segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O DOM DE ESQUECER - PARTE VI - FINAL






Anna me perguntou qual era meu nome de verdade. Foi numa  noite movimentada, durante o jantar na pousada, enquanto eu saboreava meu caldo de ervilhas. Ela estava sentada, me olhando comer, calada, as mãos cruzadas sobre a mesa. Achei a atitude dela estranha, pois Anna era muito faladeira, e estava quietinha há mais de cinco minutos... os outros hóspedes já tinham desistido, de mim... o rapaz que me olhava estava acompanhado de uma menina recém-chegada, o que me deixou aliviada. 
E foi assim, "do nada," que Anna de repente perguntou: "Você não se chama Nanda, não é?" Senti o rosto queimar e quase engasguei com o caldo, mas me mantive firme, e tentei fazer uma cara engraçada: "Como assim? Meu nome é Nanda sim... aliás, você está certa, não é Nanda, é Fernanda" Ela prosseguiu como se não tivesse me ouvido: "Ontem te chamei de Nanda cinco vezes e você não respondeu..." Eu ri, tentando manter uma aparência casual, mas meu rosto queimava, minha garganta fechou e não consegui mais comer. Anna disse: "Minha mãe gosta muito de você, mas ela também já percebeu isso. E... lembra quando eu te disse que ela era médium? Pois é... ela me falou que vê sempre um menino acompanhando você, o tempo quase todo."

Meu coração gelou, e eu tossi, deixando a colher cair. Anna era bem direta. E eu gostava de gente assim, mas ao mesmo tempo, se eu não sustentasse a minha história, logo todo mundo ficaria sabendo quem eu era. Eu mesma já tinha descolado alguns cartazes com meu antigo rosto dos postes, rasgando-os em seguida. Nos jornais, meu antigo rosto, de cabelos loiros, longos e olhar feliz e sorridente, roupas da moda e nenhuma preocupação no semblante, aparecia constantemente. Eu me sentia estranha quando olhava para ele. Assim, menti: "Não sei do que você está falando, Anna, e pra dizer a verdade, não acredito nessas coisas." Anna riu: "Acredita sim. Ontem, quando você dormiu no sofá lá em casa, disse um nome. Uma lágrima rolou do seu olho, mesmo ele estando fechado, e eu escutei claramwente: "Fred." Depois, você ficou sorrindo e dizendo umas coisas estranhas.

Eu me levantei, dando-lhe boa noite, rindo muito e dizendo que não tinha paciência para aquele joguinho dela. Mas Anna se levantou e foi atrás de mim:

"Escute, Nanda, ou seja lá qual for o seu nome, eu não vou te dedurar. Sei que seu nome não é esse, e creio que se você está escondendo seu nome verdadeiro, deve ter suas razões. Eu só queria ajudar, entender melhor. Não vou sair por aí falando." Olhei para ela em silêncio, durante algum tempo, e convidei-a para entrar em meu quarto. Nós nos falamos durante um longo tempo, e contei tudo a Anna. Só não lhe disse meu nome verdadeiro, com medo de que ela o usasse sem querer, e ela concordou comigo. Eu já não aguentava mais tantos segredos. Ela me ouviu em silêncio, às vezes fazendo algumas perguntas, mas não me julgou ou tentou dar conselhos. Quando eu terminei minha história, ela disse:

"Minha mãe  acredita que os mortos ficam colados na gente quando a gente não os deixa ir, e isso é ruim para eles e para nós. Você precisa desapegar-se do Fred, Nanda. Você ainda tem sua vida pra viver, ele já viveu a dele. Acabou. Pelo menos, por enquanto."

Eu não entendi quando ela disse "por enquanto," e Anna me esclareceu: "Porque o tempo dele aqui nessa vida acabou, mas ele vai continuar vivo em outra lugar, e depois, daqui a algum tempo, vai nascer aqui de novo em outro corpo. É nisso que minha mãe crê." 

Perguntei no que ela acreditava, e Anna olhou para o teto, brincando com uma mecha de cabelo antes de responder: "Dou a tudo o benefício da dúvida. Às vezes acredito no que minha mãe diz, mas acho que muitas coisas não são bem como ela fala. Não pode ser assim tão simples como a religião dela prega, acho que tem coisas que não podemos explicar, e eles dão explicações para tudo. Parece uma fórmula, um livro de receitas!"

