar, acordava nas manhãs geladas de inverno, bem cedo, tomava banho e me vestia para ir ao trabalho, e enquanto caminhava eu via a minha respiração e as das outras pessoas acumulando-se diante dos nossos rostos feito nuvens brancas. 
A luz da manhã é sempre linda no inverno. Adoro ver quando ela começa a dissolver a névoa ainda sonolenta que descansa sobre as montanhas e ruas! Aos poucos, o dia branco transforma-se em um dia de céu azul límpido como não existe em nenhum outro lugar do país. O céu de Petrópolis é o céu mais azul que eu já vi; quando ele cisma de ser azul, nada o supera. É tão bom sentar-se ao sol de inverno e sentir como ele aquece sem esquentar demais, sem invadir ou incomodar! Sentir o vento frio deixando o rosto rosado é delicioso, e a pele esticada parece até ficar mais jovem. Eu amo o frio e o inverno, e lamento profundamente que o clima tenha mudado tanto nos últimos anos. 

Quando criança, eu podia brincar com várias espécies de besouros coloridos, alguns nacarados, e outros, listrados, que comiam as folhas dos bambuzais, e com as joaninhas coloridas que se alimentavam das vassourinhas (arbusto baixo que antigamente era amarrado em feixes e usado para varrer). Havia também muitas espécies de lagartas vermelhas, cor-de-laranja, verdes e pretas. Dizem que elas queimam muito, mas felizmente, nunca toquei em uma delas. Também havia aquelas de pele muita fria e lisa, verdes, amarelas, listradas, azuladas, algumas muito grandes, que eu deixava passear sobre os meus braços. Havia muitas espécies de insetos que já não se vê mais por aqui. 

E os vaga-lumes... eram tantos, que pareciam estrelas descansando sobre o capim e as árvores. Eu gostava de pegá-los e coloca-los dentro de um vidro. Amava vê-los acender e apagar. Mas sempre os soltava logo depois. As noites Petropolitanas eram cheias dessas criaturinhas, piscando e piscando, em luzes azuladas, amareladas, verdes e brancas. Hoje em dia, dificilmente eu vejo algum. Às vezes eles aparecem por aqui no verão, e eu os vejo na mata em frente à casa. Raramente um deles aventura-se pelo jardim. E as joaninhas e besouros também são bem mais raros... 
Eu morava no bairro Caxambu, rua Flávio Cavalcante. A rua tinha este nome em homenagem a um grande apresentador de TV daqueles tempos. Ele era nosso vizinho. Muitas vezes, quando brincávamos na rua, ele passava em seu carrão com motorista, e acenava para nós, crianças, que precisávamos interromper o nosso jogo de bola toda vez que passava um carro. As pessoas gostavam de fazer turismo na chácara de Flávio Cavalcante, e as visitas eram permitidas. Ele era uma pessoa simples e acessível. Quando eu era bem pequena, fui com minha família, mas acho que eu era tão pequena que não me lembro. Quando ele foi embora, o terreno onde ele morava foi loteado e algumas casas de luxo foram construídas por lá. Não sei como se encontram, ou quem mora nelas hoje em dia; mas ficou o Morro do Flávio. Adolescente, fazíamos excursões para o morro. Chegávamos lá em cima e tínhamos diante dos olhos a vista do nosso bairro e cidade, cercada de montanhas azuis.

Certa vez, na ocasião da passagem do Cometa de Halley, meu então namorado, eu e algumas pessoas organizamos uma subida ao Morro do Flávio à noite para ver o cometa passar. Estava muito frio. Subimos tudo no escuro, à luz de nossas lanternas e com muita neblina. Chegando lá, nós no sentamos cobertos por um enorme plástico preto para evitar de ficarmos molhados pela neblina gelada, e aguardamos. Mas tudo o que vimos, foi a neblina. Após algumas horas, descemos o morro, frustrados e quase congelados. 

Eu também subi algumas vezes o Morro do castelinho, no Bairro Morin. A subida era cansativa, mas valia a pena, pois a trilha era linda, cercada de árvores e pequenos riachos. Lá em cima, podíamos ver a Bahia de Guanabara. Venta muito por lá, e o tempo todo, e por isso, nos agasalhávamos bem. Certa vez, cismei em calçar um par de tênis novos para fazer a subida. Cheguei lá com os pés cheios de bolhas, mas para não dar o braço a torcer, aguentei tudo calada. Dizem que hoje é perigoso subir o castelinho, e que há muito lixo nas trilhas. Infelizmente, nada fica para sempre. Parece que aonde quer que o ser humano chegue, em breve só resta destruição. 

(continua...)




domingo, 12 de abril de 2015

As Ruas das Árvores que Choram - Histórias em Petrópolis




AS RUAS DAS ÁRVORES QUE CHORAM – PARTE II

Caminhar pelas ruas arborizadas de Petrópolis, sem pressa. Olhar bem os casarões antigos, as mansões bem conservadas que ficam ao longo da Avenida Koeller, Rua Ipiranga, Santos Dumont, D. Pedro, Barão do Rio Branco, Rua da Imperatriz. Muitas delas foram transformadas em pontos comerciais, devido ao alto custo de manutenção e o tombamento pelo Patrimônio Histórico. Caminhar pelo centro da cidade, e ver os poucos sobrados históricos que sobraram e conservaram-se como eram originalmente. Visitar pontos turísticos como o Museu Imperial,  A Encantada( casa onde viveu Santos Dumont) o Museu de Cera, O Palácio da Princesa Isabel, O Trono de Fátima, o Palácio de Cristal... percorrer o burburinho da Rua Teresa, ficar engarrafado no trânsito da Rua do Imperador, tomar café nas padarias, lanchonetes e casas de chá da Rua Dezesseis de Março depois de fazer compras nas lojinhas, e finalmente, sentar-se para descansar em um dos bancos da Praça D. Pedro, enquanto se observa as pessoas e carros passando. 

Uma cidade pequena. Uma cidade planejada – a primeira cidade planejada do Brasil, embora haja controvérsias. Mas o planejamento há muito “desplanejou-se” com a invasão das encostas, a superpopulação e a construção desenfreada de prédios e condomínios de luxo em áreas que deveriam estar preservadas. 

Mas eu quero falar de uma outra Petrópolis, uma cidade que foi planejada, antes de tudo, no céu. A cidade onde as árvores choram. Não sei se elas choram também em outros lugares, mas sempre que alguém senta-se sob uma das árvores de Petrópolis, ou permanece sob elas durante algum tempo, se ficar atento logo perceberá que está sendo espargido de leve por um líquido misterioso. Não sei se é seiva ou chuva acumulada nos galhos, mas mesmo em épocas de seca, quando eu fico no jardim de casa sob meu pé de laranja, sinto um leve borrifo que faz a pele arrepiar. Eu não quero saber se o mesmo acontecesse nas outras cidades, com outras árvores. Quero acreditar que somente as árvores Petropolitanas choram. Prefiro erguer os olhos para as copas verdejantes e ver a água borrifada de repente, assim do nada, e acreditar que alguma fada invisível está sentada em um dos galhos espargindo seu perfume. 

Nestas ruas eu escrevi a minha história. As casas são testemunhas da passagem do tempo sobre a cidade e seus habitantes. Muitas das pessoas que conheci, e com quem convivi, já não mais fazem parte desta paisagem, mas é como se os seus passos tivessem ficado marcados nas calçadas, e seus olhos permanecesse entre as copas das árvores, e eles me veem enquanto eu passo. Me perdoem se um dia vocês por acaso (ou por vontade própria) vierem parar aqui e não conseguirem enxergar nada do que eu digo; se a magia e a beleza que eu vejo e sinto em Petrópolis não chegar até o coração de vocês, eu peço desculpas. É que eu nasci aqui. A primeira coisa que eu enxerguei quando vim ao mundo, foi o céu Petropolitano pela janela do quarto onde fui parida, num 29 de setembro obscuro. Meus primeiros passos foram dados aqui, e minhas primeiras palavras – lidas e escritas – foram proferidas aqui. E é enxergando esse mesmo céu que me recebeu que eu pretendo fechar os olhos, quando chegar a minha hora. 

