terça-feira, 18 de junho de 2019

INOCÊNCIA - Capítulo XXIV - Parte II Um Plano






III – Um plano

Descobri então que Dr. Gustavo estava noivo mas era muito mulherengo, e que trabalhava para minha avó há cinco anos, desde que seu próprio pai se aposentara e passara os negócios da fazenda para ele. Desde então, cuidava de todos os investimentos e propriedades de minha avó e tinha uma procuração assinada por ela para resolver qualquer questão relativa às suas contas bancárias. 

Eu sabia que seria apenas uma questão de tempo. Tudo o que eu precisava fazer, era seduzi-lo. 

Nos dias que se seguiram, eu trabalhava na fazenda com todo afinco e dedicação, pois enquanto trabalhava, podia arquitetar meu plano. Minha avó me tratava como se eu fosse menos que um dos seus empregados, jamais falando comigo, e se eu me dirigisse a ela por qualquer motivo, ela mal me respondia, ou sequer me olhava, limitando-se a respostas grunhidas e monossilábicas.

Após duas semanas, Dr. Gustavo voltou à casa. Servi o café na sala – caprichei na minha aparência, usando um vestido simples, azul claro e novo, que comprara com a mesada que minha avó me proporcionava. Era bem pouco – apenas “para os meus alfinetes,” como ela dissera, mas eu ainda tinha algumas economias, então resolvi investir um pouco na minha aparência, e no meu plano. 

Não pretendia ficar na fazenda trabalhando por cama e comida e uma parca quantidade de dinheiro que dava para os meus alfinetes. 

Naquela tarde, eu lavara os cabelos e os tinha escovado várias vezes, até que suas ondulações ficassem cheias de brilho. Prendera um dos lados com uma pequena flor vermelha de seda, deixando que o lado oposto caísse um pouco sobre o rosto, dando um certo ar de mistério. Usara algumas gotas de um perfume que encontrara sobre a penteadeira de minha avó, e para que ela não percebesse, usei bem pouca quantidade, evitando chegar muito perto dela. Mas eu duvidava que, caso sentisse o perfume, ela se lembrasse dele. O vidro parecia ser bem antigo, e estava empoeirado. Pertencia a alguma época onde a vida tinha sido diferente. Meus cílios eram longos e fartos, e ressaltei-os com um pouco de azeite que passei nas pontas dos dedos, e depois, sobre eles. Era a única coisa disponível. Também usei um ar de batom rosado muito natural que Jandira me emprestara. Resumindo: eu não passaria despercebida em nenhum lugar. Tinha consciência do quanto minha beleza atraía os olhares das pessoas. 

E atraí os olhares do Dr. Gustavo, embora ele tentasse disfarçar. Sorri para ele por cima dos ombros de minha avó, enquanto esperava suas ordens. Ele deixou escapar um pequeno sorriso, corando. 
Deixei os dois conversando na sala, e fui juntar-me à Jandira na cozinha. Ela estava sentada à mesa, tomando um pouco de suco de maracujá. Quando entrei, ela ergueu o copo e me ofereceu um pouco, dizendo que estava na geladeira. Recusei; não queria me submeter aos efeitos calmantes da fruta. Queria estar com todos os meus sentidos bem aguçados. Ela me fitava com ar de curiosidade e fascínio; talvez um pouco de medo. Sentei-me diante dela, tamborilando sobre a mesa com as pontas dos dedos, e sorri. Meu sorriso a desarmou:

-E agora, Cristina? O pato caiu?

Eu dei uma gargalhada:

-E você tem alguma dúvida?

Ela negou com a cabeça.

-E então; vai convencê-lo a ajudar você?

-Não vai ser preciso ‘convencê-lo’, se é que você me entende. Ele está nas minhas mãos. Você conhece a noiva dele?

-Sei que ele tem uma noiva, e que está para se casar dentro em breve, mas nunca a vi. Dr. Gustavo ainda é jovem. Tem fama, se é que você compreende o que eu quero dizer. É um sedutor conhecido.

-E a noiva dele não se importa?

-Deveria? Ele dará a ela uma ótima vida.

Eu dei um pequeno soco na mesa:

-Mas por que as pessoas acham que o casamento deve ser o maior objetivo na vida de uma mulher? Passar a vida casada com alguém que a trai, que não a respeita, apenas por segurança financeira?

-Bem, não acho que a gente tenha muitas alternativas. Tem sido assim desde sempre.

-Sim, mas as coisas estão mudando! Nunca ouviu falar no movimento feminista?

-Movimento feminista... sim, li alguma coisa no jornal. Mas isso nunca vai chegar até aqui. Não mesmo.

Olhei para ela. Tinha perdido o ar sisudo, e me tratava melhor. Me atrevi a perguntar:

-Nunca se casou?

Ela corou, baixando os olhos. 

-Não.  Nunca saí desta fazenda.

Eu não acreditava no que estava ouvindo.

-Como? Nunca saiu da fazenda? Nunca viajou, não conhece outros lugares, outras cidades?

-Apenas uma ou duas cidadezinhas vizinhas, que visitei quando acompanhei Dona Helena. Não tive muitas chances de conhecer alguém... isso é... houve uma pessoa, um trabalhador da fazenda. Mas quando Dona Helena e Dr. Vitor perceberam o que estava acontecendo, eles o mandaram embora daqui. Nunca mais o vi. Queria que eu fosse com ele, mas... não tive coragem. 

Fiquei estarrecida com a história de Jandira. 

-E sua mãe? Aonde ela está?

-Morreu no parto. Fui criada pelas pessoas da fazenda. 

Naquele instante, ouvi movimentos e passos na sala de estar. 

-Acho que ele está de saída.

Dizendo aquilo, deixei Jandira sozinha à mesa, pensando em seu passado, e corri para fora, onde fingi estar distraída cuidando de um canteiro que ficava exatamente no caminho que Dr. Gustavo teria que percorrer até chegar ao seu carro, na lateral da casa. Claro, ele me viu, mas fingi não perceber a presença dele. Ao invés daquilo, corrigi minha postura e toquei em uma rosa aberta, cheirando-a de olhos fechados. Eu estava atuando para ele. E funcionou, pois ele se aproximou de mim.

-Boa tarde, moça bonita.

Abri os olhos de repente, fingindo me assustar.

-Boa tarde... Dr. Gustavo. 

Dei a ele meu melhor sorriso, o mais cheio de luz que eu podia forjar. 

Conversamos sobre amenidades durante alguns segundos – o tempo, o calor, as nuvens negras que se aproximavam no horizonte, cada vez mais rapidamente. Então ele chegou mais perto de mim, dizendo:

- Então... você é neta de Dona Helena?

-Sim. Embora ela não goste da ideia, eu sou sim. Meu pai... casou-se com uma das empregadas da fazenda – minha mãe. 

Baixei os olhos, fingindo tristeza e constrangimento.

-Conheço a história, ela é antiga e circula pela cidade toda há anos. Sinto muito. Saiba que não aprovo a atitude dos seus avós em relação ao seu pai, e nem o meu pai a aprovava. Mas... por que está aqui?

-Porque eu queria conhecer minha avó. Meu pai nunca me falou dos meus avós, eu pensava que estivessem mortos. Mas... descobri recentemente que ela estava viva. 

Ele assentiu. 

-Pretende ficar aqui por muito tempo?

-Não sei ainda. 

