quarta-feira, 29 de julho de 2015

A PESCARIA






Assim que chegou à fazenda do falecido avô a fim de verificar documentos necessários à abertura do inventário, Glauco desfez as malas com as poucas roupas que trouxera para usar nos próximos dois ou três dias. Não tivera muito contato com o avô, pois ele mudara-se com os pais para a cidade e o velho senhor permaneceu na fazenda a fim de tocá-la para frente enquanto pudesse. Mesmo assim, lembrava-se dele com alguma saudade, devido às poucas pescarias que fizeram juntos quando Glauco ainda era criança e lá vivia. Podia lembrar-se da fala mansa e arrastada do avô, que dizia: “A vida que seus pais procuram na cidade grande á uma ilusão. Isso aqui sim, é vida verdadeira! Aqui se come do que se planta. A gente suja as mãos de terra para plantar e colher o alimento. Isso sim é vida de verdade!”


Glauco repetiu aquelas palavras para o pai, que zombou delas: “Esquece isso, filho. Seu avô está caduco. É melhor você crescer na cidade grande, perto das melhores escolas de gente realmente civilizada. Não quero que meu filho vire um matuto.” 



O que o pai não previra ou considerara ao tomar sua decisão, foi a violência. Nem todo mundo na cidade era civilizado, como descobriram à duras penas.


Glauco tinha apenas dez anos quando o pai foi morto em um assalto a banco. A mãe ficou sozinha para cria-lo, mas morreu de doença ruim pouco depois que Glauco terminou a faculdade. Ele foi ficando na cidade, onde conseguiu um excelente emprego em escritório de engenharia e vivia em um apartamento considerado bem localizado. Tinha muitos amigos no escritório, e achava que era feliz. 

Quando recebeu a notícia da morte do avô, Glauco já tinha trinta anos, e descobriu que tinha se esquecido quase que totalmente da existência dele... ficar na fazenda era algo que ele não pretendia; assim, aconselhado pelo advogado, partiu rumo ao antigo lar a fim de dar entrada no inventário para que pudesse vender logo a fazenda.


Quando lá pôs os pés, Glauco foi recebido com entusiasmo pela já idosa Hermelinda, a antiga cozinheira dos seus tempos de infância. Tentou esquivar-se do abraço da agora quase estranha senhora, mas ela o pegou de jeito, estreitando-o por um longo tempo, fazendo com que Glauco recordasse das tantas vezes em que aqueles mesmos braços tinham-no levado para a cama quando adormecia no sofá da sala. 


Quando desfazia as malas, colocando nas gavetas esvaziadas para ele as suas roupas, ouviu-a gritar lá embaixo, chamando-o para o almoço. Ao descer, deparou com seu antigo amigo de brincadeiras, o Juvenal. Reparou o quanto a vida os tinha afastado: Juvenal tinha a pele curtida pelo sol, e suas roupas simples diferiam das roupas elegantes que ele mesmo vestia. Quando falou, Glauco descobriu que Juvenal mantinha o mesmo sotaque caipira do qual seu pai tanto fizera questão de livrá-lo, e sentiu uma pontada de piedade. Ambos sentaram-se juntos à mesa, e Glauco ficou sabendo que Juvenal tinha sido convidado por Hermelinda, que pensou que ele gostaria de rever o amigo de infância.


Glauco respondeu com paciência às perguntas que o amigo fizera sobre a vida na cidade, tentando ser gentil. Perguntou, embora não estivesse realmente interessado em saber, o que ele tinha feito naqueles anos que os separaram, e Juvenal, abrindo um largo sorriso amarelado, respondeu-lhe: “Adivinha só! Eu mais a Rosinha casamos e temos dois filhos!” Glauco tentou aparentar surpresa, sorrindo e exclamando: “Ah, é mesmo? Que bom!” (No fundo, pensou: “E pensar que um dia gostei da Rosinha... eles foram feitos um para o outro, são iguais.”). Perguntou: “Além de filhos, o que você faz aqui nas horas vagas?”


O amigo deu uma gargalhada, tomando um gole de pinga, dizendo: “”Hora vaga é o que não tem muito por aqui não... mas quando sobra um tempinho, nós anda à cavalo, nada no rio, pesca... como a gente fazia quando era criança, lembra?” Glauco concordou com a cabeça, e uma sombra de nostalgia passou sobre ele. Sacudiu-a com força: “Acho que você se esqueceu que eu não nadava. Eu nunca aprendi a nadar, Juvenal. Sempre tive medo de água.” O amigo concordou, coçando o queixo: “É verdade! E também era um péssimo pescador, dos mais ruim do mundo! Mas mesmo assim, entrava no rio e molhava as pernas!”


Glauco sentiu-se um pouco incomodado com o comentário de Juvenal sobre seus dotes de pescador; afinal, não estava acostumado que os outros falassem de seus defeitos. Sempre era tratado com respeito e admiração. Retrucou: “Nem tanto! Até que eu dava pro gasto... de vez em quando, eu pegava alguma coisa.” O outro respondeu: “Que nada! Nem tirava o peixe do anzol! Teu avô é que tinha que fazer isso. Você ficava com nojo, vê se pode!” mais descontraído, Glauco disse: “É... mas pelo menos eu tirava o peixe da água.” Juvenal fez cara de mistério, arregalando os olhos. Hermelinda retirava a mesa do almoço enquanto distribuía sobre ela os doces em compota para a sobremesa. 

“Quero ver se você é bom mesmo em pesca; quero ver se você consegue pegar o Julião!” “Julião? Quem é esse?” Abrindo os braços, Juvenal exclamou: “O maior peixe dessa região. Seu avô tentou muito pegar ele antes de morrer. Muita gente tentou e não conseguiu. Tenho certeza que um frangote da cidade que nem você é que não ia conseguir mesmo...” Com o orgulho ferido, Glauco disse: “Eu até que tentaria...Se não tivesse que voltar logo para a cidade. Só vim pegar uns documentos para dar entrada no inventário e vender logo esse lugar.”


Hermelinda e Juvenal se entreolharam, baixando os olhos logo em seguida. Juvenal não conseguiu disfarçar sua tristeza, enquanto Hermelinda enxugou as lágrimas no avental. Glauco perguntou: “Algum problema?” Juvenal olhou para ele com os olhos magoados, e Hermelinda voltou para a cozinha: “Bem, você é o dono disso tudo agora. Pode fazer o que quiser. Mas a Hermelinda nunca saiu daqui, desde que veio morar, aos dez anos de idade, e ela não tem pra onde ir. Também não sei se o novo dono vai deixar eu ficar mais a Rosinha e os meninos... mas é você que é o dono, Glauco.”

Glauco arrependeu-se de sua crueldade: “Ora, um inventário pode demorar anos para ficar pronto, e depois, vender a fazenda não será muito fácil. Ouvi dizer que ela não vai muito bem, e está com algumas dívidas altas. Enquanto isso, vocês tem , quem sabe, um ou dois anos para decidir o que farão.” Juvenal acenou com a cabeça, concordando. Engoliu sua tristeza, e tentou fazer o ritmo da conversa voltar ao tom alegre de antes: “Aposto que você não consegue pegar o Julião!” Glauco, que não gostava de perder desafios, pois tinha na veia o dom da competição, sentiu que a frase surtira um efeito incômodo dentro dele. Ora, ele sabia de muito mais coisas do que aquela gente matuta que parara no tempo, e não havia nada que eles fizessem que ele mesmo não pudesse fazer melhor. Assim, disse: “Mas é claro que eu pego!” “Pega não. Aquele bagre tem parte com o Demo. Esperto que só ele!” “Ora, você está me dizendo que um peixe pode ser mais esperto que um ser humano? Não posso acreditar! Amanhã mesmo eu vou começar a investir em um equipamento de pesca bem moderno. Também vou fazer um curso rápido de pesca. Tenho certeza que eu posso pegá-lo.” 


Juvenal tirou o sorriso do rosto, e disse solenemente: “Tem certeza mesmo?” 

Aquela mudança no tom de voz do amigo fez com que Glauco sentisse um arrepio na espinha, mas mesmo assim, ele afirmou: “Tenho certeza absoluta!” “Pois bem; então vamos fazer uma aposta: se você pegar o Julião, a gente junta nossas tralhas e vai embora daqui assim que o novo proprietário colocar o pé na soleira; se você não conseguir pegar o Julião, você não vende a fazenda; entrega a direção dela pra mim e eu boto ela pra dar lucro pra você.” Glauco engoliu em seco: fora desafiado. Mas estava disposto a cumprir o desafio, pois não havia nada que ele desejasse que não conseguisse. O sabor da competição já molhava seus lábios quando ele respondeu, apertando a mão de Juvenal: “Feito! E para selar o acordo, vou mandar redigir um documento, assinar e lavrar em cartório!” “Ora, não precisa disso não. A gente confia na sua palavra!” “Não, eu faço questão. Pra mim, tem que ser tudo preto no branco! Se eu não pegar o Julião em uma semana, a fazenda não será vendida e você será nomeado o novo administrador!”


Dois dias depois, documento redigido por advogado e assinado por Glauco, Juvenal e uma testemunha, e lavrado em cartório, Glauco começou a ler e pesquisar na internet tudo o que podia encontrar sobre pesca. Também foi a uma loja especializada e seguiu os conselhos do vendedor a fim de conseguir o melhor e mais sofisticado material de pesca que havia disponível. Até passou algumas horas no riacho, pescando alguns peixinhos menores para ensaiar. Tomou aulas de pesca com um pescador profissional e aprendeu a jogar a linha feito um pescador de verdade. Adquiriu iscas artificiais de todos os tipos e fez muitas perguntas aos moradores locais sobre os hábitos do Juvenal. Conversou com os pescadores que tinham tentado carapturá-lo antes dele para ver se descobria onde eles tinham falhado. As pessoas observavam seu esforço, e admitiam que, para um novato, Glauco “profissionalizara-se” pescador rapidamente! 


