segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A OUTRA MARGEM - PARTE X






A viagem de volta para  a sua cidade foi feita naquela mesma noite. Rayssa achou melhor não se despedir. Chegou em casa, arrumou suas malas com tudo o que conseguiu carregar no carro, e antes de fechar a porta da casa, parou por um instante e olhou para trás: há apenas alguns meses, estava feliz da vida, arrumando sua nova casa, seu novo lar! Deixou que aquela sensação tomasse conta dela, antes de apagar a luz e trancar a porta, jogando a sua chave dentro da caixa de correio, em um envelope onde estava um bilhete; nele estava escrito: "Sejam felizes." 

Entrou no carro e deu partida. Não olhou para trás. 

Achou melhor, dissera à mãe ao chegar, que tivesse sido daquela forma. Por que esperar por ele, a fim de inicar uma conversa constrangedora, humilhante e desnecessária? Que tipo de satisfações ele poderia dar a ela, e o que ela poderia responder a ele? Será que ele se desculparia por não amá-la? E ela o odiaria pelo mesmo motivo, ou será que poderia perdoá-lo?

Georgina perguntou-lhe se ainda amava Luciano, e ela respondeu imediatamente que o amava, e que achava que nunca seria capaz de esquecê-lo totalmente. As lágriamas que tentava conter caíram novamente, e aquilo repetiu-se por muitas e muitas noites, até que passou a acontecer apenas algumas noites. E aos poucos, as lágrimas foram secando.

Rayssa trocou seu número de telefone, apagando os contatos de Luciano, Cláudia e seus sogros. Queria recomeçar sua vida, olhar para frente, e o que mais lhe deu forças, foi participar das reuniões dos pacientes de câncer e seus parentes, que aconteciam no Segundo Lar. Aquelas pessoas tinham tantas esperanças, agradeciam tanto pelas vidas que tinham, que ela não poderia dar-se ao luxo de ser infeliz somente porque seu relacionamento não dera certo. Apesar de algumas delas saberem que seus dias aqui nesta Terra estavam contados, que seus casos não tinham mais solução, sua maior preocupação era aproveitar o que ainda lhes restava da forma mais intensa possível, estando junto àqueles que amavam. 

Rayssa ainda teve que receber o advogado de Luciano, a fim de assinar os papéis do divórcio. Foi difícil, mas depois, pensou, sentiu-se absolutamente livre para recomeçar sua vida. 

Rayssa continuou com seu trabalho, escrevendo para a revista, e ainda começou a escrever um livro. Nele, falaria sobre a importância do amor na vida das pessoas, e na cura para as doenças. Contava com a ajuda de um psicólogo e psiquiatra na parte técnica. Seu nome era Breno. Georgina notava que Breno olhava sua filha de maneira intensa, mas também sabia que Rayssa ainda não estava pronta para amar de novo; mas conhecia bem a filha, e sabia que ela logo estaria.

Um ano depois, Georgina entrou no quarto da filha enquanto ela estava trabalhando em seu livro- ela ainda estava morando com a mãe, que lhe cedera uma das suítes da casa - e pediu-lhe que fosse ver uma das novas pacientes, que acabara de chegar e pedira para falar com ela. Rayssa perguntou a mãe de quem se tratava, mas esta respondeu-lhe apenas:

-Acho melhor que você veja com seus próprios olhos. E lembre-se, seja gentil. Seja exatamente o que você é. Como você está escrevendo, o amor é a coisa mais importante em momentos difíceis.

Rayssa desceu as escadas, intrigada pelas palavras da mãe, e cruzou o jardim, indo até as alas dos pacientes. O dia estava lindo, e muitos sentavam-se nos bancos do imenso jardim, apreciando a beleza da natureza. Ela subiu as escadas de mármore da recepção, indo bater à porta do quarto que sua mãe lhe indicara. Ouviu alguém dizer para ela entrar. 