Ele ergueu meu queixo suavemente com a ponta dos dedos, me obrigando a olhá-lo.

-Você parece ter uma história triste. Não deveria se entristecer, é muito bonita. Você é uma das mulheres mais bonitas que eu já vi. 

Fingi timidez, e agradeci. Naquele instante, a chuva começou a cair forte, e ele se despediu, entrando no carro. Entrei em casa correndo, pois a tempestade fortíssima já encharcava tudo. 

Meia hora depois, ele voltou. O riacho enchera, inundando a estrada, e ele não tinha como passar. Minha avó convidou-o a passar a noite na fazenda. Aquilo era tudo o que eu precisava para levar meu plano adiante!

(Continua...)





sexta-feira, 14 de junho de 2019

INOCÊNCIA - Capítulo XXIII, Parte II- Neta?





II – Neta?

O quarto azul era espaçoso e muito bonito. Minha cama era cercada por um lindo dossel de renda branca que mantinha os mosquitos longe durante a noite. Fiquei me perguntando o porquê de minha avó não ter me colocado na ala junto com os demais empregados da casa, mas achei melhor não perguntar. 

Eu daria um jeito de mudar aquela situação. Eu a faria me enxergar como sua neta, que é o que eu verdadeiramente era. 

Na manhã seguinte, havia um vestido simples e algumas roupas íntimas estendidos na cadeira ao lado da minha cama, e eu o vesti. Prendi os cabelos, fiz minha higiene matinal e abri a porta cuidadosamente, no exato momento em que Jandira passava pelo corredor. Ela ergueu as sobrancelhas ao me ver, dizendo:

-Acordou tarde. São sete da manhã. A partir de amanhã, deverá estar de pé antes das seis. Deverá servir o café da manhã de D. Helena em seu quarto.

-Bom dia para você também, Jandira. 

-Para você, eu sou DONA  Jandira. Me chame de ‘senhora.’

-Tentei soar irônica, mas ela não ligou:

-Está bem, ‘senhora Jandira.’ Por que minha avó não toma café na sala de almoço?

-Porque ela é a patroa, e pode tomar seu café onde bem quiser. Sua obrigação é servi-la, não questionar seus hábitos. Além disso, ela é uma mulher doente e idosa.  A louça do café está na pia, e você pode ir até lá e lavá-la. Depois, descasque as batatas que estão no saco junto à mesa, e quando terminar, vá varrer a casa e tirar o pó dos moveis. O material de limpeza está no quartinho junto à cozinha. Se quiser tomar café, o bule e o leite estão sobre o fogão. Esquente-os. O pão está no armário sobre a pia.

Dizendo aquilo ela me deixou no meio do corredor, e eu mal sabia onde ficava a cozinha. Decidi ir até a sala de estar, que era o único cômodo que eu conhecia, além do meu quarto e do banheiro. Quando entrei, minha avó estava sentada à mesa da sala acompanhada de um homem de terno cinzento. Ambos olhavam alguns documentos e discutiam em voz baixa. Ao notarem minha presença, eles me olharam, e pude notar que o homem era jovem e muito bonito. Ele ficou me encarando boquiaberto, e minha avó me apresentou a ele:

-Esta é a menina de quem lhe falei, Dr. Gustavo. Está morando aqui por enquanto. Minha neta.

Ele acenou para mim com a cabeça, e respondi-lhe da mesma forma, sem saber se deveria me aproximar ou não. Minha avó me ajudou a tirar minha dúvida:

-Vá procurar trabalho, menina. Há muito a ser feito na fazenda. 

Ela voltou a ler os documentos, e Dr. Gustavo ficou me encarando. Também olhei para ele, e concluí que deveria ser o advogado de minha avó. Na cozinha, comecei a cumprir as ordens de Jandira, que lidava com as panelas do almoço. Enquanto eu descascava as batatas, perguntei:

-Quem é aquele moço bonito na sala?

-Advogado de D. Helena. 

E ela não disse mais nada.

Ao final daquele dia, eu estava exausta, não apenas pelo tanto que havia trabalhado, mas também pelo calor sufocante. Minha avó almoçara no quarto, e eu comi minha refeição na cozinha, junto com Jandira. Apesar da casa ser grande, apenas eu e Jandira trabalhávamos nela. Os demais empregados cuidavam das plantações de café, dos animais e de outros assuntos fora da casa. Concluí que Jandira deveria trabalhar demais antes da minha chegada, e comentei aquilo com ela.

- Havia uma outra moça. Mas D. Helena a demitiu antes de você chegar. 

-Por minha causa?

- Não sei. Ela não era muito trabalhadora mesmo.

Fiquei triste ao saber que a outra moça poderia ter sido demitida por minha causa, mas mudei de assunto:

-Há quanto tempo está aqui, Dona Jandira?

-Há quanto tempo? A minha vida toda, eu nasci aqui na casa. 

-E onde estão seus pais?

Ela ficou irritada, e respondeu:

-Você faz perguntas demais, menina! Não é da sua conta.

Logo senti que ela não gostava de tocar naquele assunto, o que me fez concluir que havia alguma coisa escondida ali. Jandira ainda guardava traços de ter sido uma bela mulher. Deveria estar na casa dos quarenta, quarenta e cinco anos. Tinha o semblante sofrido, mas notei que seus olhos azuis ainda guardavam um pouco da beleza da juventude. Ao olhá-la mais longamente, comecei a perceber traços do retrato de meu avô que estava pendurado na parede da sala. Seria impressão minha? Ela ergueu os olhos dos seus afazeres, e me pegou encarando-a. Fiquei vermelha, baixando os olhos. Ela pareceu muito irritada, mas nada disse. Mas eu era atrevida, e queria saber.

-Você é filha do meu avô, não é? Então você... e eu somos... parentes!

Ela deixou cair a terrina com as cascas de laranja que estava preparando para fazer um doce. 

-Olhe o que me fez fazer, sua curiosa! Pegue tudo agora mesmo!

Não fiz menção de me erguer da minha cadeira, e continuei descascando as batatas. Eu não tinha medo dela. Não deixaria que me intimidasse. Ao contrário, eu a encarei e disse bem devagar:

-Pegue você, tia. 

Ela ergueu-se da cadeira e veio em minha direção. A fúria nos olhos dela fez com que eu me também erguesse e estendesse os braços para repeli-la. Ficamos as duas naquela luta dentro da cozinha, grunhindo e derrubando talheres no chão. Nem sei por quanto tempo ficamos assim. Os olhos dela estavam injetados e cheios de lágrimas, e o rosto, muito vermelho. Ela pegou uma mexa do meu cabelo, puxando-a do rabo de cavalo, e passou a pendurar-se nela, o que me fez dar um grito de dor. Acabei arranhando-a no braço. Ela me deu um tapa no rosto, e eu caí, agarrada a ela, que caiu em cima de mim. 

Eu era mais forte, e movimentei meu corpo, sentando sobre o dela, e segurando seus braços com força, eu disse:

-Sua tola! Não vê que se é filha do meu avô tem direito à herança dele?

Aos poucos, senti o corpo dela relaxar sob o meu. Ainda ofegante, ela me perguntou:

-O que você está dizendo?

-Se você é realmente filha de meu avô, tem direito a parte da herança dele.

Ela riu.

-Se nem mesmo seu pai, que é filho natural e reconhecido, vai ficar com alguma coisa, você acha que eu vou?