Finalmente, ele comprou um belo barco à motor. Aprendeu a guia-lo em poucas horas, e logo passava correndo com ele bem no meio do rio. As pessoas ficavam às margens, lamentando-se por Julião, que estava com os dias contados. Afinal, ele já tinha virado uma lenda local.

Quando sentiu-se pronto para enfrentar seu desafio – cerca de dez dias depois de assinar o documento – Glauco chamou o amigo. 


“Valendo a partir de agora: se eu não trouxer o Julião dentro de uma semana, cumprirei o trato.” Dizendo aquilo, pegou suas tralhas no começo daquela noite enluarada e foi para o barco, que logo sumiu dentro da escuridão do rio. Juvenal sentiu um aperto no coração e arrependeu-se por ter desafiado o amigo, mas enquanto pensava nisso, vendo-o afastar-se com o barco cada vez mais, compreendeu que era tarde demais para arrependimentos.


E Glauco tinha todos os melhores equipamentos. Também adquirira a técnica. Tinha um excelente barco, e conhecia de cor os hábitos do velho e temperamental peixe. Sabia que ele sempre aparecia daquele lado do rio nas noites de lua cheia. Sabia que gostava de ir comendo os pedacinhos de pão que eram jogados na superfície da água antes de entrar na briga. Sabia também que já quebrara centenas de varas de pesca, mas não seria capaz de quebrar a sua, moderna, resistente e flexível, preparada para puxar até cinquenta quilos de peixe brigador para fora d’água. Ele não teria nenhuma chance. Chegou a sentir dó do Julião. Mas a lua iluminou o branco dos seus dentes quando ele jogou o anzol na água, após atrair Julião com os pedaços de pão.


Algumas horas se passaram. Julião nadava em volta do barco, desconfiado e faminto ao mesmo tempo. De repente, deu um pulo para fora d’água, e Glauco, impressionado, viu seu couro brilhar ao luar feito prata da mais pura. Também teve a impressão de que, por um breve momento, seus olhares se cruzaram, e Julião avaliou-o melhor. Após mais algumas horas passeando em volta do barco, o peixe simplesmente nadou para longe. Aquilo repetiu-se nas próximas três noites.

Finalmente, na quarta noite, Julião mordeu a isca. A briga foi feia! Varou a noite, adentrando a madrugada. Vencido pelo cansaço, quando o sol já despontava no horizonte e seus raios começavam a espalhar cristais pelas águas do rio, Glauco pensou em desistir. Já estava ficando tonto pelo esforço e as muitas horas sem comer, quando, de repente, assim do nada, Julião deu um salto para fora d’água e pulou dentro do barco. Parecia dizer: “Ok. Você venceu, já que me quer tanto. Faça bom uso de mim.”


Com cuidado, tentando controlar sua excitação, Glauco tirou o anzol da boca do peixe, que estava estranhamente calmo. Enquanto o fazia, observou-o mexer as guelras no esforço de continuar respirando. Sabia que o bagre era um peixe esquisito, que podia levar muito tempo para morrer. Observou-o durante um bom tempo, e constatou o quanto Julião era bonito; pensou: será que haveria uma “Juliana”? Aquele pensamento deixou-o um tanto melancólico, mas Glauco tentou varrê-lo para longe. Mal podia acreditar que tinha conseguido, pois apesar de dizer a todos que tinha certeza absoluta que pegaria Julião, no fundo, duvidava de sua capacidade. O peixe estava sereno, e olhava para seu algoz sem nenhum ódio. Glauco sentiu-se incomodado. Cobriu-o com um saco de estopa e deu partida no motor do barco. 


Enquanto o barco percorria devagar o caminho de volta, Glauco foi tomado de nostalgia. Ouviu a voz distante do avô acordando-o de manhãzinha, antes mesmo de clarear: “Quem quer pescar com o vô?” Sentiu mais uma vez a excitação que sentia enquanto pulava da cama, vestia a roupa e calçava seus tênis velhos para a acompanhar o avô. Tantas coisas das quais já tinha esquecido! Fechou os olhos por um momento e viu as mãos fortes e as veias grossas montando as varas de pesca, segurando o canivete para cortar o náilon, traçando círculos no ar enquanto ele contava histórias. Sentiu o cheiro suave da colônia após barba que o avô usava; há quanto tempo não pensava naquele cheiro, naquelas mãos, naquela voz? Viu-se enxugando uma lágrima com o dorso da mão. Sentiu muita culpa por não ter procurado o avô, por não ter participado mais da vida na fazenda. 


Quando o barco aproximava-se da margem, Glauco viu a pequena multidão que o aguardava, ansiosa. Viu quando Juvenal tirou seu chapéu, apertando as abas com as mãos. Sentiu a angústia daquelas pessoas, pois sabiam que tinham perdido a aposta e teriam que procurar outro lugar para reaprender a viver. Aguardavam sua chegada em silêncio, a angústia estampada nos rostos. 

De repente, Glauco desligou o motor do barco, deixando-o parado na metade do caminho. Só se ouvia o canto dos passarinhos. As pessoas na margem do rio se entreolharam confusos, tentando adivinhar o que Glauco iria fazer. Viram quando ele descobriu Julião, que ainda estava bem vivo, e com esforço, jogou-o de volta ao rio. 



O peixe nadou para longe, dando vários saltos na água enquanto se afastava. Depois, voltou e nadou em volta do barco como se agradecesse. 




À margem do rio, as pessoas sorriram,  tranquilas.



quarta-feira, 22 de julho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE FINAL





Um dia, quando Anita pegou no computador para falar com os meninos, não houve resposta. Pensando que se tratasse de uma falha na conexão, ela resolveu tentar novamente algumas horas depois, mas não conseguiu. Quando Fernando chegou do trabalho, ela disse a ele o que tinha acontecido, e ele telefonou para a pousada, mas o telefone apenas dava sinal de ocupado, e os celulares dos meninos também não davam resposta. Mais uma vez, ele tentou o computador, mas não conseguiu fazer contato. Foram dormir aflitos, e passaram a noite em claro, conjecturando sobre o que poderia ter acontecido.

De manhã, Fernando lembrou-se:

-Mas como eu não pensei nisso antes? Ainda tenho o telefone do restaurante do Manuel! Vou ligar para lá e pedir que ele dê uma olhada no que está   acontecendo com os meninos.

Dizendo aquilo, ele procurou o número entre os contatos do seu telefone. Ao perguntar por notícias dos garotos, enquanto Anita aguardava ansiosa ao seu lado, Fernando sentiu seu estômago encolher ao ouvir a conhecida voz de Manuel:

-Seu Fernando, eu achava melhor vocês virem para cá o mais rápido possível. Aconteceu uma desgraça.

Anita viu o marido empalidecer enquanto escutava a voz de Manuel falando com ele, e ela agarrou o braço do marido, sacudindo-o:

-O que ele está dizendo? Pelo amor de Deus, Fernando...

Fernando sentou-se no sofá, sinalizando para que Anita se acalmasse, e ao desligar o telefone, contou-lhe o que tinha escutado, e Anita não pode conter um grito de desespero. Partiram naquele mesmo dia de volta à Praia dos Sonhos.

Anita chorou durante todo o voo. Não sabia em que estado ia encontrar Jorginho. Não sabia o que fazer, o que dizer a ele. Fernando tentava acalmá-la, mas ele também estava muito nervoso. Eles e os garotos já não se encontravam pessoalmente há quase quatro anos, e embora se falassem por computador ou telefone, a sensação que ela tinha é que os meninos faziam parte de um outro mundo que corria paralelo ao deles. De repente, ela sentiu o quanto tinham sido relapsos quanto aos meninos, ficando tanto tempo sem aparecer. Ao mesmo tempo, sabia que eles não eram seus filhos, não eram responsabilidade dela, mas mesmo assim, ela sentia que os amava como se o fossem. Anita sentia-se culpada por não ter insistido em levá-los embora. 

Fernando olhava as nuvens que passavam pela janela do avião, com os olhos rasos d'água, enquanto lembrava daquele mês em que eles conviveram de perto com Jorginho e Leo. Deixaram para trás um menino de onze e um rapaz de vinte e um anos, e agora encontrariam apenas um adolescente de quinze anos, com o coração totalmente despedaçado. Pedia a Deus que lhe desse sabedoria sobre como agir.

Ao chegarem à pousada na Prais dos Sonhos, saíram do carro e Anita olhou em volta: duas das casinhas tinham sido queimadas. De repente, aquele lugar paradisíaco lhe pareceu o inferno na Terra! Fernando foi logo entrando na casa onde ele sabia que Jorginho e o irmão moravam, mas encontrou a porta aberta, os móveis quebrados e nenhuma viva alma. No chão, o computador despedaçado. Roupas espalhadas. Nem sinal do menino.

Já Anita, seguindo sua intuição, foi andando pela praia. Sabia que Jorginho não poderia estar ali naquela casa destruída. Alguma coisa guiou-a. Ela foi caminhando até que viu, ao longe, um rapaz sentado em uma pedra, olhando o mar. Ela parou. Naquele instante, Fernando a alcançou, e os dois gritaram juntos o nome de Jorginho. O rapaz olhou para eles, erguendo-se. Anita e Fernando correram na direção dele, e ele correu para eles. Quando os três finalmente se abraçaram, as lágrimas rolaram soltas, misturando-se à areia salgada.