De pé à porta de entrada, Rayssa viu uma mulher sentada em uma cadeira de rodas, de costas, observando o movimento no jardim. A mulher usava um lenço de seda amarelo-claro. Rayssa deu batidinhas na porta de novo, anunciando sua presença:

-A senhora pediu para me chamar?

A mulher virou-se bem devagar na direção dela, e Rayssa deparou com sua ex-sogra Joana. 

Rayssa não sabia como agir. Joana fez sinal para que ela entrasse, indicando a poltrona junto à cama. Rayssa sentou-se, enquanto Joana deitou-se na cama, cobrindo-se com o lençol. 

-Obrigada por vir, Rayssa. 

-Eu não sabia que era você. Quero dizer, eu nem imaginava que você... mas o que houve? E Carlos?

Joana suspirou, deixando que seu olhar se perdesse entre as montanhas que se estendiam lá fora:

-Ele morreu alguns meses depois que você foi embora. E dias depois, descobri que eu estava doente.

Olhando Rayssa novamente, Joana exclamou:

-Pois bem, você pode dizer que está vingada!

Rayssa começou a levantar-se:

-Olhe, não sei o que você pretende, mas...

Joana silenciou-a:

-Por favor, sente-se! Me desculpe... sou apenas uma velha doente e ranzinza. Mas há algumas coisas que eu quero que você saiba, além do fato de que eu estou morrendo e me restam poucos meses. 

Rayssa sentou-se novamente, recostando-se, mas suas mãos, agarradas aos braços da poltrona, demonstravam sua tensão. Joana continuou:

-Às vezes classificamos as pessoas como boas ou más. Certas e erradas. Não estou tentando me justificar, mas quero apenas que você saiba que nunca tive nada pessoal contra você, ou contra qualquer uma daquelas moças, ex-namoradas de Luciano. Queria que você me visse apenas como alguém que estava em uma outra margem, se for possível.

-Como assim?

-Pense da seguinte forma: cada ser humano é uma ilha.

-Quando quer ser! Viver emocionalmente isolado é uma escolha.

-Não; um dia, você vai compreender que nós nos juntamos em casais e grupos apenas para disfarçarmos a nossa intrínseca e inevitável solidão. Somos ilhas, e nos vemos à distância. Muitas vezes, tomamos um barco, visitamos uns aos outros, mas nunca entramos profundamente no coração das outras ilhas, pois há lugares remotos que apenas são percorridos por nós mesmos, que habitamos tais ilhas. Cada um é o que é, e tem seus motivos para ser como é.  

Rayssa negou com  acabeça:

-Eu não concordo com isso. Eu não sou uma ilha. Você é quem tentou colocar a si mesma e ao seu filho em uma ilha, onde ninguém pudesse chegar. E veja só no que deu: olhe para você agora!

Ao dizer aquilo, Rayssa lembrou-se do livro que estava escrevendo, e das palavras da mãe, e constrangida pelas  próprias palavras, disse:

-Me desculpe. Não faz mais diferença. Bem... ele está feliz?

Joana suspirou profundamente, antes de responder:

-Sim. Eles se casaram, e Cláudia está grávida de gêmeos. Neste momento, estão em uma viagem pela Europa.

-Mas deixaram você assim? Sozinha?

-Não. Eles não sabem de nada. Não sabem que eu estou doente. Depois que Carlos se foi, meu filho deixou de visitar-me. Engraçado como a vida é irônica... justamente eu, que sempre temi ficar sozinha, acabei ficando sozinha justamente por causa do meu medo!

-Eu acho que Luciano precisa saber como você...

-Não; prefiro que ele não saiba de nada. Quero que ele possa viver em paz, finalmente, pois esta será a minha maneira de reparar todo o mal que eu lhe fiz. A ele, à Cláudia  e a você também. A maior das ironias, é que ele será pai de gêmeos! Sabe, eu mesma já fiquei grávida de gêmeos, mas perdi os bebês. Isso foi há muito tempo.