-Meu pai simplesmente desistiu de tudo! Você não precisa fazer a mesma coisa. Ela.. ela a trata bem? Ela alguma vez a tratou bem?

Saí de cima dela, sentando-me no chão ao seu lado, e ela sentou-se também, arrumando as roupas e secando com o pano o sangue que escorria do arranhão. 

-Você é uma menina diabólica! Mal chegou aqui, e... e...

-Não sou diabólica.. só não sou tola. Como você, que passou a vida toda servindo minha avó. Não pretendo fazer o mesmo. Não mesmo! E se você me ajudar, nós duas vamos ficar muito bem de vida assim que ela morrer. Ela não está doente?

Ela me olhou com os olhos arregalados.

-O que você quer dizer?

-Me ajude, e eu ajudarei você.  Pode começar me contando tudo o que sabe sobre esse Dr. Gustavo.

(continua...)




terça-feira, 4 de junho de 2019

Capítulo XXII, PARTE II - Cristina Fala






PARTE II – CRISTINA FALA

I I– Minha avó

Cria da casa: eis tudo o que eu era, tudo que eu sempre fui. Não é nada fácil não ter uma definição: não ser negra ou branca, e sendo pobre, usar as roupas caras presenteadas por alguém de uma rica família, e sentir-se observada nas ruas com ódio e inveja de pessoas que provavelmente se perguntam como uma negrinha como eu poderia usar roupas como aquelas. Não poder frequentar uma universidade, mas ter à mão os melhores livros já escritos na imensa biblioteca do patrão, que não apenas os empresta, mas também estimula as leituras. Sempre fui a filha da empregada. Qualquer momento que eu possa ter pensado ser outra coisa, não passou de um engano.

De que me adiantou ter nascido bonita e ser desejada, se nunca pude ter o homem que eu amava? Por que sair com a filha do patrão e seus amigos, fingindo que eu era uma deles, quando nenhum dos rapazes que me tratavam bem e faziam com que eu me sentisse “incluída”, “uma deles,” jamais quis me namorar – apesar de terem tentado outras coisas comigo e me difamado quando eu disse não? Eu queria ter nascido bem negra, ou bem branca, porque os negros não me aceitavam por eu não ser uma deles, e os brancos não me aceitavam pelos mesmos motivos. A começar pela história dos meus pais – um branco rico que engravidou uma preta pobre e foi banido do reino para ficar com ela. Poderia tê-la jogado na rua, como tantos outros, mas teve a honra de não abandoná-la e de assumir sua filha, que passou a odiar devido a tudo que teve que renunciar por ela. Ele nunca me incentivou a valorizar a minha parte branca; pelo contrário: enfatizava sempre a minha parte negra, e o quanto eu deveria andar de cabeça baixa por causa dela, respeitando os brancos e não me atrevendo nunca, nunca, a tentar ser qualquer outra coisa, a tentar fazer valer a minha parte branca. Ele também me enxergava como a filha da empregada da casa. Às vezes eu me pergunto se, durante as surras que ele me dava, alguma vez ele se lembrava de que era a sua própria filha que estava ali, sob os golpes do seu cinto de couro, e não a filha da empregada da casa.

Mas se havia uma pessoa naquela casa que me amava de verdade, além da minha mãe, essa pessoa era minha pequena amiga Yara. Dava para ver nos olhos dela o quanto ela me adorava! Uma vez eu li um livro sobre vidas passadas e reencarnação, e fiquei achando que Yara era minha irmã em outra vida. Foi muito doloroso deixar aquela casa sem me despedir dela. Mas eu não ia aguentar vê-la chorar, e acabaria ficando, e se eu ficasse, não teria conseguido tudo o que consegui. Não teria me vingado de minha avó e de todos que me humilharam.

E quando Marcelo disse que era melhor a gente dar um tempo e não ‘forçar a barra,’ eu entendi que até mesmo para ele, eu nunca tinha sido importante. Eu entreguei a ele a minha virgindade, a minha alma, o meu corpo, o meu amor, a minha dignidade. Briguei com meus pais por causa dele. Enfrentei a fúria do meu pai por ele, e ele veio me dizer que achava melhor nos afastarmos por um tempo.

Berta… ela mantinha uma amizade comigo porque fazia uma bela figura junto aos seus amigos liberais e moderninhos. Dava a eles a impressão de que ela era não-preconceituosa, que não enxergava ‘diferenças,’ que não tinha nenhum problema com diferenças de classe social e que defendia algo que seus amigos moderninhos pregavam: a igualdade. Afinal, Os Panteras Negras, Martin Luther-King e Malcolm X estavam na moda! “Black was really beautiful!” Na hora de ficar ao meu lado, ela mostrou quem realmente era. Esqueceu-se rapidamente das vezes em que dançamos juntas noite afora, dos segredos que partilhamos, e de como era andar comigo de mãos dadas pelas ruas e atrair toda a tenção dos garotos mais bonitos, que só ficavam em público com ela, mesmo que me cobrissem de elogios, mas sempre me arrastavam para trás de algum muro. Afinal, eu era só a filha da empregada.

Dona Mirtes e ‘seu’ Nelson, os patrões de meus pais; aqueles que, quando chegavam, colocavam uma cama de armar no quarto das meninas para que eu fizesse companhia para elas e as distraísse, mas que quando iam embora, trancavam a casa à chave e recomendavam aos meus pais que não me deixassem brincar lá dentro. Quantas vezes eu quis assistir TV colorida e não pude! Ah, quantas vezes eu olhava para aquelas janelas trancadas e me lembrava daquela enorme banheira cheia de espuma, que eu não tinha autorização para usar!

E eles faziam questão de dizer a todos que éramos como se fôssemos da família… como se fôssemos… só que não éramos. Nunca fomos.

Não me lembro de nenhum deles tentando me encontrar quando eu fugi; não me lembro de nenhuma vez em que algum deles tentou interromper enquanto meu pai me batia. A não ser pela Yara. Nem sei se, após crescer e adquirir maturidade o suficiente, ela seria corrompida pelo mesmo preconceito da família, mas enquanto criança, Yara tinha o maior coração de todos. Durante os longos anos em que estive fora, era só nela que eu pensava, era só dela que eu sentia saudades.

Na verdade, antes mesmo de ir embora, fui escorraçada daquela casa. Proibiram minha entrada na sala. Todos esqueceram que eu existia. Nunca mais eu me sentei junto com a família. Só porque eu sorri, numa tentativa de ser gentil, para o noivo da patroinha. Dali em diante, ela me denominou “Cria da Casa.”  Mas o que mais me doeu, foi quando meus pais afirmaram que eu tentei seduzir Sebastian, o noivo da patroinha! Nem eles acreditaram em minha inocência. Talvez porque eu tinha fama de namoradeira. E eu era namoradeira sim. Eu me tornei aquilo que todo mundo esperava de mim. Era para trás de um muro que todos os meninos me levavam, e era para lá que eu achava que tinha que ir. Era ali que eles gostavam de mim, era ali que eu me sentia admirada. E mesmo eu só permitindo alguns amassos e beijos, eles saíam contando coisas que eu nunca tinha feito com nenhum deles, mas quem acreditaria em mim?