Mais tarde, Jorginho contou-lhes o que acontecera:

-A pousada estava indo bem, até que chegou uma nova hóspede. O nome dela era Lorena. Achei-a esquisita desde o começo, ela tinha um visual meio-grunge, só vestia preto e nunca ia à praia. Mas ela e Leo começaram a namorar. Um dia, no aniversário dela, ele concordou que ela levasse alguns amigos até a pousada para um luau. O que ele não contava, é que os amigos da Lorena eram todos um bando de drogados, uns caras muito esquisitos. Trouxeram uma banda de rock pesado, começaram a tocar muito alto. Um dos hóspedes saiu furioso no meio da noite, dizendo que tinha vindo aqui para descansar e que aquilo era inadmissível, e ele foi vaiado pelos amigos de Lorena. Eles jogaram comida e cerveja em cima dele, e ele saiu furioso no meio da noite, entrou no carro e foi embora. Eu e Leo tentamos acabar com a festa, mas não pudemos controlá-la.

Jorginho deu uma pausa em sua narrativa, e Anita segurou sua mão, tentando encorajá-lo:

-Eles puseram fogo na casa. Tentei apagar... enquanto isso, a polícia chegou. Acho que foi o turista que os chamou. Os mesmos policiais que costumavam vir aqui tomar nosso dinheiro e surrar meu irmão. Os caras esquisitos entraram nos carros e sumiram, mas eles agarraram Leo e o levaram com eles... eu implorei para que não fizessem aquilo, mas ninguém me escutou. Lorena ficou escondida em seu quarto até a polícia ir embora, e depois, quando saiu, subiu na moto do meu irmão e sumiu também, sem nem se despedir, sem perguntar se eu estava precisando de alguma coisa...

Jorginho chorava muito. Fernando abraçou-o.

-E quando tudo isso aconteceu, Jorginho?

-Há quatro dias.

-E onde encontraram seu irmão?

-Ele... estava caído na praia. Foi seu Manuel que encontrou ele...

Anita sentiu seu coração acelerar, enquanto as lágrimas embaçavam tudo em volta. Jorginho continuou:

-Só que dessa vez eles bateram muito forte...

Anita sentiu a raiva crescer dentro dela:

-Mas desta vez eles vão pagar caro pelo que fizeram. 

Jorginho tentou acalmá-la: 

-Eu dei parte, Anita, desta vez eu dei parte, e eles estão sendo investigados. Mas eu corro perigo aqui, por isso, não estou em casa.

-Aonde você está dormindo? - perguntou Fernando.

-Em uma caverna que só eu conheço. Eu mesma a encontrei. Fica no alto daquela colina. Estou lá há dois dias.

Ele apontou para uma entrada ao longe, e Anita pensou no quanto aquelas duas noites deveriam ter sido solitárias e muito tristes para Jorginho, e no medo que ele sentira. Ela ainda não sabia como, ou se ele concordaria, mas daquela vez, ele iria voltar para casa com eles. E Jorginho não retrucou quando ela afirmou aquilo em voz alta.

Existe um momento certo para tudo. Muitas vezes, queremos que as coisas aconteçam na hora quem desejamos, da maneira que queremos, mas a vida tem caminhos que nem sempre dependem da nossa vontade. Anita, Jorginho e Fernando tinham chagado ao final daquela história, o que significava que estavam no começo de uma outra - sem tantas dores e dificuldades para Jorginho, sem mais sofrimentos e sem medos. Uma história que teriam que aprender a escrever juntos daquela vez, e fazer sempre o melhor para que ela tivesse um final feliz. 


FIM





segunda-feira, 13 de julho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE VI



Jorginho quase não dormiu naquela noite, pensando no quanto seria bom ter, finalmente, uma vida tranquila novamente, com dois adultos protegendo-o, sem precisar sentir-se sempre tão só e ter tanto medo... ao mesmo tempo, em seu coração, sentia que se fosse com Anita e Fernando, estaria traindo o irmão, por mais que ele insistisse em sua partida; sabia que o irmão precisava dele, e que só estava tentando ser forte pelos dois, mas que a separação seria tão difícil para ele quanto seria para si mesmo. 

Na manhã seguinte, ao raiar do dia, o irmão entrou em seu quarto todo animado, e foi logo escancarando as janelas:

-Acorda, preguiçoso! Vamos todos dar um passeio hoje. Vamos para a ilha!

Leo sabia o quanto o irmão adorava a ilha – uma pequena ilhota sem nome a alguns quilômetros da costa, onde eles gostavam de ir quando o pai era vivo. Os três passavam o dia por lá, pescando e  brincando de náufragos... nunca mais voltaram lá, desde a morte dos pais. Ainda sonolento, Jorginho pulou da cama para vestir seu novo calção de banho, camiseta e chinelos – mas não sem antes cobrir o corpo com uma generosa camada de filtro solar. Enquanto o irmão espalhava o creme em suas costas, ele perguntou:

-Leo... por que você não quer ir embora?

Sentiu a respiração do irmão em suas costas:

-Não sou mais um garotinho. Tenho que aprender a viver sozinho e a vencer sozinho. Meu destino é ficar aqui e cuidar de tudo. Este lugar foi comprado com o esforço dos nossos pais, Jorginho. Não posso simplesmente vender tudo e ir embora... mas você ainda é uma criança. Deveria ir com eles, suas chances serão bem melhores. Você tem escolhas.

-Mas você também tem! Lembra que a mamãe sempre dizia que a gente podia mudar de vida a qualquer momento?

Leo jogou a camiseta sobre Jorginho, cobrindo-lhe a cabeça de brincadeira:

-E ela estava certa; mas pra isso, a gente precisa estar a fim, e eu não estou. Quero ficar. Esta é a minha escolha, e como não nascemos grudados nem nada, acho que você se daria muito bem se fosse. 
Anita e Fernando são pessoas muito bacanas.

-Eu sei... e eu gostaria muito de ir, você sabe que eu quero estudar biologia. 

-Então vá! Mas agora, vamos embora que o dia já raiou e eles estão nos esperando na praia! Todo mundo já tomou café, só falta você.

Dizendo aquilo, Leo saiu do quarto, escondendo as lágrimas por trás de um sorriso, e foi ter com o casal. Anita percebeu que ele estava chateado, mas nada perguntou. 

Na ilha, tiveram um dia maravilhoso, fazendo piquenique na praia com os quitutes que Anita preparara e os peixes que Fernando e Leo pescaram. O casal estava ansioso para saber o que Jorginho tinha decidido, mas ninguém queria tocar no assunto com medo de estragar aquele dia perfeito. Cada vez mais, Anita afeiçoava-se a Jorginho, indo de encontro a tudo o que ela pensara sobre maternidade até aquele momento. 

À noite, depois que Fernando e Jorginho dormiram assistindo TV na sala, ela foi até a varanda, onde sentou-se, olhando o mar prateado pelo luar, lá em baixo na praia. Leo sentou-se ao lado dela fumando um baseado, o que deixou-a meio-perplexa:

-Não sabia que você fumava essas coisas, Leo...

-Incomodo?

Ela sacudiu a cabeça, negando:

-Na verdade, não... mas não acho que seja bom pra você...

-Bobagem. Tem coisa muito pior. Eu só dou uns tapas de vez em quando, nada demais. 

Ele olhou para ela, e percebeu que estava séria demais, tentando conter sua desaprovação:

-Viu só? Não sou mais um menininho, Anita. Não daria certo brincar de casinha com vocês...

Ela irritou-se:

-Por que está falando assim comigo, Leo?

Ele encolheu os ombros:

-Nada... é que eu sou assim mesmo. Sou um idiota, desculpe.

Ela mudou de assunto após algum tempo em silêncio:

-Vamos embora na próxima semana, Leo. Já faz um mês que estamos por aqui, e temos que voltar ao trabalho.  Vocês  irão conosco?

-Ele negou com a cabeça:

-Eu não. Mas estou tentando convencer meu irmão. Vocês são pessoas legais e podem dar a ele uma boa vida... eu sei que ele vai acabar aceitando ir com vocês.

Ela sentou-se virada de frente para ele:

-Como você sabe?
-Meu irmão ficou muito carente depois que nossos pais morreram. Ele sente medo e desamparo o tempo todo. Na escola, os outros meninos ‘zoam’ com a cara dele porque sabem que ele não tem pais para defende-lo, e eles não me levam à sério. Meu irmão sente medo e solidão. Ele ainda precisa de pais. Depois que vocês chegaram, ele mudou. Começou a rir novamente, coisa que não fazia mais. Ele ama vocês. E sabe que precisa de vocês. 

Anita respirou fundo. 

-Mas ele precisa de você também, Leo.

-Não; ele acha que eu preciso dele. Ele pensa que se for embora, eu vou ficar maluco e não vou saber tomar conta de mim. Mas fique tranquila, ele vai com vocês... anteontem eu contratei um outro rapaz para me ajudar na pousada, e ele vai sentir que não preciso mais dele. E amanhã chegam novos hóspedes. 

Ela riu:

-Vai coloca-los na suíte máster?

Ele deu uma gargalhada, concordando.

Na manhã seguinte, enquanto Leo acomodava os novos hóspedes  – um casal em lua-de-mel  – Anita e Fernando tomavam café da manhã, quando Jorginho juntou-se a eles. Sentou-se à mesa em silêncio. 
Fernando quebrou o gelo:

-Bom dia, Jorginho. Dormiu bem?

-Hum-hum. 

Anita encheu a xícara de café com leite para ele, fazendo também um sanduíche de pão com manteiga. Ele deixou que ela o servisse, agradecendo. Enquanto ela preparava seu café, Jorginho sentiu o quanto era bom ser cuidado por outra pessoa novamente... olhou o novo funcionário na recepção, e pensou, pela primeira vez, que o irmão poderia ficar bem sozinho, mas nada disse. Depois do café, ele desapareceu por algum tempo, só retornando na hora do almoço, quando Anita, Fernando, Leo e os novos hóspedes partilhavam um churrasco. O menino estava calado e pensativo. Leo e Anita trocaram olhares, mas ainda acharam melhor – no que concordaram em silêncio – não fazer nenhuma pressão sobre ele.