(continua...)



sexta-feira, 10 de abril de 2015

As Ruas das Árvores que Choram - Histórias em Petrópolis






As Ruas das Árvores que Choram  Parte I


Quando caminhei por aqui pela primeira vez, foi segurando a mão de minha mãe. Eu era bem pequena. Minha mãe gostava de passear à pé pela cidade, e assim, acabei passando grande parte da minha infância entre o casario antigo, as ruas ornadas de magnólias e hortênsias, cruzando praças e atravessando pontes, ao mesmo tempo em que ouvia as histórias que minha mãe contava:

-Está vendo esta casa? Eu já morei aqui quando pequena. (E ela apontava para um enorme casarão branco de dois andares, janelas verdes, na Avenida Presidente Kenedy, bem em frente à descida da Rua Montecaseros. E ela continuava:)

-Eu era pequenininha, e minha mãe trabalhava de empregada doméstica nesta casa. Mas não ficou muito tempo, porque ela logo adoeceu e morreu quando eu tinha quatro anos de idade. Meu pai costumava vir me visitar aqui, e os donos desta casa deixavam que a gente se encontrasse nos fundos, na cozinha.

Às vezes, entrávamos pela Presidente Kenedy, e ela apontava uma ruazinha adjacente, uma espécie de vila bem estreita:

-Aqui mora a minha prima.

E de vez em quando, nós íamos tomar café na casa da tal prima. Para os nossos padrões de vida naqueles tempos, era uma casa grande, bonita e luxuosa, mas se eu a visitasse hoje, talvez a achasse bem menor e menos glamourosa. A prima de minha mãe era uma mulher tremendamente bela. Tinha o rosto bem emoldurado por cabelos loiro-escuro cacheados, maxilares largos que abrigavam um sorriso lindo de dentes muito alvos e, compondo o rosto belíssimo, um par de olhos azuis. Era casada e tinha quatro belas crianças, e eu tinha uma paixonite platônica pelo mais velho, embora eu fosse apenas uma criancinha. Todos eram lindos e tinham olhos azuis. Lembro-me de algumas festas as quais comparecemos naquela casa, e do quanto dava gosto de ver aquela gente bonita se movimentando: parecia um comercial de margarina! Ela era a prima que dera certo na vida.

Minha mãe e eu também caminhávamos muito pela Avenida Koeller, parando para admirar as enormes mansões. Ao final da rua, nós atravessávamos para a Praça da Liberdade, onde eu passava algum tempo feliz, esquecida de qualquer desejo, a não ser o de balançar bem alto, até que as pontas dos meus pés quase tocassem as pontas verdes das copas da árvore. Ali, eu não tinha tempo para pensar nas canetinhas coloridas que eu não tinha para usar nas aulas de desenho da escola, ou na boneca Amiguinha do meu tamanho que eu jamais ganharia, nas roupas bonitas que desejava. Ali naquele balanço, olhava lá de cima as outras crianças que aguardavam que eu me cansasse para que elas mesmas tivessem a sua vez de balançar bem alto, e eu me sentia superior a elas. E eu só desistia quando minha mãe parava ela mesma o balanço, arrancando-me dele enquanto eu, aos prantos, gritava e esperneava, vendo o 'meu' balanço sendo ocupado por outra criança. E minha mãe dizia, irritada:

-Todo mundo está olhando! Olha que coisa feia! Nunca mais eu trago você.

Mas ela sempre me levava naquela praça. E eu sempre gritava e esperneava na hora de sair do balanço. Íamos para casa ao crepúsculo, quando as luzes dos postes começavam a acender e a garoa fria de Petrópolis começava a cair. Tomávamos o ônibus e eu adormecia no colo de minha mãe, que me acordava quando chegávamos em casa. Ela ainda precisava preparar o jantar, e como sempre, meu pai reclamava pelo atraso quando chegava do trabalho.

Eu adorava caminhar pela Rua Ipiranga, que na minha infância, era bem pouco movimentada. Lá estavam as mansões de veraneio, casas tão velhas e tão mágicas, que pareciam guardar muitos mistérios. Eu parava na frente da Casa dos Sete Erros e a imaginava assombrada, e estranhamente, apesar do medo que sentia, desejava entrar nela, o que só aconteceu quando ela virou ponto turístico, e eu já era casada. Subíamos a Ipiranga e descíamos pela Rua Dom Pedro, uma outra de casas também antigas e muito bonitas.

Cresci caminhando entre estes casarões e inventando histórias na minha cabeça sobre o que se passava dentro deles. Passei por jardins inacessíveis onde, com certeza, moravam fadas e outras criaturas mágicas, e eu os recriava em nosso pequeno quintalzinho ao chegar em casa: recortava das revistas e livros infantis imagens de fadas e as espalhava pelos galhos da figueira plantada por meu avô. Fingia que elas eram reais. Passava horas brincando sozinha, pois para mim, não era (nunca foi) muito fácil fazer amizades. minhas amigas eram as da escola, ou então as irmãs mais novas das amigas de minha irmã mais velha. Eu gostava de brincar sozinha, tomar todas as decisões, escolher os finais das minhas histórias sem ter que pedir a aprovação de ninguém ou entrar em acordo com os gostos das outras meninas. minhas histórias, eu mesma criava e encenava - com a ajuda de minhas inseparáveis bonecas.

Lembro-me da Petrópolis de quando eu era criança e as temperaturas no inverno chegavam, às vezes, a atingir números negativos. A gente saía de manhã cedo para ir à escola ou a o trabalho, e os vidros dos carros estacionados ao longo da Avenida XV de novembro - hoje Rua do Imperador - estavam cobertos por fina camada de gelo. Também andei muito através da neblina gelada, branca e densa, tão densa, que quando alguém falava tinha a impressão de estar falando dentro de uma caixa. Nada se via. E assim como aparecia, ela ia sendo dissipada conforme o sol se erguia.

Sentada à mesa de madeira da cozinha, eu fazia meus deveres de casa e escutava as muitas histórias de quando minha mãe era criança como eu. E ela me contava que crescera em um colégio interno - o Colégio Nossa Senhora do Amparo - depois que sua mãe morrera quando ela tinha apenas quatro anos de idade. Ela me falava das freiras boas e das freiras más. Dos banhos de água gelada que as crianças eram obrigadas a tomar às seis da manhã. Um dia, ela me contou que achou uma barata em sua comida, no caldo do feijão. Coisas assim eram comuns. Ela chamou a freira e mostrou a ela. a freira mandou que ela tirasse o inseto e continuasse a comer. E foi o que ela fez, pois era o que todas as crianças faziam.


quarta-feira, 25 de março de 2015

Eu a Vejo - minimalista

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Ela passa por mim segurando o regador. Molha as plantas da varanda, os vasinhos na janela, a roseira no canto do jardim. Dá um longo suspiro, coloca a mão na cintura como sempre faz, num gesto inconsciente. Olha em volta, dirigindo o olhar para a esquerda, em direção à montanha. Vê a neblina que beija a superfície lisa da pedra com delicadeza. Contra o pôr do sol, observa os milhares de criaturas que voam na maciez da tarde, as asas transparentes. 

Ela olha para a casa. Imagina coisas que eu não sei contar. Desce o caminho, passa novamente por mim, mas não me olha. Lava algumas louças que estão na pia da cozinha, passa  a vassoura no chão. Pensa no que poderá preparar para o jantar enquanto estende a roupa. O crepúsculo cai sobre a casa, e ela acende as luzes - não gosta muito do escuro. Encostada à parede do corredor, eu a vejo passar em direção à sala de estar. Liga a TV, e tenta assistir alguma coisa, mas os pensamentos voam para longe, pela janela, perdem-se naquela estrelinha que começa a brilhar lá longe... será que ela pensa em mim?

Desliga a TV e coloca uma música suave. Caminha descalça pela casa. Acende um incenso. A casa olha para ela, e a entende. As duas se conhecem muito bem e sentem-se à vontade juntas. Ela chega à janela, e olha o jardim. Aspira o perfume da grama recém-cortada. Um beija-flor faz charme, chegando bem perto dela, e depois voa para longe, desaparecendo por trás do muro de hera. Estou bem ao lado dela. Nossos cotovelos se tocam, e posso ouvir o som de seu coração batendo. Mas ela não me olha.

Pega um livro, enrodilhando-se na poltrona. Abre ao acaso em uma das páginas, e lê com atenção, e eu sei porque: ela acredita que os livros tem poderes mágicos e que podem interagir com os leitores, dando-lhes as respostas que eles procuram. Ela suspira. Sussurro em seu ouvido o meu nome. De repente, ela ergue a cabeça e olha em volta. Parece inquieta; leva uma das mãos à garganta, e vejo a pele do seu braço arrepiar. Ela me sente. Uma sombra de tristeza passa sobre seu rosto, criando pequenas dobras em sua testa. Seus olhos ficam marejados.