Rayssa sentiu que suas mãos relaxavam nos braços da poltrona, pois achou que deveria desarmar-se, pois pela primeira vez, sentia que sua ex-sogra estava sendo sincera e aberta com ela, sem subterfúgios, sem ironias e sem fingimentos.

-Mas como eu estava dizendo, voltando à questão das ilhas... eu queria convidar você para fazer uma viagem comigo ao coração da minha ilha. 

-E o que isso significa, Joana? Por que, depois de tudo?

-Porque você é uma boa moça, Rayssa. A melhor. Melhor até mesmo que Cláudia.

Rayssa retesou-se novamente, erguendo a voz:

-Escute, não quero ser comparada com ela. Acha que eu vou ajudar você a separar Luciano e Cláudia? Está muito enganada! Conheço suas estratégias, e...


-Acalme-se! Não é nada disso! Apenas disse que gosto mais de você do que alguma vez gostei dela.

-Pois deveria conhecê-la melhor. É uma ótima pessoa.

-Tarde demais para isso agora, ela não quer me ver nem pintada a ouro. E admito que tem suas razões. Mas por favor, deixe-me falar o que quero, o que preciso! 

Joana encostou-se novamente, cruzando os braços e as pernas. Estava um pouco zangada com a mãe por ela não ter lhe prevenido sobre quem a estava esperando. Parecendo adivinhar seus pensamentos, Joana disse:

-Naquele tempo, antes de vocês terminarem o casamento, sua mãe me ligou e me convidou para uma conversa. Sempre fui muito fechada, mas alguma coisa no tom de voz dela me fez sentir...como se eu pudesse realmente confiar nela. Sua mãe foi incrível comigo. Ela ouviu a minha história sem me julgar. Pena que logo depois, sem que eu pudesse conversar com você, vocês se separaram. Mas eu sempre quis ter esta conversa com você, Rayssa, porque é importante para mim que você me entenda, e mesmo que não concorde comigo, me perdoe. 

Joana serviu-se de um pouco d'água de uma jarra que estava na cabeceira antes de continuar:

-Eu fui muito pobre um dia, na minha juventude; meu pai era um bêbado que me abandonou após a  morte de minha mãe, a quem ele humilhava e em quem ele batia. Sempre fui muito só, e cresci em uma instituição para meninas órfãs... o medo da solidão me perseguiu desde sempre...

Assim, naquela tarde, Joana conduziu Rayssa por dentro de sua ilha, contando a ela a sua história verdadeira desde o começo. Quando terminou, estava escuro lá fora, e um belo luar todo branco surgira por trás das montanhas à janela. Rayssa tinha acendido alguns abajures, tornando o ambiente mais aconchegante. 

-...E esta é a minha história, Rayssa. Obrigada por ouví-la. 

Rayssa ainda ficou algum tempo pensativa, sem saber o que fazer com aquele derramamento espiritual tão sincero, tão sem máscaras. Finalmente, segurou a mão da ex-sogra, dizendo:

-Já passa das seis da tarde. Hora do jantar. Quer que eu traga aqui?

Joana concordou com a cabeça, agradecendo. Mas antes que Rayssa retirasse a mão, Joana apertou-a, pedindo:

-Você pode me perdoar?

Rayssa demorou um pouquinho antes de responder:

-Eu não tenho que perdoar nada, Joana. Você foi sincera e abriu-se comigo. Eu a escutei, não por pena ou por curiosidade, mas porque eu senti que você precisava ser ouvida mais uma vez, pois na verdade, você está resgatando a sua própria história através destas narrativas. Você está se lembrando de quem realmente é, para que possa sair desta vida levando sua alma limpa, leve, sem arrependimentos. É um gesto nobre e importante, e eu agradeço por ter confiado em mim para ajudá-la. 

.    .    .    .    .    .