O tempo ia passando; os hóspedes foram embora, e chegou um pequeno grupos de idosos – quatro amigos. Ficaram apenas dois dias, e seguiram viagem. Conforme o dia de voltar ia chegando, Anita e Fernando sentiam sua ansiedade crescer. De repente, a decisão de Jorginho era a coisa mais importante que já lhes acontecera, e ficariam realmente desapontados se ele decidisse não ir com eles. Leo trabalhava na pintura dos chalés, com a ajuda de Fernando. Anita ajudou, comprando algumas colchas e móveis para mobiliar os quartos, e toalhas de banho e roupas de cama novas. Logo, eles tinham mais dois chalés disponíveis para alugar, e a notícia corria na vila, chegando aos turistas. 
Na véspera da partida, Anita e Fernando perguntaram a Jorginho se ele já tinha tomado uma decisão, e o menino, que naqueles dias andava calado,  apenas sacudiu a cabeça, negando. Anita insistiu, o coração apertado:

-O que isso significa? Você ainda não decidiu, ou decidiu que... não vai?

Ele dirigiu a ela um olhar ansioso, e correu até ela, abraçando-a.

-Você sabe que eu queria ir... mas não posso.

Fernando, que via tudo de longe, sentiu os olhos arderem. Anita e Jorginho permaneceram abraçados por alguns instantes, e Fernando aproximou-se deles, dizendo:

-Não se preocupe, Jorginho. Não estamos zangados com você, e não vamos abandoná-los. Nós entendemos. Mas mandaremos sempre dinheiro para vocês, e manteremos contato através do computador que demos ao Leo. Podemos também passar férias aqui, ou vocês podem viajar até lá para nos visitar. Mas não se esqueça: som os como uma família agora. Não se acanhe de pedir nada que precisar. 

Finalmente, chegou o dia da despedida. De manhã cedo, quando Anita foi bater à porta do quarto de Jorginho para despedir-se – Leo e Fernando carregavam as malas para o carro – descobriu a porta entreaberta e a cama vazia. Ela ficou triste, mas entendeu. O casal abraçou Leo com força.
No voo de volta para casa, que foi feito quase em silêncio, Anita sentiu que alguma coisa, uma mudança muito importante acontecera dentro dela durante aquela viagem.

 Quando o avião pousou, ela respirou fundo e secou suas últimas lágrimas.

Eles se comunicavam por computador quase todos os dias, e ficaram felizes em saber que a pousada ia bem, e que os meninos não mais passavam nenhum tipo de necessidade. Planejaram passar as férias na praia novamente no ano seguinte, mas a mãe de Anita adoeceu e ela não pode ir. No outro ano, foi o pai de Fernando que ficou muito doente, e acabou falecendo. No terceiro ano, no qual os meninos é quem tinham decidido ir visitar o casal, o recepcionista da pousada pediu demissão, e eles não puderam ir, pois tinham que cuidar da pousada e contratar um outro ajudante. 

(continua...)



domingo, 5 de julho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE V








Fernando abriu a porta do seu chalé, e deparou com a seguinte cena: Jorginho estava debruçado em desespero sobre o corpo caído do irmão, tentando despertá-lo. Seus olhos estavam turvos de lágrimas. Leo, de bruços, deixara um rastro de sangue pleo chão de madeira. Fernando gritou por Anita, que veio correndo acudir, e ambos conseguiram erguer Leo e colocá-lo na cama. Felizmente, ao tentar descobrir de onde jorrava o sangue, após examinar o corpo do rapaz, Fernando viu que se tratava de um corte no supercílio esquerdo - região muito irrigada, e que normalmente sangra muito quando há um corte. Anita fez um curativo, usando um kit de primeiros socorros que encontrou sob o balcão da recepção, e após limpar o corpo do rapaz com um pano úmido, ajudou Fernando a vestir-lhe o pijama. Leo abriu os olhos, agradeceu e disse que estava bem, embora parecesse bêbado, e logo adormeceu. O casal entreolhou-se, pois também tinham visto alguns hematomas roxos nas costas e no olho esquerdo do rapaz. Anita achava que ele tinha bebido demais e se envolvido em alguma briga.

Só então os dois se lembraram de Jorginho.

Foram encontrá-lo sentado nas escadas da varanda, o rosto escondido entre os braços, soluçando. Fernando e Anita se aproximaram, sentando cada um a um lado, abraçando-o. Fernando falou primeiro:

-Não se preocupe, seu irmão está bem. Era só um pequeno corte, provavelmente ele caiu...

O menino enxugou os olhos com as costas da mão, e negou com a cabeça:

-Foram eles de novo.

Anita indagou:

-Eles quem?

-Os policiais. De vez em quando, eles batem nele, tomam nosso dinheiro. Porque meu irmão fuma maconha. Acham que ele é bandido. Mas eu sei que ele não é, só faz isso porque... é tudo tão difícil, sabe...

Anita já estava chorando copiosamente ao escutar a história do menino, e Fernando tentava conter-se.

-Mas vocês precisam denunciar estes policiais.

-Não adianta. Se a gente fizer isso, eles matam meu irmão. São eles que mandam. e se meu irmão morrer, eu fico sozinho.

Anita interviu:

-Mas não se preocupe, nós mesmos vamos fazer isso. Denunciaremos estes policiais malvados.

Jorginho olhou para ela, os olhos vermelhos, e a sensatez do menino comoveu-a:

-Não faz isso não, tia. Depois vocês vão embora, e eles pegam a gente.

Fernando disse:

-Ele tem razão, querida.

Anita respirou fundo, e enquanto ajudava Jorginho a erguer-se, foi dizendo:

-Vamos esquecer tudo isso por enquanto, meu menino. Vou preparar o café da manhã, e depois que comermos, vamos levar o café para o seu irmão, OK? Mas me diga: ele sempre bebe?

-Não, meu irmão nunca bebeu antes. Ele não suporta álcool, passa mal. Todo mundo na vila sabe disso.

Mais uma vez, Anita e Fernando se entreolharam, e ambos sabiam exatamente o que o outro estava pensando: Jorginho estaria mentindo?

Mais tarde, Fernando e Anita conversavam na praia. Leo, já se sentindo melhor, tomara um banho e estava jogando video game com o irmão. Anita disse:

-Eles são duas crianças, Fernando. Duas crianças sozinhas, expostas a qualquer tipo de perigo nesse fim de mundo, sujeitas à aproveitadores e pessoas muito cruéis. Temo pelo destino deles. Se eu ao menos pudesse ajudar em alguma coisa...

-Conversei com Leo, e ele me disse que não bebeu; pelo menos, não voluntariamente. Os policiais o obrigaram. Disseram que , caso ele reclamasse pela surra, poderiam dizer que ele estava bêbado, e fora encontrado promovendo baderna na cidade.

Anita cobriu a boca, horrorizada:

-E quanto eles levaram?

-Não muita coisa. Apenas alguns trocados que ele tinha no bolso... e o relógio de pulso que fora do pai.

Anita estava indignada:

-Mas que gente miserável! Espero que apodreçam no inferno!

-Anita... o que você acharia se nós... quero dizer, eu já falei com Leo sobre esta possibilidade, e me desculpo por não ter consultado você antes, mas é que foi tão de repente... mas o que você acharia de levá-los embora com a gente?

Anita permaneceu em silêncio, os olhos esbugalhados durante alguns segundos, tentando recuperar-se do susto. Decidiram, há muitos anos, que não teriam filhos. As crianças não eram seu forte, ele sabia muito bem, e concordara com ela. Quando Fernando queria estar com crianças, convidava seus sobrinhos ou filhos de amigos para o final de semana, e vinham arranjando-se muito bem sem elas. Mas ela sentia que daquela vez, poderia realmente vir a amar muito aquelas crianças - pois mesmo tendo vinte e poucos anos, para ela, Leo também não passava de uma criança. 

Mesmo assim, decidiu não se precipitar:

-Está falando em apenas levá-los conosco ou adotá-los?

-Não sei ainda. Depende de você.

Ela hesitou:

-Se importa se eu pensar no assunto? Foi tão de repente, e você sabe como eu me sinto quanto a ter filhos.

Ele a abraçou, concordando com a cabeça:

-Se você não quiser, eu vou entender. Mas precisamos ajudá-los de alguma forma.

Ela concordou.

À noite, quando já estavam na cama, após fazerem amor, Anita segurou a mão de Fernando sob o lençol:

-Eu já tenho uma resposta.

Ele apertou a mão dela:

-Minha é resposta é: sim.

Os dias que se seguiram foram muito bons, apesar do triste acontecimento ainda recente. O casal levou os meninos em longos passeios, distantes horas daquele lugarejo. Compraram-lhes roupas novas, novos games para Jorginho, sapatos, cortes de cabelo, algumas novas peças para a motocicleta de Leo, tintas para terminar de pintar as casinhas da pousada. Os meninos não queriam aceitar, mas Fernando e Anita muito insistiram, dizendo que realmente desejavam ajudá-los.

Enquanto lanchavam num shopping, Leo disse:

-Eu queria agradecer muito pelos presentes, em meu nome e em nome do meu irmão. Muito obrigada... mas eu tenho que confessar uma coisa. Uma mentira que eu contei.

Olhou para o irmão, e este devolveu-lhe o olhar, dando-lhe forças para continuar:

-É que... nunca houve uma suíte master. E também nunca houve  hóspedes americanos.

Leo baixou os olhos. Fez-se um silêncio constrangedor  à mesa, e depois o casal explodiu em uma gargalhada. Foi Fernando quem falou:

-A gente já sabia, Leo. Deixa isso pra lá.