Eu a vejo. Ela me sente, e se pergunta onde estou.


terça-feira, 17 de março de 2015

Nem Tudo é Bem Assim - Parte III - FINAL






Nem Tudo é Bem Assim - Parte III - FINAL



Roberto tomou um gole grande de café quente, que queimou-lhe  a garganta. Ainda tentou fingir que não sabia do quê o amigo falava. Notou as olheiras roxas sob os olhos de Carlos:

-Ela quem?


Carlos olhou-o magoado:

-Bia. A minha  mulher Bia está apaixonada por você.

Naquele momento, um grupo de moças que estava entrando na sala do café estancou à porta, e olhando para eles muito sérias, deram meia-volta. Com certeza, pensaram eles, elas tinham ouvido a última frase. Ao constatar aquilo, Carlos bateu na própria testa com força. Roberto ouviu a própria voz:

-Sinto muito. Também estou apaixonado por ela, Carlos. 

Ao chegarem em casa após o almoço na tarde do último sábado, Bia e Carlos acabaram tendo uma briga muito séria, na qual ele a acusara várias vezes de não amá-lo mais. Ela tentara ser paciente, pois afinal de contas, tinha feito algo que traíra a confiança dele, e sentia-se culpada. Mas ele fora tão vil e insistente, dizendo palavras tão duras e cortantes, que ela acabara gritando bem alto:

-OK! Eu estou apaixonada pelo Roberto! E daí?

A discussão terminou imediatamente. Como sempre, ele saiu batendo a porta, e não voltou para casa. Passou a noite no carro, após dirigir até uma estrada deserta. Pensou muito sobre tudo o que estava acontecendo, e a iminência de estar perdendo Bia fazia com que seu estômago desse voltas. A vida que conhecera até então, tudo o que ambos construíram juntos, estava ameaçado de acabar. Ela ainda tentou falar com ele por telefone, mas ele desligou o celular. 

Na manhã de domingo, voltou para casa e encontrou-a sentada no sofá da sala, os olhos inchados e vermelhos. Eles se olharam em silêncio, e ela se levantou:

-Quer café? Acabei de fazer. 

Quantas vezes ele ouvira aquela mesma frase, mas dita de forma alegre, casual e totalmente caseira? Agora, a casa toda parecia uma geleira. Carlos disse 'sim' através de um aceno, e ambos foram para a cozinha, onde ela serviu-lhe uma xícara. Foi ele quem falou primeiro, sem tom acusatório, apenas como forma de constatação:

-Então eu estava certo o tempo todo.

Ela enxugou as lágrimas que tinham voltado a cair:

-Olha, vamos esquecer tudo isso, está bem? A gente pode recomeçar. A gente pode ... você pode pedir demissão, eu também,  e nós podemos abrir um negócio próprio, uma firma de arquitetura, como sempre desejamos.

Ele teria pulado de alegria há apenas algumas semanas, se ela tivesse lhe dito que desistiria do emprego para trabalhar com ele, como ele sempre sonhara. Mas agora, a proposta dela pareceu-lhe movida pela piedade, ou pelo desespero de que tudo ficasse como sempre tinha sido. Mas ele sabia (e ela também) que algo tinha sido quebrado. Se teria conserto ou não, nenhum dos dois poderia dizer. Não ainda. Ele pensou que talvez aquilo tudo tivesse acontecido por um motivo: a vida deles estava calma demais, certinha demais, sem atrativos. Quem sabe, aquilo desse uma sacudida neles, de forma a trazer de volta o entusiasmo perdido? Afinal, se ainda havia amor... mas ele se lembrou que, na noite passada, ela confessara que estava apaixonada por outro!

-Como pode dizer isso, após confessar que está apaixonada por outro, Bia?

Ela concordou com a cabeça:

-Foi apenas... uma ideia. Mas eu... eu não quero me separar de você, Carlos! Na verdade, eu e Roberto mal nos conhecemos. Nós... eu... é tão difícil, Carlos...

Ele se levantou, abraçando-a, e ambos choraram, ali, de pé, encostados à pia da cozinha.  Depois, sem nada dizer, ele foi para o quarto. Minutos depois, ela o seguiu. Viu que ele estava arrumando as malas. Ela recomeçou a chorar. Ele hesitou um instante à porta do quarto, segurando as malas. Sem olhar para trás, saiu, batendo a porta da frente - daquela vez, para sempre. 

Roberto suspirou, após ouvir a história de Carlos. Passou a mão pela testa. Parecia muito cansado. Ele ouvira a história toda sem que houvessem mais interrupções dos colegas na sala do café.   

-Acho melhor a gente sair um pouco, tirar o dia de folga, Carlos. Precisamos conversar. O chefe vai entender.

Quando ambos saíram da sala do café, havia um silêncio constrangedor no escritório. As pessoas não olharam para eles, mas por mais que tentassem agir normalmente, ficou claro para eles que todos já sabiam do que estava acontecendo. Eles passaram pelas escrivaninhas sem olhar para o rosto de ninguém, dirigindo-se à porta. 

Foram para um café do outro lado da rua. Estava vazio àquela hora, pois todos já estavam trabalhando. 

-Então você saiu de casa?

Carlos tomou um gole de café, e sem olhar para Roberto, respondeu:

-O caminho está livre para vocês. Hoje é segunda, então Bia estará trabalhando em casa. 
Roberto hesitou:

-Eu sinto muito. Essas coisas não acontecem porque a gente quer.

Carlos pareceu furioso quando olhou novamente para ele. Levantou-se, fazendo com que Roberto se encolhesse na cadeira. Mas ele apenas caminhou para fora do café, sem olhar para trás.
Quando Roberto chegou à casa de Bia, a porta estava destrancada e entreaberta. Ele entrou devagar, vendo a névoa gelada  da manhã desenhar-se em feixes pelos raios fracos de sol que entravam pela vidraça. Ele chamou por Bia. Ouviu-a responder da estufa. Seguiu o som da voz dela. 

Passou pela cozinha em desordem, sentindo o mesmo aconchego que sentira da primeira vez que ela o conduzira por ali. 

Encontrou-a de avental, podando algumas das plantas. Parou à porta, extasiado com a beleza daquela cena. Bia vestia pijamas, e estava de pé, de costas para ele, e o sol da manhã penetrava o vidro da estufa espalhando finos arco-íris pelos seus cabelos curtos e desgrenhados. Olhou em volta, pensando que em breve, talvez estivesse vivendo com ela naquele lugar, e aquele pensamento pareceu-lhe estranho. Talvez fosse melhor se morassem em outro lugar, um lugar só deles. Teriam filhos, quem sabe... ele caminhou até ela, o coração aquecido pela expectativa de tê-la em seus braços sem culpas e sem medos. 

Quando ele a tocou, ela virou-se, caindo nos braços dele. Ambos beijaram-se apaixonadamente. E foram indo para o quarto daquela maneira, beijando-se e abraçando-se desajeitadamente, enquanto ela ia retirando o avental, deixando-o caído no chão da cozinha, e ele descalçava os sapatos e tirava o casaco, deixando-os sobre o sofá da sala, e ela retirou a parte de baixo do pijamas, deixando-a no corredor, e quando estavam diante da cama, eles se entreolharam em silêncio. A atmosfera em volta deles, antes carregada pela estática apaixonada que os envolvia, pareceu esfriar de repente. Ele passou um dedo pelo rosto dela, sabendo que aquilo tudo não poderia ser. A melancolia crescia. Ela sentiu o desejo diminuir, murchar, e morrer. Eles se abraçaram. Quando se olharam novamente, eram apenas amigos. 


FIM



Nem Tudo é Bem Assim - Parte II





Nem Tudo é Bem Assim - Parte II


A conversa adiada acabou não acontecendo, pois na manhã de domingo, Bia resolveu recompensar o marido pelo 'não' da noite anterior. E ela o fez com muita dedicação, o que fez com que ele se esquecesse temporariamente dos ciúmes que sentira. 

Na manhã de segunda-feira, quando ele saiu para o trabalho e Bia preparava-se para trabalhar em casa, como fazia todas as segundas e quartas-feiras, a campainha tocou; quando atendeu, Bia deparou com o rapaz da flora quase totalmente escondido por trás de um imenso buquê de rosas. O cartão dizia simplesmente:  "Obrigada pelo almoço maravilhoso, Bia." 