Eu cresci vendo Marcelo crescer, e acho que desde sempre eu fui apaixonada por ele. Mesmo quando ele não passava de um menino magro, alto e desengonçado, cheio de espinhas, eu já gostava dele. Ele só passou a me enxergar depois que eu fiquei mais velha, e ele também. Fomos apresentados um ao outro através dos nossos hormônios. Marcelo foi o meu primeiro homem, e eu fui sua primeira mulher. Perdi a conta das vezes em que ele afirmou que me amava, que era totalmente louco por mim e que se casaria comigo, e com nenhuma outra. Juramos amor eterno inúmeras vezes. Mesmo antes de fazermos amor. E eu acho que era sincero, pelo menos, eu achava. Era sincero da minha parte, e era sincero da parte dele também. A gente se amava. Mas Marcelo foi fraco, e teve medo do que os outros iam pensar, do que a mãe dele ia dizer – Aurora, aquela araponga empinada.

Fui embora, e aquela foi a melhor coisa que eu já fiz. Deixei para trás aquilo que todas as pessoas sempre me disseram, deixei de seguir o caminho que elas apontavam para mim, me recusando a caminhar por ele. Eu não deixaria que determinassem qual era o meu lugar. Fui procura-lo eu mesma.

Assim, quando deixei aquela casa apenas com a roupa do corpo e alguns trocados que eu economizara por anos da mesada que meu pai me concedia, segundo ele, para os meus alfinetes, eu fui parar direto na grande casa de fazenda de minha vó Helena. Ela nunca me vira, e eu nunca a vira. Pelo que percebi, os empregados sabiam da minha existência – deu para ver na expressão deles quando me apresentei como sendo neta de Dona Helena. Exigi que anunciassem a minha presença naquela casa.

Enquanto esperava em uma sala imensa, reparei no chão encerado e brilhante como espelho. Havia quadros nas paredes – pinturas que representavam a família em uma série de rostos que eu não conhecia, mas identifiquei características de meu pai, bem mais jovem, em um deles. Havia um que logo percebi serem de meus avós, juntos, ambos muito sérios. Ela tinha sido uma mulher bonita, mas de semblante frio. 

No centro daquela sala havia uma grande mesa com lugar para doze pessoas, e bem no meio dela, uma terrina de porcelana que parecia ser bem antiga. Era uma linda peça, e me aproximei para ver melhor, passando o dedo suavemente pela tampa onde estava retratada uma cena campestre. E foi assim que escutei a voz dela pela primeira vez, bem atrás de mim, me despertando com um susto, cortando o silêncio daquela sala, ecoando entre as paredes e indo bater no meu rosto feito um tapa.

-Quem é você? - ela disse. 

E eu me virei para encará-la. Uma mulher idosa, mas muito alta e de postura ereta, me fitava. Seus olhos azuis eram frios, e ela tinha cabelos totalmente brancos, presos em um coque na nuca. Engoli em seco, mas não perdi a coragem; empertiguei-me para encará-la, e respondi, sem tremor na voz:

-Sou Cristina, sua neta. 

Reparei no vestido preto que ela usava, de mangas compridas e abotoado até o queixo, apesar do tempo quente. Ela era magra e elegante, bem diferente do que alguém imagina sobre a avó que nunca conheceu. Helena era uma mulher forte. Uma mulher que não se dobraria facilmente, assim como eu, sua neta. Ficamos nos encarando longamente, até que ela finalmente disse:

-O que você quer de mim?

Sem hesitar, respondi:

-Conhece-la. Fiquei sabendo que estava viva há pouco tempo.

Ela pareceu relaxar um pouco, e fazendo sinal para que a seguisse, sentei-me ao lado dela em um sofá de assento de palhinha, muito antigo e desconfortável. Havia uma distância de mais ou menos um metro entre nós. Uma distância segura, eu diria. Helena olhava-me insistentemente, e o que ela estaria pensando era totalmente incógnito para mim. Seu rosto era inescrutável. 

Ela mexeu-se e alcançou um pequeno sino na mesinha ao lado do sofá, tocando-o levemente, e uma mulher de meia-idade apareceu:

-Jandira, traga-nos um refresco e algumas fatias de bolo. 

Jandira concordou com a cabeça e saiu em silêncio, sem me olhar. 

Lá fora passarinhos cantavam, e o sol estava alto. Dentro da casa, uma penumbra e um silêncio sepulcrais. A luz do sol entrava pelas frestas das venezianas fechadas, e por uma banda de janela entreaberta do outro lado da sala. Jandira voltou, depositando uma bandeja com suco e fatias de bolo na mesinha em frente a nós. Helena ficou me olhando, e ordenou que ela saísse, e depois disse para mim, secamente:

-Sirva-se. 

Agradeci, e com toda a sede do dia anterior, no qual viajara de ônibus a noite toda para chegar ali, enchi o copo duas vezes, mas não consegui comer nada, apesar da fome que sentia. Minha garganta estava seca, e eu sabia que não conseguiria engolir. Quando depositei o copo de volta na bandeja, ela falou novamente, e desta vez, a voz estava mais controlada e quase gentil:

-Seu pai telefonou para mim ontem, após tantos anos... confesso que foi estranho ouvir a voz dele. 

Fiquei surpresa ao saber do telefonema de meu pai.

-Ele me disse que talvez você aparecesse aqui, e me pediu para recebê-la em minha casa. Eu pensei muito. Decidi, a fim de resgatar os nossos últimos anos de distância, aceitar o pedido dele. Afinal, ele nunca me pediu nada, depois que... depois que ele foi embora desta casa. 

Tomei um gole de suco, tentando aliviar a secura na minha garganta. Minha avó me fitava insistentemente, sem a menor discrição. Pousei o copo de volta na bandeja, após esvaziá-lo. Não sabia muito bem o que dizer a ela, e tive a impressão de que estava sendo tão difícil para ela quanto para mim. Eu só tinha certeza de uma coisa: precisava convencê-la a me deixar ficar, pois eu não tinha para onde ir, nem dinheiro para pagar um lugar onde ficar. Mas ela mesma me poupou o esforço:

-Seu pai me contou sobre você. Disse que é muito impulsiva, exatamente como ele costumava ser. Engraçado como a história se repete! Você, apaixonada pelo patrãozinho branco...

Os olhos dela pareceram se perder de repente em recordações que eu não alcançava, e eu vi dor neles, por isso deixei passar a ofensa. Ela continuou:

- Vítor... - seu avô – era um homem muito severo e muito ligado em tradições. Sempre preocupado com o que a sociedade iria dizer. Quando nos casamos, eu era apenas uma menina tola e apaixonada pelo belo homem bem mais velho e de aparência forte, e foi melhor que eu estivesse apaixonada, pois meu pai já havia decidido que eu me casaria com ele. Ele determinava as ordens na casa. Ele expulsou seu pai daqui, e minha única alternativa, foi concordar. 

Sem saber bem o motivo, perguntei:

-Vocês foram felizes?

Ela respirou findo antes de responder, e sem me olhar, disse:

-E o que significa ser feliz? 

Só então ela me sorriu muito levemente. Eu encolhi os ombros, e não respondi, pois notei que ela não esperava uma resposta. Minha avó tocou novamente o sino, e Jandira voltou à sala, parando junto dela e aguardando as ordens. Minha vó disse:

-Prepare o quarto de hóspedes. O azul. 

E virando-se para mim, determinou:

-Você vai ficar comigo. Vai morar aqui, mas terá que trabalhar para se manter. A escola fica muito longe daqui, então contratei um tutor para ensiná-la aqui em casa a partir do próximo semestre. Estudará de manhã e trabalhará na casa durante a tarde. Fará o que lhe for mandado, e não questionará nada, entendeu?