Meses mais tarde, após voltarem do enterro de Joana, e de ter se encontrado rapidamente com Luciano e Cláudia, a quem cumprimentou e desejou sinceramente muitas felicidades, Rayssa conversava com a mãe no jardim do Segundo Lar. Já era noite, e todos dormiam. 

-Você está tão pensativa, filha... como foi para você, reencontrar Luciano?

-Na verdade, melhor do que eu esperava. Compreendi que fui necessária na vida dele, pois através de mim, ele aprendeu a livrar-se do domínio da mãe. Cláudia e Luciano se amam, sempre se amaram, e a separação deles não foi natural, mas gerada por intrigas. Gostei de saber que estão felizes, e ele me agradeceu por termos cuidado de Joana. E tem mais uma coisa, mãe...

-O que?

Rayssa olhou para mãe com o canto do olho, fazendo suspense antes de responder:

-Eles me convidaram para ser madrinha dos gêmeos.

Georgina ficou boquiaberta:

-E você aceitou, filha?

-Mas é claro que sim! Eu gosto muito dos dois.

Naquele momento, Georgina sentiu um enorme orgulho de sua filha. Agradeceu mentalmente por tê-la ao seu lado. Uma estrela cadente cortou o céu, e Rayssa chamou-lhe  atenção para ela. Georgina mandou que fizesse um pedido, rapidamente.

-E pensa que eu já não fiz?

--Ora, ora... mas não vai me contar o que é, certo?

-Não posso contar, mãe. Mas posso dizer que amanhã vou jantar fora com o Breno.

As duas se abraçaram.


.    .    .    .    .


Às vezes, o que deixa as pessoas ilhadas é justamente a falta de diálogo. Nós enxergamos no outro não a verdade sobre o que ele é, e sim o que ele faz questão em demonstrar ser a fim de defender-se e às suas posições, muitas vezes dominado pelo medo e pelo espírito competitivo. Tornar-se uma ilha é uma maneira de mostrar-se forte, defender-se; o problema, é quando esta questão metafórica - a ilha forte, indevassável, inatingível e portanto, jamais ferida - torna-se algo concreto. 

É preciso que haja barcos a fim de cruzarmos as distâncias que existem entre nós e os outros. Mas só poderemos cruzar este mar que nos separa quando houver honestidade e verdade sob as ondas, e não maremotos ameaçadores escondidos sob elas. Somente a sinceridade, a verdade, a humildade, o olho no olho, o coração aberto e a vontade genuína de estabelecer relações que não passem pelo campo do interesse e da falsidade, podem criar laços profundos e reais. 

Ninguém navegaria por águas profundas e traiçoeiras, nas quais já quase se afogou inúmeras vezes, de livre e espontânea vontade; somente os tolos o fariam. É preciso trazer os próprios monstros à tona, admitir que eles existem e que podem ser controlados a fim de que os outros não temam aproximar-se sem voltarem a ser novamente jogados contra as pedras. É preciso humildade. É preciso integridade.

E muitas vezes, é preciso pedir desculpas. 



FIM






Um comentário:

  1. História linda, Ana!
    Muitas vezes, por erro nosso, ao nos trancarmos em nossa ilha, por medo, por muito tempo, permitimos que outros se apossem de nossa vida, mudem a história, por puro interesse, tirando qualquer condição de aproximação com nossos entes tão queridos.
    A medida que o tempo passa, por mais íntegros que sejamos, temos que nos conformar com nossa sina.
    Existem verdades que precisam ser ditas, mas que nunca ouviremos de quem nos manipulou e usou uma vida inteira.
    Escolhi tanto, para não repetir erros da família, que eu mesma acabei reproduzindo.
    As relações familiares são por demais complexas, às vezes, quando se é discriminada, o isolamento é a melhor solução.
    Obrigada, Ana, muito lindo e ainda bem que tudo acabou bem!
    Abraços carinhosos
    Maria Teresa

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