Anita completou:

-Saibam que, apesar do pouco tempo que nos conhecemos - fazem apenas cinco dias desde que chegamos - nós já gostamos sinceramente de vocês. E... nós adoraríamos que viessem conosco. Gostaríamos muito de tê-los como nossos filhos.

Fernando continuou:

-Queremos adotá-los.

Os irmãos se entreolharam. O entusiasmo no rosto do mais jovem era visível, mas o irmão mais velho respondeu, após alguns segundos silenciosos:

-Bem... eu acho que já sou meio-grandinho... agradeço, mas... não, obrigada, eu já tive meus pais, e eles se foram. Mas sempre serão meus pais. Entretanto, eu sei que vocês tem condições de dar uma vida bem melhor ao meu irmão, e se ele concordar, poderá ir com vocês. 

O sorriso do irmão apagou-se.

-Eu não vou te deixar!

Fernando tentou conciliar:

-Escutem, não precisam responder agora, podem pensar bem antes. Será uma mudança radical na vida de vocês. Terão uma vida mais tranquila, melhores condições materiais, boas escolas, faculdade, boas roupas...

E Anita o interrompeu:

-E todo o amor que nós pudermos lhes dar. Nós já amamos vocês.

Dizendo aquilo, ela estendeu as mãos sobre a mesa, segurando as mãos dos meninos. Jorginho correspondeu-a, mas Leo afastou a mão, escondendo-a sob a mesa. Tinha os olhos baixos. O silêncio que se fez ocupava todo o espaço em volta deles. Anita tinha lágrimas nos olhos, e seu coração apertou-se ao sentir-se rejeitada por Leo. Mas Fernando sabia que tinham que dar tempo ao tempo, e decidiu mudar de assunto:

-Que tal um big sorvete para cada um?

Os meninos permaneceram em silêncio. Jorginho olhava para Leo como se esperasse uma instrução sobre como agir. Finalmente, Leo olhou para o irmão, e compreendeu que seria bem melhor para ele crescer em uma família normal, em um lugar seguro  e confortável, tendo boa educação e sendo amado. Mas para ele, a vida já tinha decidido os rumos. Ele não poderia ir a lugar nenhum. Tinha que ficar e tentar continuar o negócio que os pais sonharam. Afinal, já era homem feito, e não um garotinho que dependia de um casal para terminar de criá-lo. Ele disse:

-Tenho uma contraproposta: Jorginho vai com vocês, enquanto eu fico por aqui durante mais um tempo, e depois a gente vê...

Jorginho foi logo dizendo:

-Eu não vou a lugar nenhum sem você!

Anita tentou convencê-lo:

-Mas Jorginho, Leo poderá nos visitar ou mudar-se para nossa casa a hora que ele quiser. Nós pagaremos pelas passagens, e se ele aceitar, mandaremos dinheiro para ele, nós o ajudaremos. E ele será sempre bem-vindo à nossa casa, a hora que ele quiser.

-Mas vocês moram muito longe!

Leo disse:

-Jorginho, vai ser bom pra você. Eu vou parar de... você sabe... se eu parar de fumar maconha, os policiais vão me deixar em paz. Não terão mais nada para usar contra mim, e eu farei obras na pensão, construirei mais um chalé, colocarei tudo na internet. terei meu próprio dinheiro, e se você decidir voltar mais tarde, será bem vindo... pense bem, vocês poderão vir sempre que quiserem, duas, três vezes por ano. tudo o que eu preciso para dar um jeito na minha vida, é de um pouco de incentivo, uma chance, e Fernando e Anita a estão oferecendo a mim, a nós! E será bem mais fácil se eu não precisar me preocupar tanto com você, sabendo que está bem, seguro, alimentado, vestido, sendo educado. Você poderá fazer novos amigos.

Jorginho parecia dividido. 

Fernando concordou com Leo:

-Jorginho, já os tenho - a ambos - como filhos. Eu jamais abandonarei seu irmão, ou você. Mesmo que decida não ir conosco, farei de tudo para que nada lhes falte enquanto vivermos. E de qualquer maneira, ambos estarão seguros e ficarão bem. (e olhando para Leo:) Mas adoraria ter os dois conosco.

E foi a vez de Jorginho dizer:

-Acho que eu quero pensar um pouco...

Anita abraçou-o:

-Pense o quanto quiser. Nós esperaremos. E tomara que a sua resposta seja a melhor. E que você, Leo, mude de ideia e venha conosco.


(continua...)








quinta-feira, 2 de julho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE IV



Sentada na areia, Anita olhava o pontinho distante boiando sobre as águas verdes, e seu coração se apertava: estavam muito longe da praia. Fernando, Jorginho e Leo tinham ido pescar de barco. Leo assegurou-a de que não havia perigo, mas Anita não podia deixar de se preocupar.
Lembrou-se da hora do almoço, quando os quatro tinham se sentado à mesa da varanda para uma leve refeição que ela mesma oferecera-se para preparar, que consistiu em uma salada verde, arroz e camarões empanados. Ela mandara vir os camarões prontos de um restaurante na cidade, já que a geladeira de Leo não oferecia muitas opções ... 

Enquanto comiam, ela pode perceber melhor a alegria espontânea de Leo, e seu lado protetor em relação ao irmão mais novo. Ficara sabendo que Leo levava Jorginho à escola todos os dias em sua velha motocicleta, e lembrando-se da estrada de chão esburacada que tinham percorrido para chegar até aquele lugarejo, Anita temeu por eles. Mas Leo sorriu e disse que estavam acostumados àquela vida. Mesmo assim, ela deu Graças a Deus por estarem no período de férias e ela não ter que presenciar a cena dos dois se afastando montados naquela velharia. Quando Fernando tocou novamente no assunto “pais”, perguntando quando eles voltariam, Jorginho baixou os olhos, e Leo, sorrindo ainda mais, murmurou um “Daqui a um tempinho” e mudou logo de assunto.

No barco, Fernando vivia  a fantasia de ter o  filho secretamente sonhado, que nunca tivera. Observava cada gesto de Jorginho com interesse, dando a ele toda a atenção que o menino pedia. Vibrava com ele a cada peixe pescado, ajudando-o a recolocar as iscas, e ficando feliz todas as vezes em que conseguia trazer à tona um sorriso ao rosto do menino. E ele sabia que os sorrisos existiam, embora estivessem presos dentro dele por algum motivo. Jorginho também divertia-se como há muito tempo não acontecia. Depois da morte dos pais, Fernando fora o único adulto que realmente dera-lhe atenção – além do irmão, é claro – mas o irmão era, como ele mesmo dizia, “meio-maluquinho,” não sendo talhado para tomar conta de um menino como Jorginho. Aos poucos, Fernando foi conseguindo aproximar-se cada vez mais da alma daquele menino, e ao final da pescaria, era como se já se conhecessem há muito tempo.

À noite, Anita pegou-o pensativo e distante, a cabeça apoiada nos braços que formavam um travesseiro enquanto ele olhava o teto, deitado na cama. Ela falou com ele, e tão distraído estava, que a princípio, não respondeu-lhe. Ela precisou chama-lo novamente, e Fernando olhou-a como se estivesse chegando de uma longa viagem... ela repetiu a pergunta:

-Vamos sair para jantar?

Ele imediatamente concordou, e perguntou se ela se importaria se ele convidasse os meninos para irem com eles. Ela disse que estava pensando em um jantar mais romântico, mas quando viu a decepção no rosto dele, acabou mudando de ideia, e foram todos à vila de carro. E no restaurante, ela percebeu que fizera uma boa escolha, ao ver todos felizes, brincando, rindo e conversando. Até mesmo o semblante triste de Jorginho se modificara. 

Quando chegaram à pousada, Fernando foi até o quarto de Jorginho, onde os dois jogaram vídeo game durante uma hora, e Anita, cansada, foi dormir. Ao deixar o quarto de Jorginho, após cobri-lo com carinho após o menino cair no sono ainda segurando a maquete, Fernando resolveu dar uma caminhada na praia. A lua cheia estava branca e muito iluminada, pairando em um céu estrelado e perfeito. A brisa do mar era quase fria, e ele fechou o zíper do seu casaco.  Já tinha caminhado durante dez minutos quando avistou alguém sentado em uma pedra. Era Leo. Fernando aproximou-se devagar, e percebeu que ele estava fumando. Ao chegar mais perto, também notou o cheiro inconfundível do cigarro de maconha. Ao vê-lo aproximar-se, Leo teve um leve sobressalto, erguendo-se, mas Fernando fez um gesto com a mão, acalmando-o, e foi logo dizendo:

-Não se preocupe, eu também fumava um de vez em quando, quando eu tinha a sua idade. Esse é dos bons?

Leo sentou-se na pedra, dando espaço para que Fernando sentasse junto dele, e estendeu-lhe o cigarro, dizendo:

-É dos melhores. 

Fernando tragou profundamente, deixando que o sabor da maconha trouxesse consigo algumas lembranças boas. Sentiu-se jovem novamente. Leo olhou-o, e riu. Ele retribuiu o sorriso. 
-Muito obrigada pelo que fez por nós hoje, Fernando, principalmente pelo que fez por meu irmão. Há muito tempo eu não o via tão contente.

-Há quanto tempo?

Leo, distraído, quase falou mais do que desejava:

-Desde que nossos pais... – ele hesitou, olhando o mar lá longe, brilhando ao luar. Completou: -viajaram.

Fernando ficou em silêncio durante algum tempo, e disse:

-Seus pais não viajaram, não é? Eles ... estão mortos, não estão?

Antes de responder, Leo deu uma profunda tragada:

-Tudo bem... é verdade.

-E o que aconteceu?