Anna me prometeu um livro, que explicaria a doutrina na qual sua mãe acreditava. No dia seguinte, ela trouxe o livro, que eu não larguei o dia todo. Não saí do quarto nem para comer, e no meio da tarde, ela me trouxe um sanduíche e um suco, que eu devorei, ainda na cama, enquanto lia o livro, de camisola. Anna estava certa: algumas coisas até faziam sentido, mas para mim, muitas outras eram absurdas. E de qualquer forma, nada daquilo me traria Fred de volta... foi quando Anna teve uma ideia: e se eu tentasse falar com Fred através de uma sessão espírita? Sua mãe poderia ajudar! No início, fiquei um tanto apreensiva, mas Anna me convenceu de que poderia ser bom para mim - sua mãe era uma médium muito potente. Concordei, ainda hesitante, mas Anna pegou o telefone e marcou tudo com Gabriela, para aquela mesma noite.

Quando chegamos na casa de Anna, Gabriela estava me esperando. Já era noite. O pai de Anna foi dormir - tive a impressão de que ele já sabia o que estava para acontecer, e achou melhor deixar-nos a sós - e Anna também foi para o seu quarto. Prometi que contaria tudo a ela depois. 

Fiquei esperando que Gabriela entrasse em transe ou algo assim, mas ela me pediu para sentar à mesa da cozinha, e olhando para algum ponto à sua direita, começou a conversar baixinho com alguém que só ela parecia ver. Achei que fosse Fred, e quando perguntei com quem ela falava, ela me pediu para ficar em silêncio. Eu me calei, ela fechou os olhos, respirando fundo, e depois que os abriu novamente, olhava para alguém que ela dizia estar de pé à minha direita. Eu quis perguntar se era Fred, mas antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela me calou: "Não diga nada, pois não quero que você pense que me influenciou ou me deu dicas." Antes de ela começar a 'falar' com Fred, eu não tinha dado a ela o nome dele, e ela nada sabia sobre nossa história. 

Ela começou: "Este rapaz a ama muito... ele é alto, tem cabelos castanhos, olhos verdes, um pequeno sinal perto do nariz... uma pequena pinta. As sobrancelhas são grossas, os dedos das mãos são longos e finos. Ele usa um piercing na orelha esquerda... uma meia-lua."  Meu coração quase saiu pela boca: era Fred! Gabriela continuou: "Ele morreu há pouco tempo, alguns meses... acidente... uma motocicleta. Morreu na hora. Ficou confuso por algum tempo, mas você o chamou de volta, e como não sabe para onde ir, ele está sempre com você. Perto de você. Às vezes, ele está tão perto que você pode sentí-lo, e ir a alguns lugares com ele..." Eu comecei a chorar. Gabriela disse: "Ele pede que você não chore mais, Nina." 

Gabriela acabara de me chamar pelo meu nome verdadeiro! Era inacreditável... Eu estava absolutamente surpresa, encantada! Gabriela permanecia de olhos fechados, às vezes, acenando com a cabeça, bem lentamente. Algum tempo se passou antes que ela voltasse a abrir os olhos. Ficamos nos olhando durante um pouco de tempo antes que ela falasse:

"Nina - este é seu nome verdadeiro, não é?" Concordei com a cabeça, e ela prosseguiu: " Lamento profundamente por tudo o que está passando. Sinto muito, a morte é sempre dolorosa, principalmente quando se trata de alguém tão jovem. Mas se eu te dissesse que a vida não acaba nunca, que ela continua, isso faria com que você se sentisse melhor?" 

Não respondi. Ela continuou: 

" Pois é assim, Nina: a vida continua após a morte. A morte é só um caminho novo. Mas para seguirmos bem por esse caminho, não podemos levar nenhuma bagagem e nenhum peso. Ninguém pode ir e permanecer, entende? Você precisa desprender-se de Fred, libertá-lo. Ele ainda não foi porque está preocupado com você. Ele está sofrendo."

Lembrei-me de um dos sonhos que tivera com ele, no qual eu via um portão cheio de luz, que ele desejava cruzar, mas sem mim. Lembrei-me de quando ele me disse que teríamos que nos despedir. Eu chorava muito, mas Gabriela permanecia calma:

"Você já teve seu tempo de chorar por ele. Sei que não foi fácil, pois sua mãe queria livrá-la do luto, como se ele fosse algo que pudesse ser removido com as mãos. Mas já se foram muitos meses... está na hora de começar a despedir-se, ao invés de tentar manter Fred aqui, o que é péssimo para ele e para você. Entenda que sua  mãe a ama muito. Às vezes, qaundo a gente ama tanto assim, não sabe como agir, comete erros... precisa perdoá-la. Aceitar que ela tem defeitos, mas é sua mãe. 