Ela ficou um tempo sentada à mesa da cozinha, mãos entre os joelhos, olhando para o enorme arranjo de rosas coloridas que pusera sobre a mesa e deliberando o que fazer com ele. Sabia que Carlos faria uma cena quando o visse, mas tinha muita pena de jogá-lo fora. Mesmo assim, com o coração na mão, Bia agarrou o arranjo e levou-o até a lixeira do vizinho. Quando voltava para casa, arrependeu-se; voltou, abriu a lixeira e colheu do arranjo meia-dúzia de rosas, com as quais enfeitou a mesa da sala. Poderia dizer ao marido que ela as comprara; afinal, a mesa da sala estava sempre enfeitada com arranjos de flores. Mas tomou o cuidado de picar o cartão em pedacinhos bem pequenos antes de jogá-lo fora. 

Bia pensou muito em Roberto durante os dias seguintes àquele almoço. Imaginava cenas tórridas entre eles, e quando o fazia, corria para Carlos e realizava-as com ele. Era uma maneira de redimir-se. Ao mesmo tempo, isso convencia o marido que, afinal de contas, Bia ainda era apaixonada por ele. Algumas semanas após o almoço em sua casa, Bia recebeu um telefonema de Roberto, convidando-a para almoçar. Somente os dois. Ele disse que gostaria de conversar a sós com ela. Sentindo o coração querer sair pela sua garganta, ela tentou ser fria ao recusar o convite. Foi a primeira a desligar o telefone.

Quando ela desligou, deixando-o pendurado na linha, Roberto sentiu muita raiva e frustração; afinal, será que ninguém notava o quanto Carlos e Bia pouco tinham em comum? Qualquer um que olhasse mais de perto notaria que aquele casamento de onze anos estava em banho-maria há tempos, e que os dois só permaneciam juntos por conveniência! Por que ela insistia em ficar com ele? 

A amizade entre Carlos e Roberto crescia a cada dia. Os dois tinham muitas coisas em comum. O ciúme que Carlos sentira já quase desaparecera; afinal, três semanas após o almoço, Bia e Roberto não tinham se reencontrado. Mas naquele final se semana, Roberto achou de bom tom (esta foi a desculpa que deu a si mesmo) retribuir o almoço para o qual fora convidado. Na verdade, estava louco para rever Bia, e precisava de uma desculpa, já que ela recusara seu convite para o almoço há duas semanas. Assim, convidou o amigo e a esposa para um almoço em seu apartamento. Ele mesmo cozinharia (adorava cozinhar, e o fazia muito bem). Decidiu por um assado especial, receita de família. 

Arrumou o apartamento de maneira impecável; até pediu que sua mãe fosse ajudá-lo na faxina, o que fez com que ela se perguntasse o que havia de tão especial assim naquele casal... seu filho já convidara amigos do trabalho  e até garotas antes, e nunca se preocupara em demonstrar tanto esmero na arrumação. Ao perguntar ao filho o motivo de tanto capricho, ele apenas olhou para ela, passando a mão sobre o queixo, e ela compreendeu:

-Filho... você está apaixonado por ela, não é? Uma mulher casada!

Ele assentiu com a cabeça; afinal, precisava dividir aquele segredo com alguém.

-Mas vocês já tiveram alguma coisa?

-Não, mãe, mas eu sinto que ela também sente algo por mim, que ela também me deseja.
-E como você sabe?

Ele resumiu a história dos dois - a breve história que parecia tão importante a ele, mas que sua mãe resumiu em poucas palavras:

-Acho que você está construindo expectativas exageradas, Roberto. Cuidado para não se machucar! Não é certo interferir assim na vida dos outros. Se eles estão juntos, é porque querem. além disso, ele é seu amigo! Trabalha com você. Isso não está certo, filho.

O que a mãe disse, embora tenha sido rejeitado por ele, ficou na cabeça de Roberto. Sentia que estava cometendo um grande erro ao trair a confiança de um amigo, e decidiu que o almoço seria apenas um almoço de agradecimento, e que nunca mais insistiria para que ele e Bia se reencontrassem. Mas quando ele abriu a porta do apartamento e deu com o sorriso dela, suas convicções foram por água abaixo imediatamente. 

O beijo que ela depositou casualmente no rosto dele antes de entrar e olhar tudo, elogiando sua organização, fez renascer em Roberto a chama acesa da esperança. Carlos entrou logo depois dela, dando-lhe um abraço informal. Tratou de brincar maliciosamente:

-Hum... dizem que quando um cara solteiro é organizadinho demais, é porque é gay! É verdade, Roberto?

Roberto riu alto:

-Bem, no meu caso, sou apenas um cara solteiro que tem alguns dotes.

E Carlos completou seu comentário malicioso:

-Bem, tenho certeza então que este apartamento deve ser um tremendo matadouro, hein, Roberto? É aqui que você traz as garotas...

Roberto olhou de soslaio para Bia, e notou que ela ficara chateada com o comentário do marido. Decidiu não responder, e ao invés disso, riu e levou-os para o sofá, servindo-lhes um coquetel de frutas que Bia demonstrou apreciar muito.

-Hum... que delícia! Quero a receita, hein?

Mas Carlos não se conteve:

-Coquetel rosinha de frutas é coisa de boiola, querida. Acho que nosso amigo está tentando nos dizer alguma coisa. Macho não toma coquetel de frutas.

Bia apontou para o copo do marido, e foi em defesa do anfitrião:

-Mas você já bebeu o seu quase todo, querido.

Carlos notou o tom de ironia na palavra "querido." Sentiu seu rosto ficar vermelho.

O almoço decorreu em falso clima descontraído. Tanto Roberto quanto Bia percebiam que Carlos estava tentando fazer com que a imagem de Roberto diminuísse de importância para Bia, ridicularizando-o com brincadeiras tolas e criticando seu talento na cozinha como "coisa de gay." Mas ambos sabiam que Carlos estava apenas desesperado de ciúmes. Quando estavam apenas os dois amigos, Carlos tratava-no de maneira totalmente diferente, e apenas na presença de Bia ele agia daquela forma quase detestável. 

A tarde foi tensa, mas Bia conseguiu fazer com que a conversa fosse equilibrada, mudando de assunto imediatamente quando o marido dizia algo desagradável. Após o almoço, Carlos pediu para usar o banheiro, e Bia ajudou Roberto a tirar a mesa. 

No portal estreito que separava a cozinha da sala de jantar, enquanto passava carregando alguns pratos, Bia e Roberto ficaram presos por alguns instantes. Riram da situação. Bia ficou esperando que Roberto se afastasse para ela poder levar os pratos até a cozinha, mas ao invés disso, ele permaneceu aonde estava, olhando-a. Ela começou a sentir um enorme desconforto. Lembrou-se do sonho que tivera - e das tantas cenas que imaginara viver com ele. Bem, uma daquelas cenas estava prestes a acontecer enquanto seu marido estava a apenas alguns metros de distância, no banheiro, separado deles apenas por uma fina parede. Roberto parecia que não arredaria pé. Enquanto Bia deliberava sobre o que fazer, ele simplesmente beijou-a. Foi rápido e repentino, os lábios dele roçaram os dela de leve. Quando se separaram - ela ainda segurava os pratos entre eles - Bia descobriu que queria mais; beijou-o novamente, daquela vez, com mais força, como no sonho. 

Ao ouvirem a descarga do banheiro, ambos se separaram rapidamente. Ela foi para a cozinha e começou a lavar a louça freneticamente, esperando que o rubor do seu rosto desaparecesse antes que Carlos voltasse, e Roberto, sem saber direito o que fazer, correu para seu quarto e fechou a porta. 

Quando Carlos chegou à sala, não viu os dois, e escutando a água que corria na cozinha, foi para lá; encontrou a esposa lavando a louça e soltou mais uma de suas piadinhas em voz alta:

-Olha só! O Roberto convida a gente para o almoço e na hora de lavar a louça desaparece? Deixa a mulher fazer tudo sozinha? UM GAY MACHISTA?!

Bia não sabe como aquilo aconteceu; de repente, ela sentiu um ataque de fúria tomar conta dela. Fechou a torneira, virando-se para o marido, o rosto vermelho de raiva, sussurrando de forma zangada:

-Por que está fazendo isso, Carlos? Por que faz questão de humilhar seu amigo em sua própria casa? Não vê o quanto está sendo grosseiro com essas brincadeiras de mau gosto? Esqueceu-se de como pessoas educadas se comportam?

Carlos ficou boquiaberto, fitando-a. Ela continuou:

-Você nem percebe que está fazendo um papel ridículo! Devia se envergonhar!