-Um acidente de carro, há um ano e pouco... ficamos sozinhos. Meu pai sonhava em construir uma pousada. Comprou este terreno, começou a fazer as casas... a vida era perfeita. Íamos a uma boa escola, eu pensava que seria um grande empresário, que ajudaria meu pai na pousada. Minha mãe tinha planos. Pensava em abrir um restaurante, divulgar tudo na internet. “Esse lugar promete,” eles diziam... e de repente... todos os sonhos viraram fumaça. A vida da gente muda tanto em tão pouco tempo...

Fernando pegou o cigarro, dando mais uma tragada:

-É... 

Uma gaivota perdida gritou ao longe. 

-Sabe, Leo, eu acho que... se me permite opinar...

-Vá em frente.

-Este lugar não é bom para Jorginho.

-Já pensei em vender tudo e ir embora, logo depois de enterrar meus pais. Mas para onde iríamos? E quando o dinheiro acabasse? Aqui , pelo menos, estamos perto de pessoas que conhecemos. E tenho a chance de continuar o sonho de meu pai. Sinto que aqui é o nosso lugar, nossa terra. Estamos perto dos nossos pais, ou do que restou deles...

-Vocês não tem nenhum parente, alguém que poderia acolhê-los?

-Temos uma tia. Mas meu tio – ou melhor, o marido dela – não quis a gente.

Fernando sentiu o coração bater mais forte, junto à garganta, e seu olhar se turvou. Num impulso, disse:

-E se vocês fossem embora conosco? Vocês poderiam ficar em nossa casa. Você voltaria a estudar, concluiria sua faculdade, e Jorginho poderia ter uma vida melhor também... sabe, nós não temos filhos, e eu acho que...

Leo interrompeu-o, jogando a guimba longe:

-Fernando, a gente mal se conhece! Somos apenas estranhos. Logo vocês vão embora, e nunca mais pensarão em nós. Como eu poderia ir embora com vocês, deixar para trás toda a minha vida? Não... obrigada.

Dizendo aquilo, Leo afastou-se correndo. Fernando, chocado com a resposta do rapaz, ainda ficou por ali, colocando as ideias em ordem. Achou que talvez ele tivesse demonstrado entusiasmo demais, e que Leo estava certo: eram apenas estranhos. E ele tinha feito uma oferta a Leo sem nem mesmo conversar com Anita a respeito. E se ela dissesse que não concordava? Percebeu o quanto tinha sido irresponsável e egoísta ao fazer tal proposta. 

Leo subiu em sua motocicleta e voltou à vila. A noite ainda era uma criança para ele.

Na manhã seguinte, o sol mal tinha saído quando Anita e Fernando foram despertados pelo  motor barulhento da motocicleta de Leo. Fernando abriu os olhos, e ficou escutando enquanto Leo desligava o motor e depois, os passos lentos no chão de madeira da varanda. Logo em seguida, escutou um baque surdo, como algo pesado que caía, e uma porta se abrindo, e a voz de Jorginho gritando:

-Leo! Leo! Levanta, por favor! Leo!

(continua...)




segunda-feira, 22 de junho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE III





A PRAIA DOS SONHOS – PARTE III

Abrir os olhos após dormir quase doze horas seguidas pode deixar as pessoas um pouco confusas. E foi exatamente assim que Anita se sentiu ao abrir os olhos e deparar com as paredes caiadas do quarto simples, as cortinas rendadas que balançavam com a brisa do mar e o gosto rançoso da cerveja da última noite ainda entre os dentes. Olhou para o lado: estava só. Com certeza, Fernando já tinha saído e estava na praia, estirado ao sol feito um lagarto. Ela levantou-se e ficou deslumbrada com a vista da janela: lá embaixo, ela via um mar imenso e verde, areias tão brancas que faziam doer os olhos e um azul dominante. Três faixas de cor: azul por cima, verde-esmeralda no meio e branco embaixo. E dois pontinhos de cor na areia: um menino estava sentado ao lado de seu marido. Ela apertou os olhos para ver melhor. Depois, bocejou e saiu. No corredor, sentiu cheiro de café. Ao chegar à recepção, encontrou Leo preparando uma bandeja de café da manhã: café, leite, pão com manteiga, um mamão e um copinho de suco de laranja. Nada mais. Nada parecido com o café da manhã farto e luxuoso do hotel, mas ela adorou o carinho da flor sobre a bandeja quando Leo a colocou na mesinha e convidou-a a sentar-se. Enquanto tomava seu café, Anita foi logo perguntando:

-Quem é o menino na praia? Seu filho?

Ele riu:

-Não, é meu irmão mais novo. O nome dele é Jorge. Jorginho.
-Ah, sim... e vocês moram aqui sozinhos, Leo?

Ela notou que ele baixou os olhos rapidamente, e uma ligeira sombra escureceu seu sorriso, mas ele logo a mandou embora:

-Não, moramos com nossos pais, mas eles estão viajando no momento, sabe, para comprar algumas coisas para a pousada. Estamos expandindo. Aliás... tive que colocá-los na minha suíte máster. É um pouquinho mais caro do que tínhamos combinado, mas é que a outra está ocupada, e a terceira está sendo pintada... mas dá direito ao café da manhã. Está bom?

Ela concordou com a cabeça, enquanto engolia um pedaço de mamão:

-Está ótimo. 

Anita lembrou-se de que quando tinham chegado, na noite anterior, havia uma plaquinha pintada à mão na outra cabana, onde se lia: “suíte máster.” Ela podia dizer que tinha certeza absoluta que a outra cabana estava desocupada... Mas como a tal plaquinha tinha ido parar na porta do seu quarto? 

Afinal, qual era a verdadeira ‘suíte máster?’  

-Eu pensei que a outra cabana estivesse vazia. Estava escura e silenciosa quando chegamos.

Ele coçou o queixo, dizendo:

-Ah, eles dormem e acordam cedo. Estavam dormindo quando chegamos, e saíram antes de vocês acordarem. Às vezes, passam dias sem aparecer. Vão acampar por aí. São um casal de americanos, acho. A gente se comunica quase que por gestos, eles falam pouco português e eu não falo quase nenhum inglês.

Ela podia jurar que ele estava mentindo, tal o excesso de detalhes, a fala rápida e os olhos que não encontravam os seus... mas Anita resolveu deixar aqueles detalhes de lado, levando em conta apenas a simpatia de seu anfitrião,  e terminando o café da manhã, foi até a praia, onde encontrou o marido e o menino. 

Foram apresentados, e Jorginho estendeu uma mão pequena e hesitante em direção a ela. Quando a apertou, Anita percebeu que ele era frágil como um passarinho machucado. Nunca vira tanta tristeza nos olhos de uma criança, apesar do leve sorriso forçado. A mãozinha do menino era fria, apesar do sol, e a pele muito branca, apesar de morarem praticamente na areia de uma linda praia. Ela achou estranho, mas não perguntou nada. Sabia que aqueles olhos escondiam uma história que não seria contada a alguém como ela. Mesmo assim, gostou imediatamente de Jorginho.
-Jorginho estava me dizendo que gosta muito de pescar, Anita. 

Ela riu:

-Bom pra você. Podem ir pescar juntos! Sabe, Jorginho, Fernando vive procurando companhia para suas pescarias. Agora encontrou uma: você.

Jorginho riu, balançando a cabeça afirmativamente, apontando para um barquinho ali perto que estava amarrado em uma estaca, sobre a areia.

-Se meu irmão deixar, podemos ir no barco dele. Tem motor!

Fernando perguntou:

-E você sabe guiar o barco?

Ele levantou-se, limpando a areia da bermuda, e balançando a cabeça afirmativamente mais uma vez.

-Eu sei sim. Meu pai me ensinou.

Naquela hora, uma máscara de tristeza tomou conta do rosto do menino. Anita perguntou:
-Quantos anos você tem?
-Tenho onze.
-E onde estão seus pais, Jorginho?

Fernando olhou para ela sem entender, já que Leo já tinha dito que eles estavam longe, em viagem de compras para a pousada. Já ia interferir, quando ela olhou para ele e ele imediatamente compreendeu a mensagem: “Deixe o menino responder!”

Mas Jorginho encolheu os ombros, e nada disse. Afastou-se caminhando sozinho pela praia, deixando o casal sozinho. Anita sentou-se ao lado do marido, olhando o mar. Fernando perguntou:

-O que foi aquilo?

-Ora, vai me dizer que você não percebeu que Leo mentiu sobre os pais, assim como mentiu sobre a tal “suíte máster?”  Não existe suíte máster nenhuma, ele só colocou a plaquinha na porta para poder cobrar mais caro. Assim como também não existem outros hóspedes na pousada, além de nós.

Fernando riu, após um momento de confusão.

-Mas você é perspicaz mesmo, hein, Anita? Mas sinceramente? Eu não me importo de pagar um pouco mais, pois percebi que Leo se esforça para cuidar de tudo, e eles precisam muito do dinheiro. Estive conversando com Jorginho, e ele me disse que às vezes, a polícia vem e toma parte do que eles ganham.

Anita arregalou os olhos:

-Mas como?! E ninguém faz nada? E por que a polícia levaria parte do dinheiro deles?
-Segundo Jorginho, eles não tem licença para funcionar. Mas senti que há mais alguma coisa que ele não quis me contar... é difícil falar com ele, a gente tem que arrancar as palavras se quiser obter alguma resposta.

Eles ficaram em silêncio. Um vento morno começou a soprar, deixando o céu totalmente azul, e Anita sentiu o calor do sol queimando-lhe os ombros nus. Vestiu a saída de praia após espalhar mais um pouco de filtro solar. Quando terminou, começou a espalhar o creme sobre o rosto e as costas do marido. Fernando disse:

-Notou o quanto esse menino é triste?

-Notei sim... o que será que aconteceu?

-Não faço ideia, mas para mim, é alguma coisa relacionada aos pais. Acho que eles estão mortos.