Protestei: "Mas ela quer me dominar, determinar como eu posso ou não me sentir! Ela nem admite que o nome de Fred seja mencionado! Eu não aguentava mais viver tão sufocada, sem poder chorar, sentir, conversar sobre ele com alguém. Não tenho amigas. Nenhuma amiga! E tudo por causa dela, que me educou dessa forma preconceituosa e egoísta."

Gabriela fez sinal para que eu me calasse: "Sua mãe a educou da forma como ela foi educada. Achou que estava lhe dando o melhor que tinha, Nina. Você não tem que concordar com ela, mas precisa encontrar um jeito de amá-la. Não precisa fazer o que ela quer, mas precisa aprender a discordar sem brigar com ela. Isto depende de você, não é só dela."

"Mas... eu nunca mais vou ver o Fred, ou sentí-lo perto de mim? isso é absurdamente doloros, eu não posso deixar!" Gabriela me abraçou, acariciando meus cabelos para que eu me acalmasse: "Querida, não se trata de deixar ou não. Você pode lidar com a perda como quiser: abrir mão de quem se foi, mantendo na lembrança os bons momentos - que são seus, você os viveu e jamais os perderá - ou tentar agarrar-se a alguém que não está mais presente fisicamente, e tornar-se escura, pesada, depressiva, além de empacar o caminho dele e o seu. O que você prefere?"

Eu ergui meu rosto para olhar para ela: "Eu... acho que não quero que Fred sofra mais."

Assim, Gabriela fez com que eu me sentasse a fim de encerrar a sessão, mas ela ainda ficou algum tempo de olhos fechados, e vi quando lágrimas rolaram dos olhos dela, até que ela não pode mais controlar-se e chorou copiosamente. Quando abriu os olhos, Gabriela me disse que a partir daquele instante, tudo ficaria bem. De repente, eu senti uma mudança na atmosfera. Era como se eu começasse a me sentir mais leve. Eu andava me sentindo pesada há tanto tempo e nem percebia, mas agora que me sentia leve novamente, era como se algo muito escuro, como tentáculos de tristeza, se desprendessem de mim. 


No dia seguinte, telefonei para meus pais, que foram me buscar. Fiquei surpresa ao ver que Cátia também estava lá, e que ela e mamãe conversavam pacificamente. Quando falei com meu pai sobre aquilo, mais tarde, ele me disse que a dor as unira. Finalmente, mamãe havia se aberto e aceitado que o casamento deles já tinha acabado há muito tempo, mesmo antes de Cátia aparecer na vida dele. Portanto, não havia motivos para que as duas se odiassem. Talvez jamais fossem amigas, mas era possível que ambas estivessem presentes nas mesmas festas de aniversário. 

Fiz as apresentações entre meus pais e Anna e sua família. Havia uma faculdade de agronomia em Sinai, e manifestei meu desejo de frequentá-la. Mamãe lamentou que eu não quisesse estudar Direito, mas prometeu que eu poderia estudar e morar em Sinai, assim que terminasse a escola. Depedi-me de Anna e de sua família, mas mantivemos contato sempre através de telefonemas, e-mails e visitas em alguns finais de semana, até que eu terminei a escola, fiz o vestibular e pude mudar-me para Sinai, onde fui muito feliz. Ah, e o rapaz que sempre me olhava... Sérgio... bem, estamos juntos. Fazemos um ano de namoro amanhã.



. . . . . . . . .. . . . . . . . . . 




GABRIELA




Devo dizer que sou, realmente, médium. Tenho sensações e percepções a respeito das pessoas, embora não encorpore espíritos. Posso ter sonhos premonitórios, porém tais acontecimentos não dependem de minha vontade. Antes mesmo que Nina chegasse à cidade, sonhei com uma menina, cujo rosto não pude ver. Meus guias me diziam que a estavam mandando para que eu a ajudasse. Falaram também o espírito de um rapaz que precisava de ajuda. Porém, quase dois meses se passaram, antes que eu tivesse contato com Nina. 