Ele nada disse. Ela voltou-se novamente para a pia, e Roberto, que a tudo escutara, saiu do quarto. Ouvira tudo, apesar de Bia ter dito aquilo sussurrando, pois o apartamento era pequeno e ela sussurrara de forma bastante audível... ele tentou quebrar o clima tenso:

-Hã... Carlos, que tal um joguinho na TV?

Carlos estava lívido. Olhou para Roberto, virando-se para ele em câmera lenta, enquanto Bia, de costas para ambos, esfregava uma tigela com mais força do que o necessário. 

-Roberto, eu queria pedir desculpas pelo meu comportamento horrível hoje. 

Roberto e Bia, que não esperavam por aquela reação, olharam para ele de olhos arregalados:

-Eu sinto muito.

De repente, Carlos começou a sacudir os ombros, e por um instante, Bia achou que ele estava rindo; mas logo percebeu que ele estava chorando. Ela enxugou as mãos no pano de prato e correu para abraçá-lo.

Ele deitou a cabeça no ombro dela. Roberto olhava-a estarrecido, sem saber como agir. Murmurou:

-Carlos, está tudo bem... eu.. eu sei que você só estava brincando.

Bia abraçou o marido, dizendo:

-Desculpe, amor...

E de repente, ela estava chorando também. A culpa tomou conta dela, invadindo cada curva do seu corpo, fio de cabelo, sentimento e pensamento. Ela foi andando de mãos dadas com Carlos para a sala de estar. Roberto assistia àquela cena bizarra, a raiva, o ciúme, a confusão e a piedade se intercalando em ondas dentro dele. Bia pegou sua bolsa sobre o sofá e levou Carlos até a porta. Antes de sair, agradeceu a Roberto pelo almoço. Roberto ficou parado no meio da sala, sem saber o que fazer. Não fez nada. Os dois saíram. 

Na segunda-feira, Carlos aproximou-se de Roberto no escritório. Roberto cumprimentou-o casualmente, fingindo nem se lembrar da tarde de sábado. Mas Carlos olhou-o de forma tão dolorida, que Roberto pôs a mão no ombro do amigo. Carlos serviu-se de café, e disse a ele:

-Ela está apaixonada por você.

(continua...)




Nem Tudo é Bem Assim - Parte I





Ele a viu pela primeira vez em uma loja de flores, enquanto procurava um presente de aniversário para a mãe. Desde o primeiro olhar, não conseguia tirar os olhos daquela jovem que tinha alguma coisa tão diferente das outras jovens que já vira - e que ele não conseguia saber o que era. Ela caminhava entre os vasos de rosas e os arranjos de flores do campo, parando para aspirar-lhe os perfumes. Usava uma blusa de cashemere azul-clara e um cachecol branco felpudo, cujas pontas soltas caiam ao longo do seu corpo. Os cabelos castanho-escuros cortados bem curtos deixavam em evidência os traços marcantes do seu rosto; aparentava ter algo entre 29 e trinta e dois anos, mas ele não tinha certeza. Ficou ali, em um canto da loja, escondido por trás das samambaias que pendiam do teto, observando-a durante algum tempo, até que um homem surgiu, colocando a mão no ombro da moça. Ela virou-se e sorriu para o homem, beijando-o no rosto, e sem saber o motivo - afinal, era só uma estranha - o coração dele se apertou, e uma batida falhou. E ela nem era demasiadamente bonita; era daquelas pessoas comuns que a gente nem percebe, até que começa a prestar atenção, e quando vê, ficamos totalmente absorvidos por alguma coisa que não sabemos dizer o que é - o charme? A personalidade? A maneira como a pessoa ajeita os cabelos? Não conseguia definir o que o atraía tanto naquela moça; só não conseguia tirar os olhos dela.

Quando ela se foi e a vendedora entregou-lhe o arranjo que escolhera para a mãe, ele jogou o dinheiro sobre o balcão e nem esperou pelo troco: saiu apressado, deixando a vendedora com o troco na mão estendida. Resolveu seguir o casal, que andava a poucos metros dele, de mãos dadas. Viu quando os dois entraram em um café. Ele os seguiu, sentando-se em uma mesa próxima, mas não tão próxima que não o permitisse observá-los sem ser visto. Assim que sentaram, o homem sacou um telefone celular e começou a verificar alguma coisa. A moça pediu um capuccino, e enquanto esperava, passava os olhos nas páginas de uma revista amassada que estava disponível para os clientes do café em um revisteiro. Passaram-se alguns minutos, a garçonete trouxe os pedidos e o homem ainda estava olhando para a tela do celular. Tomaram os cafés e saíram. Ele os seguiu novamente. Percebera, pela atitude segura do homem e pela falta de cortesia , que eles já deviam se conhecer há bastante tempo. Casais novos e apaixonados não se sentavam em um café sem olharem um para o outro durante tanto tempo. Mais à frente, viu quando os dois entraram em um carro preto. Como seu carro estivesse longe, não pôde continuar a segui-los. Sentiu-se decepcionado e frustrado.

Mas dias depois, ele a reencontrou durante a hora de almoço em um restaurante self-service, e daquela vez, estava sozinha. O restaurante estava cheio, e só havia duas mesas disponíveis; ela conseguiu uma delas, e ele esperou até que alguém pegasse a outra mesa, o que não demorou. Assim, ele aproximou-se dela com o prato na mão, olhando em volta, e seu olhar parou sobre a cadeira disponível na mesa dela. Ela sorriu, fazendo sinal para que ele se sentasse. Ele agradeceu, tomando o lugar em frente a ela:

-Obrigada. Está aguardando alguém? Se estiver, eu saio assim que ele - ou ela - entrar, não se preocupe.

Ela sorriu novamente, olhando-o mais demoradamente antes de responder:

-Não... fique à vontade, não estou esperando ninguém. 

Os dois comeram em silêncio durante algum tempo. Ele precisava dizer alguma coisa, mas não queria tornar-se um chato inconveniente. De repente, o celular de um homem começou a tocar na mesa ao lado; ele atendeu, e começou a conversar em voz alta, ignorando a mulher que estava com ele. Os dois se entreolharam, e ele encolheu os ombros. Ela riu discretamente. aproveitando a oportunidade, ele comentou:

-Acho terrível quando as pessoas conversam ao celular desta forma. As pessoas passam mais tempo ao celular do que dando atenção a quem está na sua frente.

Ela não respondeu, apenas encolheu os ombros. Mas ele percebeu que uma leve sombra passou rapidamente pelo rosto dela. Notou também que ela deitou os talheres , o que significava que tinha terminado a refeição. Ele precisava pensar rápido, e acabou dizendo a coisa mais idiota e comum possível:

-Você sempre vem aqui?

Ela respirou fundo, tomando mais um gole do copo de suco que ainda estava acima da metade.

-Não. Na verdade, não. 
-É um bom restaurante. A comida é boa. Não acha?
-Sim, quero dizer... bem, é sim. 
-Trabalha por qui?

Ela olhou-o, desconfiada, e sacudiu a cabeça negativamente. Agarrou a bolsa, e tomou mais um gole de suco antes de começar a levantar-se:

-Preciso ir. Bom apetite.

Dizendo aquilo, ela saiu. 

Ele ficou pensando se ela não o tinha achado atraente. Sentiu-se frustrado mais uma vez. Tinha sido indiscreto? "Mas que idiota", pensou. "Fazer logo uma pergunta cliché como aquela: "Você sempre vem aqui?" "

Ele terminou sua refeição e saiu. Estava quase chegando ao escritório onde trabalhava, quando a viu novamente, parada na esquina, remexendo a bolsa. Seu rosto parecia muito contrariado e aflito. Achou que seria uma chance de reaproximar-se. Caminhou até ela, e com cuidado para não assustá-la, parou a alguns metros de distância:

-Olá. Lembra de mim? 

Ela olhou para ele parecendo desconfiada. Continuou remexendo na bolsa. Tentou sorrir, e finalmente disse um "oi" sem intonação. Ele esticou o pescoço:

-Posso ajudar em alguma coisa? Você parece aflita.

Ela olhou para ele sem responder. Ele sorriu, um sorriso que teve a intenção de desarmá-la, e conseguiu, pois ela sorriu de volta. De alguma forma, ela sentia que ele não era um tarado ou um serial killer, e que talvez só quisesse mesmo ajudá-la. 

-É que eu esqueci de pagar dinheiro. Preciso tomar um ônibus e não tenho nenhum trocado. paguei o almoço com meu cartão, e agora vi que não tenho nenhum dinheiro comigo.