-Por que você acha isso?

-Porque ele evita falar neles, e quando fala e eu pergunto alguma coisa a mais, ou ele se cala ou muda de assunto.

-Estranho... bem, mas cuidemos dos nossos próprios problemas, não é? Afinal, estamos aqui de férias.

Fernando lamentou a frieza de Anita. Ela nunca se interessava por crianças. Mostrava-se entediada quando os sobrinhos dele os visitavam, embora fizesse de tudo para disfarçar. Dizia sempre, quando alguém lhes perguntava por que não tinham filhos: "Crianças são um tédio. Não tenho paciência nem instinto maternal, embora eu as ache muito lindas em filmes,  fotografias e calendários. Não é que eu não goste delas; só não quero cuidar de uma."

Durante muitos anos, Fernando compartilhou daquelas ideias, mas conforme o tempo ia passando, ele sentia um vazio por dentro, às vezes... um vazio que ele tentava fingir que não existia, mas que estava lá. Quando via seus sobrinhos ou os filhos de seus amigos, tornava-se criança novamente, brincando com eles. Sentia-se melancólico quando eles partiam, ao contrário de Anita, que aliviada, arrumava a bagunça deixada na casa, cantarolando.

Ela servia os lanches, e quando eles ficavam para passar a noite, arrumava as camas, mas era só: não gostava de interagir com as crianças, preferindo ficar sozinha no jardim, lendo um livro. Era sempre gentil, e as crianças gostavam dela, pois sentiam-se bem tratadas, mas também entendiam que Anita preferia ser deixada em paz. 

Mas Fernando não sabia que Anita ficara muito impressionada com Jorginho e Leo, e que embora tentasse disfarçar, ela não sabia explicar o porquê daquela pequena brecha que começava a abrir-se em seu coração.


(continua...)




segunda-feira, 8 de junho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE II





Do outro lado da cidade, um casal de turistas tenta aproveitar o calor do sol em uma praia movimentada. Em volta deles, vendedores ambulantes gritam seus pregões, e um alto-falante berra uma música de axé com uma letra irritante. Uma criança passa correndo e gritando no meio das esteiras onde os dois descansam, jogando-lhes areia. Um cão a segue. Uma mulher arma sua barraca bem junto a deles, tapando o sol. Os dois se entreolham enquanto ela começa a espalhar seus pertences na areia: ela começa a armar suas cadeiras de praia, enquanto o marido deposita um enorme isopor sob a barraca. Duas crianças ranhetas começam a brigar. A mulher grita com elas, e uma delas começa a chorar alto.

O casal se entreolha mais uma vez, e sem nada dizer, começam a recolher suas coisas. Hora de voltar para o hotel. Na recepção lotada, precisam esperar dez minutos até que o recepcionista lhes estenda a chave do quarto. Depois, aguardam ainda mais pela sua vez de entrar no elevador cheio. Ao abrirem a porta do quarto, uma lufada de ar gelado quase os congela. A mulher exclama:

-Nossa! Eu já tinha pedido para não ligarem o ar condicionado tão alto desse jeito!

O marido, ao chegar no banheiro, diz:

-E não trocaram as toalhas de novo. Eu pedi hoje de manhã. 

Um carro de som tocando música de má qualidade passa berrando na avenida lá embaixo. A mulher olha as ruas lotadas de carros, vendedores ambulantes e turistas. Os dois tiram as roupas suadas e cheias de areia, e enquanto a banheira enche, sentam-se lado a lado na cama. Mais uma vez, chegam a um acordo silencioso: precisam dar o fora dali, daquelas férias infernais. É Anita, a esposa, quem fala primeiro:

-Vamos alugar um carro, ouvi dizer que existem ainda algumas praias desertas lá para o norte. Quem sabe, encontramos o nosso pedacinho de paraíso para finalmente começarmos a celebrar nossos vinte e cinco anos de casados?

-Você está certa. Vou fazer isso agora mesmo, assim que dormir um pouquinho...
-Agora mesmo ou assim que dormir um pouquinho, Fernando? Eu não vou aguentar ficar aqui mais um dia.

-Vamos tomar um banho juntos primeiro – ele sugere, com olhar malicioso.

Horas depois, os dois estão colocando as malas em um carro alugado e rumando para o norte. Sem destino certo, sem saber onde se hospedarão, ou aonde chegarão. Alguém sugeriu um lugar chamado Praia dos Sonhos, mas disse que ficava muito longe do centro, cerca de três horas de viagem, e que só havia um único hotel ruinzinho e duas pousadas, que deveriam estar com seus poucos quartos alugados no mês de janeiro. Mas garantiram que haveria poucos turistas naquela área, devido à falta de infraestrutura. Anita e Fernando adoraram aquele comentário sobre a falta de infraestrutura, e decidiram partir imediatamente. 

Após dirigir por uma hora, Fernando viu que a estrada asfaltada deu lugar a uma de terra batida, que ficava cada vez mais esburacada e difícil. Teve que parar o carro uma vez para livrar-se de um galho de árvore no meio do caminho, e Anita ficou morrendo de medo, achando que fosse uma tentativa de assalto, mas nem mesmo ladrões andavam por ali. Mato de um lado e de outro. Buracos e solavancos sob um sol infernal... graças a Deus, o carro tinha ar condicionado. Mas de repente, a estrada estreita começa a alargar-se e os dois percebem que o mato começa a rarear, e a paisagem se abre. Eles deparam com um mar verde-esmeralda após uma enorme faixa de areia fina e branca.

Anita e Fernando saem do carro, sentindo o vento morno cheirando a maresia, e ficam por alguns instantes contemplando a beleza da paisagem. A praia deserta e maravilhosamente silenciosa os atrai para um mergulho. Antes de entrar na água, enquanto se despe, Anita olha em volta e de repente tira toda a roupa - inclusive o biquini - antes de jogar-se nas águas verde-esmeralda. Mas o sol já se despedia, e eles sabem que precisam encontrar um lugar para passarem a noite, e assim, entram no carro novamente. Após mais ou menos trinta minutos, Fernando dirige entre um corredor de pequenas casas pintadas com cores suaves, e centão  chega a uma pequena vila.

Percebem um pequeno movimento de pessoas - na maioria, turistas estrangeiros. Saem do carro, e de mãos dadas, caminham entre diferentes sotaques, até chegarem em frente a um aconchegante restaurante cujo telhado é feito de palha. A noite apenas começara, mas atraídos pela música e pela suavidade das luzes dos pequenos lampiões sobre as mesas rústicas, o casal decide entrar para comer alguma coisa. 

Logo são atendidos por um simpático rapaz (Anita logo nota sua pouca idade e a beleza do seu rosto de menino). Ele vai logo se apresentando, enquanto estende um cardápio para o casal:

-Bem-vindos ao nosso restaurante! Meu nome é Leo, e vou servi-los esta noite.

Anita e Fernando se entreolham, e Fernando diz, após olhar o cardápio com Anita durante algum tempo:

-Obrigada, Leo. Acho que vamos pedir duas cervejas por enquanto, e também... uma porção destes bolinhos de peixe... são bons?

Leo sorri, iluminando a noite:

-Bons? são os melhores que vocês já comeram. Mais alguma coisa?

Anita sorri. Fernando sente uma empatia imediata com o rapaz, e acaba se apresentando:

-Não, é só por enquanto. Desculpe, esquecemos de nos apresentar, Leo. Meu nome é Fernando, e esta é Anita, minha esposa.

-Tudo bem com vocês? Estão vindo de onde?

É Anita quem responde:

-Nós estávamos na cidade, mas tem muito movimento por lá. Queríamos um lugar mais tranquilo. Acabamos de chegar.

Os olhos de Leo brilham:

-Então já tem onde ficar?

Fernando respira fundo:

-Na verdade, ainda não... tem algum hotel por aqui?

-Bem, aqui na vila só temos um hotel e uma pousada, mas já estão cheios. Mas eu tenho uma pequena pousada, a meia hora daqui. Ainda tenho um quarto livre. Se quiserem eu digo como chegar lá. Ou então vocês me esperam sair, e eu os levarei até lá. Costumo sair às onze da noite.

Anita sorri:

-Obrigada! Acho que vamos querer sim.

Fernando a olha com censura, pois acabavam de chegar em um local desconhecido e ela já estava aceitando convites de estranhos. Às vezes, ele se irritava com a falta de cuidado da esposa e sua facilidade exagerada em confiar nas pessoas e em fazer amigos. Ele diz:

-Bem, na verdade, Leo, agradecemos sua atenção, mas vamos pensar. 

O sorriso do rapaz apaga-se por um instante, mas mesmo assim, ele concorda com a cabeça, sorri novamente pedindo licença, e vai providenciar o pedido. 

O dono do restaurante, "seu" Manuel, que escutara a conversa toda, aproxima-se da mesa:

-Boa noite. Meu nome é Manoel, e sou o dono do restaurante. Podem confiar em Leo, ele é um rapaz excelente. Mora na cidade há alguns anos, todos o conhecem por aqui. É boa pessoa!

Anita sorri, e ela cutuca a perna de Fernando sob a mesa. Ele ainda tenta argumentar:

-Mas... não tem nenhuma vaga por aqui mesmo, na vila?

-Com certeza não. O hotel é bem pequeno, e a pousada, idem. O lugar que Leo ofereceu é sua única opção. É bem simples, humilde mesmo. Mas tem água limpa, chuveiro, uma boa cama e um teto sobre a cabeça.

Fernando responde dizendo que vai pensar melhor, e "seu" Manuel se afasta. O casal discute em voz baixa, e acabam concordando em ficar na pousada de Leo. 