A ideia de ficar presa naquele lugar ermo, sendo uma empregada, me apavorou. Eu não queria nada daquilo para mim. Eu queria a chance de ter uma vida diferente, uma vida melhor. Não queria voltar a ser uma empregadinha. Levantei-me:

-Agradeço, mas não vou ficar. Só queria conhece-la. 

Ela me olhou da cabeça aos pés, e após algum tempo, sem levantar-se, comentou:

-Você é mesmo muito bonita. Muito mais bonita do que seu pai me falou. Uma moça como você não pode ficar por aí, à toa. Logo será uma garota perdida na vida. Sente-se.

Não costumo obedecer a ninguém, mas eu me sentei. Minha face queimava, e minha garganta doía do esforço que eu fazia para não chorar na frente dela. 

-Você será o meu resgate. Sou uma mulher velha, e já cometi muitos erros na vida. Você é a oportunidade que Deus está me oferecendo de resgatar a minha entrada no paraíso, que pode ter certeza, não demorará muito mais tempo. Só por isso eu a deixarei ficar aqui em minha casa. Não pense que nutro por você qualquer tipo de afeto. Todo o amor que eu sentia foi-se embora desta casa no dia em que seu pai... meu filho... se foi com aquela... aquela...

Os lábios dela tremeram.

- Agora vá. Parece cansada, e precisa de um banho. Logo será chamada para que aprenda suas novas funções. Jandira estará no comando, e você deve obedecê-la em tudo. 

-E o que eu ganho com isso?

Ela se levantou, e mesmo que eu também tivesse me levantado, ela era bem mais alta que eu, e sua aparência era intimidadora. Ela ergueu o tom de voz, e o que disse ecoou pelas paredes da sala:

-O que você ganha? Casa. Comida, instrução. Um nome. Mas um teto sobre sua cabeça já seria o suficiente. Porém, nesta casa todos trabalham, pois ninguém come de graça. E você não será nenhuma exceção.  

Após um minuto de silêncio, ela voltou a falar no tom de voz normal, que era frio e decidido:

-Todos os empregados aqui já devem saber quem você é (ela ergueu a voz); Eles tem mania de escutar atrás das portas. (Nesse momento, ouvi um leve farfalhar e passos que se afastavam da porta da cozinha). Mas todos eles sabem também que você não é mais importante que nenhum deles, portanto, trate de se enturmar, se é que me entende. 

(Continua...)




segunda-feira, 27 de maio de 2019

INOCÊNCIA - PARTE I, CAPÍTULO XXI






LOUCURA

Na noite em que celebramos o nosso noivado – um jantar na nossa própria casa, com a presença de meus pais e de Berta e seu marido – minha mãe fazia um enorme esforço para mostrar-se feliz, mas quando eu a segui até a cozinha, encontrei-a sentada no chão junto ao fogão, chorando muito. A cena, ao invés de me deixar comovida, me aborreceu e escandalizou. Tentei controlar as minhas palavras, mas acabei perdendo a cabeça: 

-Parece que você não está muito feliz, mamãe. Seria porque sua filha mais nova vai casar-se ou porque ela está para fazê-lo com o seu amante?

Minha mãe ergueu-se do chão com um salto, e postando-se diante de mim, pela primeira e única vez, ela me bateu no rosto duas vezes. A fúria nos olhos dela mexeu mais comigo do que os tapas em si. Ela era a minha mãe, e poderia ter me batido por qualquer motivo, e eu a teria perdoado, mas não por estar com inveja de mim. Aquilo, eu jamais poderia perdoar. Devolvi o tapa, o que a deixou perplexa e totalmente sem ação, e então, juntando todas as minhas forças para não chorar enquanto falava, deixei que as palavras que estavam engasgadas há anos saíssem bem devagar, em voz  
baixa e controlada:

-Não se pode ter tudo, mãe. Você já tem o papai. Você teve a nós. Tem esta casa. Não é o suficiente? Quer ter também o melhor amigo de papai na sua cama?

Parei para tomar fôlego, e continuei: 

-Ele será meu marido! E não há nada que você posa fazer para impedir. Não vê que já está velha e que logo estará feia? Posso dar a ele toda a minha juventude! Posso dar a ele filhos. E você, o que tem para dar? Seus anos de velhice e depressão?

Minha mãe deixou que as lágrimas caíssem livremente, e sua respiração estava difícil. Achei que fosse me bater novamente, mas ao invés disso, ela virou-se de costas para mim, abrindo a geladeira e pegando a sobremesa e colocando-a nas minhas mãos: 

- Leve isto para a mesa, por favor.

Eu não estava preparada para aquela reação. Ainda fiquei de pé ali na cozinha, olhando as costas dela, que estavam envergadas, e sua respiração entrecortada. Minha mãe estava apoiada com as duas mãos sobre o mármore da pia, e vi que não tinha feito as unhas. Ela, que sempre tomara muito cuidado com a aparência pessoal, parecia ter envelhecido muitos anos. Estava magra, os cabelos brancos apareciam nas raízes, as unhas não estavam feitas, e ela usava um de seus vestidos antigos. Há muito tempo não comprava nada novo para si mesma. Percebi que ela passara todos aqueles anos amargurada com a doença de papai, e que realmente dedicara-se a salvá-lo e a dar-lhe conforto. Pensei no peso que ela deveria estar carregando, e no quanto estaria se sentindo triste. Achei-me cruel demais; quem sabe, ela tivesse mesmo precisado de uma válvula de escape? Nunca nenhum de nós perguntou-lhe se ela estava bem; nunca ninguém perguntou a ela se queria que a substituíssemos no hospital por uma noite. Nunca. Talvez Duílio tenha sido o único a realmente olhar para ela, e enxergá-la. Dei um passo adiante, na direção dela. Eu queria abraçá-la e pedir perdão. Eu queria apenas que tudo voltasse a ser como era antes, como sempre tinha sido antes. Eu queria a minha mãe de volta; coloquei a travessa sobre a mesa da cozinha, e esperei, tentando tomar coragem para fazer o que desejava.

Murmurei, enquanto erguia a mão em direção aos ombros dela: 

-Mãe, eu...

Mas ela me interrompeu, e sem me olhar, gritou alto: 

-Vá! Vá agora!

Meu coração deu um salto, e depois parou dentro do peito. Sai da sala e tranquei-me no banheiro para chorar. Quando cheguei à sala de jantar, a sobremesa estava na mesa, e todos estavam calados. Minha mãe não estava lá; tinha ido descansar, pois tivera uma súbita dor de cabeça. Do outro lado da mesa, Berta me fuzilou com os olhos. Uma questão surgiu em minha cabeça: será que ela sabia? Da maneira como Berta me olhou, compreendi imediatamente que sim, ela sabia. Todos ali sabiam, de alguma forma. Eu tinha sido a última a saber.

Duílio, constrangido, olhava para o prato diante dele. Meu pai respirou fundo, e pegando sua tigela, serviu-se da ambrosia. O resto da noite foi um festival de silêncios entrecortados por comentários forçados feitos por Sebastian e por Tia Aurora. Às vezes, só por gentileza, alguém os respondia. Parecia que o mundo todo estava conspirando contra a minha felicidade, contra mim e contra Duílio. Todos eram frios conosco, até mesmo papai, que eu tanto amava. Flora entrava para substituir alguma travessa e nem sequer me olhava.