-Para onde você está indo? Talvez eu possa levá-la até lá, se não for muito longe...
 (Ele disse aquilo e logo se arrependeu, pois ele a levaria de carro até a China, se ela quisesse). 

-Hã... estou indo visitar alguém. Fica na Rua Barros de Pina. 

-Mas não é tão longe. Posso levá-la, terei que passar por lá - ele mentiu.

Ela hesitou, parecendo desconfiada. Ele sorriu novamente:

-Tome isso como um pequeno favor. Se não fosse por você, eu estaria tentando achar uma mesa até agora. 

Ela sorriu de volta, e a tensão na sua testa aliviou-se. 

-Está bem. Se eu não for atrapalhar.
-Não, de jeito nenhum, meu carro está logo ali. A propósito, meu nome é Roberto.
-Eu sou Bia. Prazer.

Eles apertaram as mãos. Roberto sentiu que a mão dela era pequena e gelada, mas muito macia. Achou que adoraria colocá-la sob seu suéter para aquecê-la. 

Os dois caminharam em direção ao estacionamento. O manobrista, velho conhecido, não pode deixar de observar, com ar malicioso (os dois já se conheciam há anos):

-Saindo mais cedo, Roberto?

Ele - Roberto - olhou-o muito sério, e desenhou com os lábios a frase "Cale a boca." O manobrista desenhou com os lábios a palavra "Desculpe." Bia não percebeu nada. 

Os dois entraram no carro em silêncio, e Roberto ligou o aquecedor - fazia muito frio, e ela esfregava as mãos. Ele dirigiu alguns metros em silêncio, diminuindo a velocidade para prolongar o trajeto o mais que pudesse. Ligou o CD, colocando uma música suave. Ela sorriu:

-Eu adoro esta música. 
-Eu também! Você gosta de Enya?
-Adoro. Sou fã roxa dela.
-Que coincidência, eu também! Tenho vários CDs da Enya. Você ... tem namorado?

Detestou-se um segundo após a pergunta. Que idiota antiquado! Mas ela olhou para ele:

-Na verdade, sou casada.

Ele engoliu em seco, e sentiu o rosto corar:

-Desculpe, eu... que indiscreto... sinto muito.

-Calma, eu sou apenas casada. Não te disse nada sobre minha vida sexual. Não precisa ficar constrangido. Além disso, perguntar não ofende. Olhe... pode me deixar ali em frente ao prédio de tijolos vermelhos, por favor?

Ele diminuiu a velocidade, parando bem em frente ao prédio. Ela estendeu-lhe a mão, dizendo um "Obrigada, Roberto." Os olhares de ambos se prenderam um no outro durante alguns instantes. Ele queria dizer alguma coisa que fizesse com que ela não saísse por aquela porta e deixasse de fazer parte da vida dele. Ela sentiu a mesma coisa. Mas ele apenas estendeu a mão, e segurou a mão dela respeitosamente. Ainda pode dizer um "Tchau, Bia. Espero te ver de novo."  Ela sorriu, mas não respondeu. 

Semanas depois, Roberto ainda pensava em Bia. Nunca mais a vira, embora voltasse religiosamente todos os dias ao mesmo restaurante aonde a vira pela primeira vez. Também dirigia próximo ao prédio onde a deixara, mas mesmo assim, ela parecia ter desaparecido. Tentou encontrá-la no Facebook, mas havia tantas centenas de milhares de Bias, que ele não conseguiu. Acabou concluindo que ela talvez não tivesse uma conta de Facebook. 

Certa manhã, Roberto chegou ao escritório e teve uma surpresa: Seu supervisor geral apresentava um novo funcionário. Seu nome era Carlos. Ele o reconheceu no primeiro olhar: o marido de Bia!
Os dois trabalhariam na mesma equipe. Desde o começo, Roberto tentou encontrar motivos para não gostar de Carlos, mas não encontrou nenhum. Os dois acabaram ficando amigos, e almoçavam juntos quase todos os dias, naquele mesmo restaurante onde Roberto ficara conhecendo Bia. Um dia, Bia juntou-se a eles inesperadamente. Ao vê-la aproximar-se da mesa onde almoçava com Carlos, Roberto quase engasgou. Ela aproximou-sem e sem tirar os olhos dele, beijou o marido no rosto, dizendo:

-Afinal, Roberto, nós nos vemos de novo. Conhece meu marido?

Carlos olhava de um para o outro, mas permaneceu em silêncio quando Roberto, estarrecido,  recebeu  no rosto o mesmo beijo que Bia dera nele. Roberto sentiu os lábios dela queimarem sua pele, e tratou de recompor-se rapidamente:

-Ah, Carlos... que coincidência! Você é o marido da Bia! 

Carlos respondeu, um olhar indagador e enciumado:

-Não sabia que vocês já se conheciam.

Bia explicou:

-Lembra-se daquela tarde que um estranho ofereceu-me carona até a casa dos seus pais? Era Roberto. O mundo não é pequeno?

Todos riram da coincidência, embora Carlos sentisse uma pontada de ciúme, um sentimento que nunca havia tomado conta dele antes. Talvez porque ele sentira que Bia olhara para Roberto de maneira diferente da que ela olhava para seus outros amigos? Talvez porque Roberto ficara muito vermelho ao ver Bia aproximar-se da mesa deles? Ele não sabia dizer; mas certamente, havia um clima diferente entre os dois, o que fez com que Carlos tentasse mostrar sua superioridade intelectual durante o almoço, fornecendo argumentos contra tudo o que Roberto tentava discutir sobre  a política do país, sobre futebol ou qualquer outro assunto. Roberto e Bia perceberam o desespero de Carlos, mas deixaram-no pensar que estava "vencendo", embora não soubessem exatamente o quê. 

Ao final do almoço, Bia já convidara Roberto para almoçar com eles naquele final de semana. Carlos reforçou o convite.

Quando o dia do almoço chegou - um sábado gelado de céu encoberto - Roberto parou o carro em frente ao endereço indicado pelo amigo, e deparou com um aconchegante chalé em rua sem saída arborizada e silenciosa, onde havia poucos vizinhos. Ao entrar, foi acolhido por um beijo caloroso de Bia, que pegou-o pela mão, convidando-o a sentar-se junto à lareira acesa enquanto já servia-lhe um conhaque:

-Carlos já estará aqui. Está tomando banho.

Ela sentou-se ao lado dele no sofá de dois lugares, o joelho  roçando o dele acidentalmente. Ele tomou um grande gole do conhaque, fazendo uma leve careta, e sentindo-se logo aquecido.

-Vocês tem uma linda casa, Bia. São casados há muito tempo? 
-Há quase onze anos. 

Ele ergueu as sobrancelhas. Para ela, a decepção estampada no rosto dele era óbvia, mas ela fingiu não notar. Ela pôs a mão sobre a dele, dizendo:

-Venha. Vou te mostrar o jardim.

Ele a seguiu pelos fundos da casa, passando pela cozinha, onde alguma coisa perfumada estava sendo cozida no forno. Reparou a bancada em desordem, cheia de ingredientes para o almoço, e sentiu um pouco de inveja por não ser ele o felizardo a desfrutar daquela rotina acolhedora. Na pia, entre algumas louças para lavar, uma garrafa de vinho quase vazia e duas taças de vinho usadas. Roberto imaginou que as taças de vinho tinham sido usadas na noite anterior, em uma noite de amor. Sentiu ciúmes. Chegaram a um pequeno espaço cheio de plantas e orquídeas floridas,  no momento coberto por um teto de vidro que poderia ser recolhido em dias de sol. Uma linda estufa. Logo após, um gramado aveludado se estendia diante dos olhos deles, e ao fundo, uma pequena piscina coberta por uma lona aguardava sua época de ser usada. Roberto disse sinceramente:

-Que lugar lindo! Vocês tem muito bom gosto.
-Obrigada! Temos muito orgulho deste espaço que construímos com tanto sacrifício... sabe, quando nos casamos, não tínhamos nada. Morávamos de aluguel em um pequeno apartamento no centro...