Quando Anna chegou em casa, trazendo pela mão aquela mocinha de semblante triste, eu logo percebi que Nina carregava uma grande dor dentro dela, e que se tratava da menina do meu sonho. Nina passou a frequentar nossa casa, mas era sempre 'escorregadia' quando eu fazia perguntas sobre sua vida, de onde ela vinha, seus pais. Eu percebia que ela estava mentindo, mas não queria confrontá-la, com medo que ela fugisse. Logo, percebi que a raiz do cabelo dela era clara, e portanto, ela os tingira de castanho. Bem, quase toda mocinha deseja clarear os cabelos; por que ela os escurecera? Só poderia estar se escondendo!

Um dia, abri o jornal e deparei com a fotografia de uma menina desaparecida, que morava em uma cidade que ficava a alguns quilômetros de distãncia. Os cabelos eram diferentes. As sobrancelhas eram diferentes, e as roupas, nem se fala... mas ela tinha o mesmo queixo, os mesmos olhos claros, o mesmo nariz afilado... apenas parecia bem mais feliz. Pedi a Anna que tirasse uma fotografia de Nanda - ou Nina - com seu celular, sem que esta percebesse, e ela o fez, trazendo-a para mim. Nós comparamos as imagens e constatamos que se tratavam da mesma pessoa. 

Liguei para o telefone que estava no jornal, e fiz contato com a mãe de Nina. Ela estava desesperada! Queria vir pegar a filha na mesma hora. Tentei conversar melhor com ela, e de alguma forma, convenci-a a contar-me tudo o que tinha acontecido, e que fizera com que Nina fugisse de casa. No dia seguinte, ela, o marido e a a nova esposa chegaram a Sinai, mas sem  que Nina soubesse. Nós os recebemos em nossa casa no meio da madrugada, para não corrermos o risco de que Nina aparecesse para uma visita. 

Após conversar com Marta, a mãe de Nina, por algum tempo, notei o porquê de Nina ter preferido fugir de casa... ela era intransigente, um tanto mandona e não gostava de ser contrariada. Mesmo assim, senti que tinha uma alma sincera e boa, apenas encoberta por uma educação rígida e preconceituosa. Aconselhei-a a tentar ser mais flexível com Nina. Ela me olhou 'de cima' e agradeceu por eu ter feito contato, mas respondeu-me que da educação da filha, ela mesma cuidaria. 

Foi quando Cátia teve uma idéia: quem sabe, a minha mediunidade pudesse ajudar Nina? Após os protestos de Marta, dizendo que não permitiria que sua filha fosse envolvida "naquelas coisas," Cátia explicou-nos seu plano: eu ajudaria Nina a fazer contato com Fred, e a despedir-se dele. Talvez, se ela visse a perda através de um ponto de vista mais espiritual, fosse fácil para ela deixá-lo ir. Eu respondi que não fraudaria uma sessão espírita, pois era totalmente contra meus princípios. Eles insistiram, dizendo que era por uma boa causa, e mesmo quando eu disse que eu não via espíritos, mas que agia somente através da intuição, elas disseram-me que uma pequena mentirinha, apenas para ajudar Nina, seria perdoada por Deus.

Eles se foram, e fiquei de pensar sobre o assunto. naquela noite, um novo sonho deu-me a certeza que eu precisava: eu deveria ajudar Nina, nem que para isso, eu tivesse que mentir. Marta entregou-me uma fotografia de Fred, que me serviu para descrevê-lo para Nina. Depois, combinei com Anna que ela despertasse em Nina a vontade de falar com Fred, o que não foi tão difícil.

Mas durante a falsa sessão espírita, já quase no final da mesma, tive uma surpresa: eu estava de olhos fechados, simulando o encerramento da sessão, quando eu senti a presença de Fred ao meu lado. Ele sussurrou um agradecimento em meu ouvido, e disse que tudo ficaria bem, e que ele agora estaria livre, pois meu guia o estava ajudando. Também senti quando ele foi embora. Ao abrir os olhos, tive a certeza de que ele não estaria mais presente. a emoção foi grandiosa, e então eu soube que tinha feito a coisa certa.

Nina e Anna ainda são amigas, e estão sempre juntas. Nina planeja ficar em Sinai após formar-se, e seu pai está de olho em um pequeno sítio aqui perto. Marta e eu também ficamos amigas, e ela também vem com frequência. Ela planeja abrir uma pequena pensão, mas deseja que eu me torne sua sócia, tomando conta de tudo quando ela estiver na cidade. Acho que vou aceitar.





"Às vezes as mentiras também ajudam a viver" - Roberto Carlos, na canção "Traumas"







Um comentário:

  1. Gosto de ler quando tu escreves.
    Um beijo, bom natal e, me sigas,
    pois eu te sigo também.



    .

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