O jantar foi um verdadeiro fiasco. Quando todos se foram, pedi a Duílio que passasse a noite, mas ele achou melhor ir embora e ficar em um hotel. Seria constrangedor demais permanecer ali, já que tinha a impressão de que a família não aprovara nosso noivado. Em nenhum momento ele mencionou minha mãe ou seu possível caso com ela. Agia como se nada tivesse acontecido entre eles. E eu, que não podia sequer cogitar a hipótese de perdê-lo, fingia não saber de nada também. Ele logo seria meu, e o tempo consertaria tudo e curaria todas as feridas. Enquanto estivéssemos todos fingindo, nada de mal poderia acontecer.

Eu estava apenas indo contra as convenções e pegando com as mãos aquilo que eu queria.

Mas não consegui ir adiante.

Alguns dias após o meu noivado, ao ver minha mãe cuidando de meu pai, que tivera uma recaída, com tanto amor e dedicação, cheguei à conclusão que homem nenhum do mundo poderia destruir o relacionamento entre uma mãe e sua filha, ou entre toda uma família. Minha mãe, combalida e pálida, alimentava meu pai com uma colher e um prato de sopa. Eu estava passando pelo quarto deles quando vi a cena pela porta entreaberta. Ele dizia que estava satisfeito, e ela, brincando com ele, fazia com que ele conseguisse comer apenas mais uma colher. Aquilo era amor. Não poderia ser outra coisa. De repente, comecei a sentir um medo enorme de ter que, um dia, fazer aquilo por Duílio, e a constatação de que talvez eu não conseguisse, fez com que um sino soasse dentro da minha cabeça. Eu estava apaixonada por ele, e ele por mim. Mas compreendi que eu não o amava de verdade. Compreendi que, sendo tantos anos mais nova que ele, certamente entregaria a ele os melhores anos da minha juventude. E o que ele poderia me dar de volta? Um homem que é capaz de amar, ao mesmo tempo, uma mãe e sua filha, colocando-se no meio de uma família onde o protagonista daquela traição é seu melhor amigo, mereceria aquele tipo de dedicação?

Aquele pensamento tomou conta de minha cabeça durante dias. Duílio estava em viagem de negócios então, e me peguei constatando que nem sequer sentia tanta falta dele assim. Era como se Duílio fosse um brinquedo que eu, uma criança mimada, desejasse muito, mas que ao consegui-lo, perdesse o interesse.

Naquela noite, eu conversei com meus pais e disse que ia desmanchar o noivado. Disse a eles que nada poderia ser maior do que o meu amor por eles. Nós nos abraçamos e choramos. Minha mãe perguntou se era aquilo mesmo que eu queria, e que para ela, tudo o que importava, era que eu fosse feliz. Já à sós na cozinha, quando papai já dormia, ela me confessou que tinha se apaixonado muito por Duílio, mas que nunca tivera nada com ele, a não ser alguns beijos e abraços, e longas conversas estressantes. Disse que eu precisava saber daquilo, pois talvez a informação me fizesse mudar de ideia e casar-me com ele. Disse também que ela nunca deixara de amar meu pai, e que desde o início, jamais escondera nada dele. Meu pai guardara aquele segredo por anos e anos, pois não queria destruir a família. Além disso, amava mamãe e não queria perdê-la. No fundo, ele sabia que não viveria mais muito tempo, e queria que ela tivesse a chance de ser feliz com outra pessoa, e Duílio era um bom homem.

Da última parte, eu duvidava. E mais tarde, saberia que eu estava certa: Duílio não era um bom homem, nem um amigo verdadeiro. Depois que desmanchei o noivado com ele, fiquei sabendo que ele não tinha qualquer escrúpulo ou respeito pelas mulheres.

Quem me contou? Cristina. Deixo agora esta narrativa nas mãos dela.


FIM DA PRIMEIRA PARTE, NARRADA POR YARA.

NA PARTE II, NARRADA POR CRISTINA, SABEREMOS O QUE ACONTECEU COM ELA E A CONCLUSÃO DA HISTÓRIA.


segunda-feira, 20 de maio de 2019

INOCÊNCIA - Parte I Capítulo XX








O CONFRONTO

Antes que eu respondesse, mamãe entrou e sentou-se na beirada da cama. Encolhi as pernas, pois pensei que se ela me tocasse, adivinharia o que tinha acontecido, e como. Me olhando de soslaio, minha mãe respirou fundo, como se estivesse pensando em uma maneira de me abordar:

-Onde você esteve?

Tentei sorrir, sentindo o rosto pegar fogo:

-No trabalho, ora!

Ela sacudiu a cabeça:

-Seu chefe ligou. Queria desejar-nos os pêsames pela morte de minha mãe. Achei estranho, já que ela morreu há muitos anos. O que está acontecendo, Yara?”

Abri a boca a fim de elaborar uma resposta, mas a minha cabeça ficou vazia de repente, e eu não consegui dizer nada, a não ser balbuciar palavras desconexas. Minha mãe correu os olhos sobre mim; notou meu rímel borrado, o penteado incomum e sofisticado, as unhas pintadas de vermelho – cor que eu jamais usava. Talvez ela tivesse notado também o cheiro de colônia masculina que tinha sido esfregada a tarde toda sobre  a minha pele. As mães sabem. Não me perguntem como, mas elas sempre sabem.

Ela pareceu sem graça por algum tempo, enquanto balançava a cabeça quase imperceptivelmente, e um sorriso dolorido quase se desenhou nos cantos de seus lábios:

-Você cresceu… eu… eu só espero que tenha sido com o Fernando.

Arregalei os olhos e a boca. Ela saiu do quarto, fechando a porta bem devagar.

Naquela mesma noite, telefonei para Fernando dizendo que eu pensara bem, e que achava melhor desmancharmos o namoro. Minha mãe ficou furiosa quando soube, no dia seguinte de manhã. Disse sentir-se enganada, e quis saber com quem eu estivera no dia anterior, e eu apenas neguei tudo, e disse que provavelmente meu chefe tinha cometido um engano terrível.

Fernando ficou muito magoado, e depois, furioso, desligando o telefone na minha cara. Nunca mais eu o vi. Lamentei tê-lo magoado, mas o que mais eu poderia fazer? Em breve, me casaria com Duílio. Pelo menos, era naquilo que eu me forçava a acreditar.

No final de semana, ao visitar Berta, ela me perguntou o que andava acontecendo, dizendo que mamãe pedira a ela que conversasse comigo. Fiquei zangada e decepcionada por minha mãe ter partilhado um segredo meu com minha irmã sem a minha autorização, mas Berta me disse que era melhor do que se ela tivesse contado tudo a papai. Tive que concordar com ela. A nossa conversa foi curta, pois logo chegou uma amiga nova de Berta, sobrinha de Lourdes, que eu simplesmente detestava. O seu nome era Luísa. Durante a nossa conversa, apenas confessei a ela que já não era mais virgem, e que tinha sido maravilhoso, mas que ainda não podia dar mais nenhum detalhe. Berta escandalizou-se; afinal, tinha se casado virgem. Aquelas coisas ainda eram muito importante no final dos anos setenta. Ela insistiu, pedindo mais detalhes, mas a chegada de Luísa salvou-me.