E Bia começou a dar um pequeno discurso sobre como eles começaram a vida, o que deixou Roberto desesperançoso, pois percebeu o quanto a vida deles estava entrelaçada. Mesmo assim, ele escutou-a com atenção e boa vontade. Ela mostrou-lhe uma orquídea rara e belíssima, presente da mãe, que estava sobre uma prateleira. Roberto bebia com os olhos, não a flor, mas Bia. E foi assim que Carlos encontrou-os: Bia de pé, curvada sobre a flor, o rosto a poucos centímetros do de Roberto, que estava sentado e fingia admirar a flor enquanto tinha os olhos presos no rosto de Bia. Carlos pigarreou, e entrou:

-Olá, Roberto. Bia, como você pode trazê-lo aqui para fora nesse frio? Veja, o rosto dele está pegando fogo de tão gelado. Vamos, entre, amigo. Vamos terminar sua taça de conhaque, eu o acompanho. (virando-se displicentemente para Bia): Traga-me uma taça, amor.

E os três juntaram-se para tomar o conhaque, e logo em seguida, almoçaram o fettuccini ao forno servido por Bia, acompanhado de um delicioso vinho tinto. Roberto não poupou elogios à comida. Carlos observava os dois, e percebia que estava certo: havia algo acontecendo ali. Mesmo assim, conseguiu disfarçar até o término do almoço, quando Roberto finalmente despediu-se, ao final da tarde, após o futebol que os três assistiram juntos no tapete da sala. No segundo tempo, Bia adormeceu e descansou a cabeça no ombro do marido, mas suas pernas foram parar em cima das pernas esticadas de Roberto. Os dois amigos se entreolharam, mas nada disseram.

Quando Roberto saiu, já escurecia. O casal despediu-se dele à porta de casa, entrando quando o carro virou a curva e desapareceu. Bia tinha um brilho estranho no olhar, que ela alegou ser por causa do vinho, e do cansaço. Carlos ajudou-a a retirar a mesa e secar a louça do almoço. Quando terminaram, ele segui-a até o quarto, abraçando-a por trás. Ela beijou-o, mas abriu os braços dele com as mãos, livrando-se do abraço. Disse estar cansada. Passaria o começo da noite descansando na cama, assistindo a um filme. 

Carlos enfureceu-se:

-Ora, por que? Você passou o dia todo se oferecendo para o Roberto. Agora vai dizer que não quer ficar comigo?
-Como assim? Não sei do que você está falando (mas ela sabia).

Carlos não se conteve:

-Pensa que eu sou idiota, Bia? Pensa que não percebi as trocas de olhares, os toques 'acidentais' de mãos quando você o serviu? Por que é tão difícil admitir? Você se sente atraída por Roberto, e ele por você!

As coisas ditas daquela maneira tão simples fizeram um sino soar alto na cabeça de Bia. De repente, ela mesma sentiu que não conseguiria negar, caso ele insistisse, e achou melhor sair pela tangente:

-Olha, estamos cansados, bebemos demais e eu estou com dor de cabeça. Não vamos dizer nada que possa fazer com que nos arrependamos mais tarde, tudo bem? Amanhã, se for o caso, a gente conversa.

Ele se não deu por convencido. Pisando duro, voltou para a sala de estar, e minutos depois, Bia escutou a porta da frente bater com força. Carlos já tinha tido crises de ciúmes antes, mas daquela vez, ele tinha razão, e ela sentiu-se culpada.

Bia estava na estufa, molhando as flores. De repente, percebeu a presença de alguém atrás dela, e ao virar-se, deu com Roberto olhando-a. Ela sorriu, tentando soar casual ao cumprimentá-lo, mas ele caminhou até ela e selou-lhe  a boca com um beijo apaixonado e demorado...
ela viu-se correspondendo-o com sofreguidão, passando os braços em volta dele e apertando-o com força ao encontro do corpo dela, que pulsava. Quando se separaram, ela ainda perguntou a ele:

-E agora, o que? O que vamos fazer?

Quando acordou, viu que Carlos já chegara e dormia ao seu lado. O sonho tinha sido muito real, e seu coração aos pulos fez com que ela se levantasse e fosse ao banheiro tomar um tranquilizante. 


(continua...)




segunda-feira, 16 de março de 2015

POR QUE VOCÊ NÃO MUDA?



O clima pode mudar a vida de alguém? 




Foi naquele dia muito claro e muito quente de um verão carioca. 

Ema caminhava pela calçada movimentada da avenida, levando alguns sacos plásticos com coisas que comprara no supermercado - uma caixa de leite, alguns enlatados. O mesmo de sempre. Ela voltava para o seu apartamento no Leblon, situado ali perto no quinto andar de um prédio de classe média, numa rua arborizada e bonita do Rio de Janeiro. O suor escorria pelo seu rosto, costas, peito, pescoço. Sua roupa colava-se ao corpo como se fosse uma segunda pele. 

Ema odiava o calor. Não conseguira acostumar-se com ele, como Sálvio prometera-lhe que aconteceria há dois anos, ao se mudarem para o Rio, onde ele recebera uma proposta de emprego que  sempre fazia questão de lembrá-la como sendo "irrecusável," toda vez que ela tentava convencê-lo a voltarem para Friburgo. Não gostava das idas à praia, pois sua pele clara e sensível não conseguia ficar exposta por muito tempo, nem mesmo com filtro solar, o que a obrigava a permanecer vestida com sua saída de praia, o que fazia com que sentisse ainda mais calor. Sálvio dizia para ela entrar na água quando reclamava. Parecia não ouvir quando ela lhe respondia que a água salgada causava-lhe alergias terríveis. Borrifava água mineral no rosto e no corpo para tentar refrescar-se, enquanto Sálvio e seus amigos do escritório, com suas respectivas esposas, pareciam divertir-se mergulhando, tomando cervejas, jogando frescobol e conversando sobre assuntos que não a interessavam. Ema não conseguira fazer amizade com aquelas mulheres de seios falsos, bundas e bíceps construídos através de malhação pesada em academias sofisticadas e cabelos artificialmente loiros. Só falavam de roupas, compras, viagens, dietas, tratamentos de beleza e famosos. E é claro, umas das outras, quando alguém não estava presente. 

 A caminho de casa, Ema pensava nos acontecimentos daquele terrível dia, ao final da manhã de sábado.  O ruído dos bifes que Marta fritava na cozinha enquanto cantarolava uma música Gospel de gosto duvidoso. Depois, o som do aspirador de pó sendo passado pela sala de estar, o barulho contínuo e monótono levando-a de volta a um tempo que não existia mais. Enquanto pensava, Sálvio tomava banho naquele banheiro minúsculo e sem ventilação adequada da suíte, que ela detestava, pois fazia com que ela já saísse do banho banhada de suor. Ela odiava tudo a respeito daquele apartamento, e do Rio. Odiava aquela vida que não era sua. Às vezes, imaginava como Marta conseguia chegar ao trabalho todos os dias, tomando três conduções lotadas, suportando todo aquele calor.

Sálvio saiu do banho e olhou-a com ar de censura, pois ela ainda estava na cama, e já eram quase onze da manhã. Desde que se mudaram para o Rio, Ema apenas sabia reclamar de tudo. Não reconhecia o esforço que ele estava fazendo pelos dois. Não sentia nenhuma gratidão pela vida confortável que ele dava a ela - e que tinha tendência a melhorar depois da promoção que recebera há um mês. Andara procurando por um apartamento melhor, e encontrara um no dia anterior, e só não dissera a ela porque desejava fazer-lhe uma surpresa. Aproveitou o seu ar desanimado para dar-lhe a notícia, achando que ela ficaria feliz; pigarreou, e enquanto se vestia, olhando-a pelo espelho (e constatando o quanto ela era bonita, com sua cascata de cabelos naturalmente negros e ondulados caindo pelas suas costas nuas), disse casualmente:

-Ema, o que você acha deste apartamento?

Ela respondeu com enfado, a voz bafejada entre os lábios:

-Você já sabe. Eu o detesto.

-Pois é, eu sei. 

Sálvio calçou os tênis. Ema sentou-se na cama, bocejando e se espreguiçando, e os lençóis caíram em volta de sua cintura, deixando-lhe os seios expostos. Ela se levantou e caminhou os poucos passos que a separavam do banheiro, batendo a porta. Sálvio respirou fundo, a cabeça entre as mãos, sentado na beirada da cama, a notícia presa entre os dentes. Minutos depois, ela voltou, os cabelos enrolados em uma toalha. Começou a espalhar o creme hidratante na perna direita, o pé sobre a cama. Parecia que Sálvio nem estava presente.

Ele achou melhor ignorar aquele comportamento, e prosseguiu, como se nada houvesse acontecido:

-Tenho excelentes notícias para você.