(continua...)




quarta-feira, 3 de junho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE I







Mais uma vez, Leo levou seu barquinho a motor para o mar. Cortou com ele a oposição das ondas, ouvindo o protesto destas quando batiam com força no casco do barco, jogando-o para cima. Às vezes ele pensava que a madeira não resistiria, mas o barco era antigo e forte. Era o barco de seu pai. O mesmo que ele cuidou com carinho durante todos os anos em que Leo vivia. Gaivotas seguiam-no de longe, gritando sobre sua cabeça e projetando a sombra das asas em seu rosto. Leo olhava para elas, agitando os braços e gritando: “Não tenho nada para vocês, amigas. Vão procurar os barcos dos pescadores.” Mesmo assim, elas o seguiam, como se zelassem por ele.

E quando ele chegava naquela parte além das ondas e via a praia lá longe, desligava o motor. Olhava as quatro casinhas no alto da colina, que tinham vista para o mar verde lá em baixo: a que ele morava com Jorginho, seu irmão mais novo, e as outras três; duas estavam terminadas, e a última ainda não tinha portas, janelas ou qualquer acabamento. Leo sonhava em um dia termina-la, e também às outras que ficaram apenas no território dos sonhos dos pais. O terreno onde seriam construídas, uma ao lado da outra, fora riscado bem fundo com uma concha do mar, mas o vento apagara a maioria daquelas marcas, enchendo-as com as areias do esquecimento. Mas tinha coisas que nem o vento podia apagar.
Leo deitou-se no fundo do barco, e enquanto olhava os raios de sol formando arco-íris entre seus cílios, ficou imaginando que a vida era boa, e que seus pais o esperavam lá na praia, e que Jorginho brincava feliz e inocente com seus carrinhos. Tentou, mais uma vez, fazer o tempo voltar àquela noite do acidente, e fazer com que nada daquilo tivesse acontecido. Já tinha pensado em ir embora; mas ir para onde? Tinha apenas 22 anos de idade e precisava tomar conta de um irmão de onze anos. Não tinha emprego, nem muita instrução; terminara o segundo grau, e passou raspando. Nunca pensou em fazer faculdade, pois em sua mente, seria dono de um grande hotel na Praia dos Sonhos.

Praia dos Sonhos. Melhor seria Praia dos Pesadelos!

O paraíso podia ser um lugar triste. O paraíso podia ser um lugar onde os sonhos morriam cedo, antes de amadurecerem, e onde garotos ficavam sem os pais enquanto ainda precisavam tanto deles. Quando Jorginho falava em ir embora, Leo não queria nem ouvir. Dizia que não queria sair da Praia dos Sonhos, pois o pai e a mãe estavam ali, enterrados naquele pequeno cemitério, e ainda tinha a Tia Cora, que vinha uma vez por semana limpar a casa, lavar e costurar as roupas e cozinhar para eles. Mas ela não podia recebe-los em sua própria casa, pois o marido vivia repetindo que “Aquele tal Leo é um sonhador, nunca será nada de bom e pode ser uma má influência para nossos filhos... e eu não quero responsabilidade com os filhos dos outros; bastam os nossos dois.”  Portanto, contato com os primos, eles não tinham. Nem sabiam direito qual era a aparência deles. Viviam isolados naquelas casinhas, que distavam meia hora de carro da vila. 

Leo levava Jorginho à escola de manhã, buscando-o na hora do almoço. Usava uma velha motocicleta que trocara pelo que sobrara do jipe após o acidente que matara seus pais. Jorginho tinha poucos colegas na escola, pois quase todos riam dele por causa de suas roupas puídas e dos seus pés sempre calçados com sandálias havaianas. Troçavam dos seus cabelos um pouco  longos e repicados, cortados em casa, as raízes castanhas e as pontas alouradas com parafina, como fazem os surfistas. Apesar de morarem junto à praia, Jorginho evitava o sol. Tinha a pele branca e as bochechas pálidas. Se fosse até a praia, colocava camiseta e chapéu, e besuntava o resto do corpo com filtro solar. Não queria que pensassem que ele passava o dia todo na praia e não estudava ou trabalhava, pois ele ajudava o irmão quando tinham hóspedes. Nem mesmo durante as férias, como era o caso, ele gostava de ficar ao sol.

Não havia muitos empregos para jovens como eles naquela cidadezinha. Aliás, não havia muitos empregos para ninguém, e a cidade dormia a maior parte do ano, despertando apenas no verão, quando chegavam os turistas. Leo trabalhava de garçom nas noites de quinta e sexta. Era o único emprego que conseguira por lá, em um restaurante típico da vila que servia frutos do mar. Manoel, o dono do restaurante, tinha sido amigo de seu pai, e dera-lhe aquele emprego apenas para ajudar os meninos, pois não precisava de mais um garçom; não pagava um salário, mas deixava que Leo ficasse com vinte por cento das mesas que servia, e as gorjetas ficavam todas para ele. Recebia pouco, mas era o que ajudava quando o dinheiro da pensão acabava, sempre antes do final do mês. 
Leo às vezes conseguia um hóspede no final de semana, mas as instalações das casinhas não eram nada boas... os lençóis eram velhos e tinham alguns furos que tia Cora remendava. As paredes precisavam de tinta, e a água para o banho era salobra. Também precisava de móveis novos, pois os que tinham eram velhos e gastos. Ele fazia de tudo para acomodar os poucos hóspedes: varria bem o chão, e lavava os lençóis com sabão perfumado e enxaguava com água de anil, para que ficassem bem branquinhos. Colocava flores que ele mesmo colhia sobre as mesinhas, tirava o pó todos os dias, e às vezes, colocava alguns bombons sobre a cama com um cartãozinho escrito “Sejam bem vindos.” Contava sempre a mesma história, que apesar de não ser verdadeira, encantava os turistas: a pousada estava em construção, mas segundo o projeto dos arquitetos e do engenheiro, ainda demoraria um ou dois anos para que tudo ficasse pronto, mas seria um prazer tê-los como hóspedes assim mesmo. E ele faria um preço especial pela “suíte master,”  já que o quarto comum estava em reformas. E ele levava os hóspedes para um pequeno tour no seu terreno junto à praia, mostrando a pilha de tijolos e a pilha de areia, os caibros e as louças. Mantinha o terreno sempre capinado e limpo para que não desse a impressão de que a obra estava abandonada. Quando alguém perguntava pelos seus pais, ele sorria e dizia que os dois estavam viajando, buscando coisas bonitas para colocar no hotel: “Móveis, enfeites, roupas de cama e mesa, você sabe, esse tipo de coisa.”
Se acreditavam nele, eu não sei; mas não havia ninguém que não ficasse encantado pela sua simpatia e alegria. Quando os hóspedes iam embora, Leo distribuía alguns cartões de visita e pedia que eles o recomendassem aos amigos e parentes. 

Naquele final de semana não tinham conseguido nenhum hóspede ainda, mas Leo ainda tinha algum dinheiro da semana anterior, quando um grupo de gringos pousara ali por quatro dias. O fato de não possuírem restaurante ou serviço de quarto também não contribuía para que conseguissem muitos hóspedes. Se alguém sentisse fome no meio da noite, precisava pegar o carro e dirigir meia hora até a vila, ou três horas até a cidade.

Leo economizava o mais que podia, mas às vezes, perdia quase tudo o que ganhava. Quando ia para a cidade, tinha que tomar muito cuidado para não dar de cara com a dupla de policiais, pois quando isso acontecia, eles o surravam e tomavam-lhe o dinheiro. Deixavam apenas um pouco para a comida, dizendo que o garoto menor não tinha culpa de nada, e que só não matavam Leo  por causa de Jorginho. E Leo voltava para casa machucado, tentando sem sucesso esconder os hematomas do irmão. Jamais reagia às surras, pois no fundo, ele achava que as merecia por usar maconha e ser um péssimo exemplo para o irmão mais novo. Mas apesar das tentativas de não deixar que o irmão percebesse seu estado, às vezes as surras eram mais exageradas, e ele chegava com um olho roxo, sangue na camisa, ou cortes pelo corpo ou então mancando, e Jorginho chorava enquanto tentava, com um pedaço de algodão e água boricada, fazer-lhe curativos. Ele sorria, dizendo: “Deixa disso, 
Jorginho, eu estou bem, já disse. Só caí da moto outra vez.”

Mas Jorginho sabia muito bem da verdade, embora não discutisse com o irmão.
Os dois sempre tinham sido muito unidos, e mais ainda após a morte dos pais, há cerca de um ano e meio. Jorginho, que tinha sido sempre uma criança alegre e cheia de vida, tornara-se muito triste. Dava a impressão de que uma sombra estava sempre pairando sobre seu semblante, mesmo nas poucas vezes em que ele sorria. Perder os pais tinha sido muito traumático, assim como descobrir que sua tia Cora, que era também madrinha dele e do irmão, não os levaria para sua casa por causa do marido. Foi um choque muito grande para Jorginho descobrir que ele não tinha mais ninguém adulto no mundo, a não ser Leo, que parecia recusar-se a crescer. Ele tomou para si a silenciosa responsabilidade de cuidar do irmão, e a levava muito à sério.  As pessoas da vila comentavam que o menino mais novo parecia ser mais maduro que o mais velho, que gostava de andar por aí em sua motocicleta nas noites de sábado e domingo, deixando o irmão menor sozinho em casa. Mas aqueles comentários em nada afetavam a amizade dos dois irmãos. Jorginho compreendia que um rapaz na idade de Leo precisava de namoradas. Garotas. Festas. Sabia que ele andava lá para as bandas da parte vermelha da cidade, onde estavam os bares de reputação duvidosa que vendiam drogas, as garotas fáceis, os garotos das motocicletas. Mas sabia que seu irmão era bom. Sabia que ele jamais o abandonaria, só queria se divertir um pouco, e aquela era a única diversão daquele lugar. 

(CONTINUA...)



A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...