Luísa era uma mulher grudenta e falsa, que cobria Berta de elogios e tentava a todo custo conseguir um pouquinho do ar carbônico que ela exalava. Eu dizia a ela que tomasse cuidado com Luísa, mas Berta achava que eu estava com ciúmes. Acho que Luísa era a fornecedora de elogios mais próxima de Berta, agora que estava casada e os cuidados com os gêmeos tomavam quase todo o seu tempo. Além de tudo, Luíza não gostava de mim, ficando de cara amarrada toda vez que eu me aproximava de minha irmã. Depois que as duas se conheceram, eu e Berta passamos a discutir muito e tivemos algumas brigas, e eu poderia jurar que eram por influência de Luísa e de seus ciúmes. Ela era possessiva e não gostava de dividir a atenção de Berta com ninguém. Antes de ir embora, cumprimentei Luísa friamente e pedi a Berta que não comentasse com ela a minha vida particular.

No final de semana, Duílio nos visitou. Ao me ver, senti que ele corou, ficando muito sem graça, e enquanto conversava com meus pais, evitava a todo custo me olhar. Fiquei achando que a atitude dele logo o entregaria, pois estava constrangido, gaguejando e corando sob qualquer pretexto. Distraído, Duílio não conseguia manter-se dentro da conversa, e o jantar foi um evento constrangedor para todos. Quando ele finalmente desculpou-se e ocupou o quarto de hóspedes, mamãe comentou com meu pai:

-Qual o problema com ele?

Meu pai, que estava sentado em sua poltrona no escritório, após terminar seu drink, deu uma baforada em seu cachimbo e olhou-a com ar indiferente, dizendo: “Acho que mulheres… nada da nossa conta.” Vi que minha mãe franziu as sobrancelhas, e saiu do cômodo pisando duro. Reconheci naquele gesto uma cena de ciúme, e me lembrei de quando dançara com Duílio no casamento de Berta, e do olhar irritado de minha mãe naquela noite.

Naquele momento, a minha ficha caiu: minha mãe era a outra mulher de Duílio! Só poderia ser ela a outra mulher! Todos aqueles cursos em horários variados, que a mantinham fora de casa durante horas no meio da tarde, irritabilidade constante, as crises depressivas. Minha mãe estava tendo um caso com o sócio de meu pai! E será que meu pai sabia de tudo? Eu notara que o clima entre os dois esfriara bastante nos últimos meses. Os dois só se falavam quando estritamente necessário. Como eu podia não ter percebido os sinais?

Diante daqueles pensamentos, que eu tentava empurrar para algum lugar seguro no meu subconsciente, onde eu jamais voltaria a acessá-los, as coisas iam ficando cada vez mais claras apesar de tudo, e a verdade se desenhava. Duílio me falara de uma mulher muito mais velha que eu, e que a situação entre os dois era complicada demais; além de sentir-se dividido entre nós duas, havia o fato de que tal mulher era comprometida com outro homem. Essa mulher só podia ser a minha mãe. Aquele pensamento era tão terrível, que eu me recusava a lidar com ele. Depois que o tive, tentei não mais trazê-lo à tona, mas também nunca mais consegui amar minha mãe, mesmo sabendo que tudo poderia não passar de uma fantasia da minha parte. A presença dela me irritava. Passei a tratá-la com frieza. Não conseguia me aproximar dela, ou sequer mantínhamos uma conversa longa sem que uma das duas acabasse agredindo a outra. Um enorme poço cavou-se entre nós duas, e a situação causava pânico e desconforto. Eu só me perguntava se minha mãe sabia que eu era a outra.

Mas Duílio não era um homem para se perder. Ele era lindo, gentil, cavaleiro, doce, esbanjador, galanteador, apaixonado, forte, excelente amante, daqueles que fazem uma mulher perder completamente o senso e gritar a plenos pulmões de tanto prazer, não importa quem esteja no quarto ao lado. E eu não via perdê-lo como sendo uma alternativa, uma possibilidade. Eu não sabia que poderia aguentar absolutamente tudo para tê-lo ao meu lado, até mesmo dividi-lo com minha própria mãe, e fingia que ele precisava de mais tempo para resolver tudo de forma cavalheiresca.

Acho que Duílio era um excelente advogado justamente porque sua aparência digna era capaz de convencer qualquer jurado e qualquer juiz de qualquer coisa; ele tinha o dom da verdade, de usar a verdade e distorcê-la e dobrá-la até o limite e transformá-la naquilo que ele quisesse. Duílio não mentia: ele fortalecia, nos outros, as suas próprias verdades. Ele escrevia uma nova história a cada momento, de forma que sempre, tudo o que dizia, era exatamente a coisa certa. E ao final de cada história, seu interlocutor, antes irado ou decepcionado, dizia a si mesmo, 

-Como posso ter pensado daquela forma? Como posso ter sido tão injusto com esta pessoa tão digna, tão forte e tão boa?

Eu e Duílio continuamos nos vendo às escondidas por mais de um ano. Eu jamais tinha coragem de confrontá-lo quanto à sua ‘outra mulher,’ com quem ele jurava ter terminado tudo, mas eu sabia que não era verdade. Eu não queria espantá-lo de vez para longe de mim, e apesar da minha aparente maturidade, não passava de uma menininha assustada que não tomava uma atitude porque não saberia lidar com suas possíveis consequências.

Meu relacionamento com minha mãe era uma verdadeira geleira; mal nos falávamos, e eu sabia que aquilo a fazia sofrer, tanto quanto eu estava sofrendo, ou mais ainda. Mas mesmo depois que eu cortei relações com ela, ainda enganava a mim mesma, dizendo que o fizera porque ela tinha traído meu pai, quando a verdade era bem outra.

Enquanto isso, Marcelo e Cândida se casaram – um grande evento em Rio da Prata. Por mais que Cândida estivesse luxuosamente vestida, penteada e maquiada, e apesar das joias caríssimas que usava, eu olhava para ela e só conseguia enxergar uma jovem extremamente apagada, que não fazia por merecer o lugar ao lado daquele belo homem que Marcelo se tornara. Ela não era a mulher da vida do meu primo. Será que ninguém mais enxergava aquilo, será que a própria Cândida não percebia que ele não a amava? Durante a cerimônia, eu ansiava que Cristina entrasse na igreja de repente e acabasse com toda aquela farsa, o que não aconteceu. Tia Aurora andava para lá e para cá, ajeitando o véu da noiva, segurando os “Pombinhos” pelas mãos durante a festa, para que ficassem sempre juntos para as fotografias, distribuindo lembrancinhas, sorrisos a todos e elogios à sua “Querida nora.” Enquanto isso, eu via Marcelo engolindo em seco e olhando em volta como se procurasse algum lugar por onde escapar dali.

Meu pobre primo.

Ainda comentei com Joana: 

-Ele não parece feliz!

Ela me olhou séria, e respondeu com um tom de crueldade na voz: 

-Você acha que ele teria sido mais feliz se tivesse se casado com a filha da sua empregada negra? 

Depois daquilo, eu me afastei dela, magoada. Nossas conversas depois daquele dia foram todas monossilábicas e frias. Apenas nos cumprimentávamos, pois não havia outro jeito.

É claro que Flora e Eugênio não tinham sido convidados para a festa. Compareceram à cerimônia na igreja, pois meus pais insistiram com Tia Aurora para que não os deixassem de fora, e após muito custo, ela acabou concordando, convencida pelo próprio argumento de que se não os convidasse, daria espaço para especulações sobre o passado do filho.