Ele viu o rosto dela iluminar-se com um sorriso verdadeiro pela primeira vez em meses, e ela arrancou a toalha da cabeça, penteando os cabelos com as mãos. Ema pensou que finalmente ela iria ouvir o que tanto aguardara, já que, para ela (ele sabia), a única excelente notícia seria que eles iriam voltar para casa. Já se via fazendo as malas e voltando para Friburgo, deixando aquela cidade  quente, violenta e horrorosa para trás. Aproximou-se de Sálvio, sentando em seus joelhos como há muito tempo não fazia:

- Eu sabia que você acabaria mudando de ideia sobre essa mudança louca, amor!

Sálvio percebeu que ela não tinha entendido nada, e achou melhor ir com calma; forçou um sorriso:

-Apronte-se. Vamos almoçar fora. É sábado.

-Mas... Marta está preparando o almoço. Escutei quando ela começou a fritar os bifes, vai ficar uma fera.

-Somos nós que a pagamos. Se não gostar, que coma ela mesma. 

Ema vestiu um vestidinho florido, curto e transparente, que em Friburgo teria causado um grande tumulto, mas que naquela cidade quente passava despercebido. Calçou sandálias baixas e deslizou o batom sobre os lábios. Os cabelos já secavam, emoldurando-lhe os belos olhos castanho-esverdeados. 

Sálvio escolheu um restaurante pequeno e afastado, com uma linda vista para o mar. Já tinha ido ali outras vezes, em almoços de negócios... e em uma outra ocasião da qual se arrependera e que nunca mais quis repetir. Durante o almoço, parecia que as coisas finalmente tinham voltado a ser como antes; Ema estava visivelmente muito feliz, e até comentou sobre a beleza da paisagem, coisa que nunca fizera. Sálvio ficava satisfeito ao notar que outros homens olhavam-na discretamente (outros, não tão discretamente assim), e sentiu-se orgulhoso de ter uma mulher que, aos trinta e sete anos,  arrancava suspiros e virava cabeças.

Após o almoço, durante a sobremesa, ele deu a notícia. 

Quando Ema a escutou, tudo ao redor pareceu-lhe perder a cor de repente. A paisagem e o mar tornaram-se cinzentos. O sorvete perdeu o sabor, e ela teve que fazer um esforço enorme para engolir o que estava em sua boca. Os olhos dela encheram-se de lágrimas, deixando o cenário turvo. Ela não conseguiu falar.

Sálvio fingiu não notar a decepção dela. Quis dar a entender que achava que ela estava emocionada com a boa notícia, e pôs-se a falar, falar e falar sem parar sobre a nova decoração que fariam, na piscina que tinham em sua nova varanda, no tamanho do banheiro da nova suite, no quarto extra que poderia ser do bebê que finalmente teriam. Mas ele sabia que Ema estava arrasada. Pensou que com o tempo ela aceitaria a mudança, mais uma vez. Ema permaneceu em silêncio. Enxugou uma lágrima furtiva. Pensou que nunca mais sairia daquele lugar horroroso e quente. Que nunca mais teria amigos verdadeiros. Que jamais voltaria a caminhar pelas ruas sem olhar em volta, com medo de ser assaltada novamente. Que teria que conviver com aquelas pessoas afetadas para o resto de sua vida.

Meses após a mudança, Ema parecia piorar a cada dia, até que finalmente, Sálvio marcou uma consulta para ela em um psiquiatra. Achava que sua esposa estava deprimida, e que medicamentos poderiam resolver. Ela retrucou, dizendo que seu único problema era aquela vida, naquele lugar. Amarga, mal falava com o marido. Passava o dia trancada no quarto, as persianas fechadas e o ar condicionado no máximo. Vivia resfriada, e estava mais pálida do que nunca. Emagrecera, pois mal tocava na comida. Marta estava preocupada com ela. Por isso, Sálvio decidiu pelo psiquiatra.

Ema foi a duas sessões, nas quais o homem sério e taciturno (parecia a ela que ele estava entediado de tanto ouvir histórias) escutou dela a mesma coisa: o quanto ela odiava o Rio de Janeiro, as pessoas com quem tinha contato, a vida que levava. Desistira de sua profissão de professora em Friburgo porque Sálvio garantiu-lhe que eles voltariam para casa se ela não se adaptasse à nova vida, e arrependia-se. Tentou dar aulas em uma escola do Rio, mas sair de casa e caminhar pelas ruas naquele calorão, deixavam-na literalmente doente: tinha ânsias de vômito, não conseguia comer direito, sentia-se cansada o tempo todo e tinha dores de cabeça terríveis. Acabou desistindo. Sálvio concordou que ela ficasse em casa, pois seu salário dava para sustentá-la. Aos poucos, Ema contou ao seu analista, ela se viu encarcerada em uma vida que não era sua, que na verdade, nem era uma vida, e não a agradava. Fizera todos os sacrifícios pelo marido, e ele os recebera como se tivesse todos os direitos a eles. E agora, ele falava em ter filhos, em ser pai! Alegava que o relógio biológico de Ema estava com os minutos contados. Queria um filho dela. E ela nem sabia se queria continuar casada com ele. 

Na terceira consulta, após ouvir as mesmas queixas,  o Doutor Fulano, cujo nome Ema nem fez questão de lembrar, pronunciou uma frase que soou dentro de sua cabeça como uma bomba relógio; uma frase que obrigou-a a tomar uma atitude, e que ela mesma tinha muito medo de pronunciar. Aquela frase estabeleceria um marco, fazendo com que Ema finalmente admitisse que tudo o que estava passando era sua própria culpa:

Após ouvi-la por mais ou menos trinta minutos, pouco antes da parte em que ela começaria a falar sobre os sacrifícios que fizera por Sálvio, O Doutor Fulano a interrompeu, e sua voz forte e cortante trovejou:

-Por que você não muda?

Ela calou-se no meio da frase que dizia, e ficou em silêncio por alguns segundos, olhando para o médico, que a olhava de volta com aqueles olhos de peixe morto, as pernas cruzadas, mostrando a meia cor de vinho que não combinava com seus sapatos marrons.

-O que? - Ela perguntou.

Ele suspirou fundo, descruzando as pernas e cruzando-as novamente. Repetiu,mais devagar e  pacientemente, mas como se demonstrasse impaciência pela sua falta de bom senso, deixando pausas mais longas entre as palavras:

-Por que ...  você ... não ... muda?

Ema pigarreou, remexendo-se no sofá. Quem ele pensava que era? Como ela poderia mudar assim, de repente? Será que ele pensava que Sálvio deixaria seu "maravilhoso" emprego por causa dela, porque ela tinha decidido mudar-se? E o seu casamento, como ficaria? E ela nem tinha um emprego! Do quê sobreviveria? E as responsabilidades, que... 

Sentiu uma onda de raiva e impaciência dominá-la. Levantou-se, agarrando a bolsa e caminhando até o Doutor Fulano, que permaneceu sentado, o olhar ligeiramente alarmado. Ema parecia uma torre, fazendo sombra sobre o rosto dele:

-Quem você pensa que é?

Ele não respondeu, os olhos colados nos dela, talvez pronto para defender-se de alguma agressão física.

-Você fica aí sentado, sendo pago por hora para dizer uma frase idiota dessas como se ela fosse resolver tudo? Faz isso com todos os seus pacientes, doutor? Escuta seus problemas, e depois simplesmente diz a eles para mudarem suas vidas, como se isso fosse simples, como se a culpa fosse nossa? -  (ela dissera as últimas palavras com o dedo indicador apontado para o rosto dele, indo e vindo em direção ao seu nariz, mas sem tocá-lo). Ele piscou por alguns instantes, fazendo sinal para que Ema voltasse a sentar-se.

Ao invés disso, ela saiu pisando duro, deixando a porta escancarada. 

E naquele dia de verão muito claro e muito quente, enquanto olhava para o prédio onde morava, carregando as suas sacolinhas do supermercado, Ema suspirou profundamente. Olhou para os lados. Colocou as sacolas no chão, em frente ao portão, de onde o porteiro a olhava, já se encaminhando para ajudá-la a carregar as compras, mas antes que ele abrisse o portão, ela simplesmente continuou caminhando. Continuou, e de repente, o calorão de verão que subia em vapores escaldantes da calçada, já nem fazia tanta diferença. 

"Por que você não muda?"

Aquela frase martelava fortemente, ecoando em sua cabeça, que desta vez, não doía devido ao sol que fustigava-lhe. A pele ficando vermelha não mais a incomodava. Sinalizou para um táxi que passava, e o motorista parou a alguns metros à frente. Ela foi caminhando, bem devagar. Abriu a porta, e entrou.



A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...