Nossa casa tornou-se um lugar silencioso e escuro, bem diferente do que costumava ser. Mamãe passava horas trancada no quarto sob o efeito de sedativos; Flora e Eugênio só entravam na casa para limpar ou servir as refeições, sempre se dirigindo a nós com cerimônia e distância. Meu pai ficava sempre em seu escritório, e só nos reuníamos para almoçar e jantar – quase sempre, em silêncio. Eu amava muito meu pai, e vê-lo tão triste me magoava. E na minha cabeça, a minha mãe era culpada por tudo aquilo. Mas havia coisas das quais eu não sabia, e que viria a descobrir da pior forma possível.

Um ano mais tarde, fiquei sabendo que a doença de papai voltara há meses, mas ele não queria que ninguém soubesse, e não havia mais como tratá-lo ou como adiar o seu inevitável fim. Jamais me esquecerei do dia em que entrei em seu escritório e o encontrei se contorcendo de dor. Ele não percebeu minha presença. Assustada, corri até ele e tentei ajudá-lo, mas ele me afastou, dizendo que era apenas uma dor na coluna. Mas ao dizer aquilo, meu pai fez uma careta de dor e tombou no chão. Tentei segurá-lo, mas tudo o que consegui, foi amortecer sua queda. Gritei por socorro, e Flora e Eugênio entraram correndo, seguidos de minha mãe.

Nunca me senti tão sozinha quanto naquele dia. A ambulância chegou, levando-o embora. Minha mãe foi junto com ele, e não voltaria para casa durante meses, ficando hospedada em um hotel próximo ao hospital. Eu estava com 22 anos de idade então. Meu pai ainda viveria por mais três anos, indo e voltando de hospitais. Apesar de sua decisão de não se tratar, ele foi obrigado, por minha mãe, a tentar mais uma vez. E eu me reaproximei dela naquela época, pois via o quanto ela sofria e definhava ao lado dele, não permitindo que ele desistisse.

E de repente, no pior momento da minha vida, um sonho realizou-se; Duílio me disse que antes que meu pai se fosse, gostaria de contar a ele tudo sobre nós dois, e casar-se comigo. Alegou que não poderia deixar que seu melhor amigo fosse embora sem lhe contar toda a verdade. Afinal, devia isso a ele, que o acolhera na firma em um momento muito difícil de sua vida, e dera-lhe todo o apoio, tanto como sócio quanto como amigo. Queria casar-se comigo com as bênçãos de meu pai.

E foi em uma das remissões de meu pai que Duílio contou a ele que nós nos amávamos há anos, e que ele queria casar-se comigo com a bênção dele. Meu pai, que naquele momento estava sentado no sofá da sala, as pernas cobertas por uma manta axadrezada, olhou-nos sem qualquer surpresa ou ressentimento, e balançou a cabeça, concordando: 

-Eu acho que você fez a escolha certa, meu amigo.

Minha mãe, lívida e pálida, levantou-se do sofá e saiu da sala. Entendi que meu pai estava vingado pela traição dela.

É claro; quando Tia Aurora soube, ela alegou que aquilo seria um escândalo; 

-Onde já se viu - disse ela  - uma menina casar-se com um homem mais de vinte anos mais velho que ela? O que todos iriam dizer?

Mas meu pai foi firme em seu apoio a nós. Berta também não ficou feliz por nós, e tivemos uma grande discussão que fez com que ficássemos sem nos falar por mais de um mês. Mais tarde, a conselho de meu cunhado, ela me procurou e pediu-me desculpas. Joana não manifestou qualquer opinião a respeito, e nem poderia, já que não nos falávamos. Flora me olhou longamente, e após chorar um pouco, me desejou felicidades. Finalmente, ela quebrou seu gelo de anos, e me abraçou, chamando-a de “Minha garotinha.”

Fiquei conhecendo meus sogros, já bastante idosos, e os dois não poderiam ter sido mais frios e cruéis. Em sua grande mansão, me receberam em silêncio, fazendo questão de demonstrar que não concordavam nem um pouco com a escolha do filho. Saí de lá arrasada após um jantar que demorou tempo demais, o mais longo de minha vida. Se não fosse pela força que Duílio me passou, eu teria me quebrado ao meio diante daqueles dois. Foram polidos, porém frios, incisivos em suas indiretas e ofensas pessoais, destilando veneno da maneira mais torpe e dolorosa: educadamente. Pensei que, como eram velhos, logo morreriam, e eu não teria de conviver muito com eles.

(continua...)





terça-feira, 14 de maio de 2019

Inocência - Parte I - Capítulo XIX







CIÚMES

Não foi difícil conseguir namorar Fernando. Ele era louco por mim. Nós nos conhecíamos desde os tempos de escola – ele era o menino por quem eu pensara estar apaixonada quando era mais jovem. Hoje, quando penso nele, me arrependo de tê-lo usado para fazer ciúmes em Duílio, pois Fernando era um rapaz maravilhoso, e bonito também.

Nós começamos a ‘namorar sério’ após um mês, e Fernando começou a frequentar a minha casa e os jantares com meus pais. Em alguns deles, Duílio esteve presente, e notei que ele se sentia um tanto embaraçado quando eu flertava com ele na frente de todos – inclusive, de Fernando. Ninguém jamais percebeu minhas investidas, pois meus pais jamais imaginariam que eu estivesse apaixonada por “Tio” Duílio, ou que tivéssemos quase chegado às vias de fato algumas vezes. Para eles, eu ainda era a filha inocente, a caçula, e nada mais.

Após aqueles jantares, eu me jogava em cima de Duílio depois que Fernando saía. Certa vez, esperei que meus pais fossem dormir (ele estava passando a noite em nossa casa) e fui até o quarto de hóspedes, que ficava no primeiro andar da casa. Aquela era a primeira vez que me atrevia a fazer aquilo, com meus pais dormindo no andar de cima. Entrei sem bater, e deitei-me ao seu lado. Duílio estava profundamente adormecido. Deixei-me ficar ali, desfrutando da presença dele durante algum tempo, me imaginando como sua esposa, dormindo ao lado dele, como um casal normal. Depois, atrevida, descansei meu braço sobre o abdômen dele, deitando a cabeça em seu peito. Aos poucos, passei a minha perna em volta das pernas dele, abraçando-o com mais força.

Duílio despertou, e assustou-se. Eu disse a ele que fizesse silêncio, ou meus pais acordariam e veriam a cena. Quando penso naquela noite, vejo o quanto fui atrevida, infantil e inconveniente. Duílio tentou, aos sussurros, me colocar para fora do quarto, mas eu me recusei a sair, dizendo que só iria embora depois que ele me desse o que eu queria. Ele me chamou de louca, dizendo que aquilo era um absurdo. Sentei-me na cama, e disse a ele que se ele não me abraçasse, eu gritaria. Que já não me importava mais que todos ficassem sabendo.

Ele se recusou e eu dei uma imitação de um pequeno grito, leve, mas ouvimos ruídos no andar de cima, e vozes abafadas. Ficamos em silêncio, sem nos movermos, até que o ruído terminasse. Ele me chamou de louca mais uma vez. Perguntou-me por Fernando: o que eu pensava dele? Por que o estava namorando? Respondi que ele já sabia, já tinha a resposta. Duílio, que estivera de pé junto à porta, e andando de um lado ao outro do quarto, voltou para a cama, sentando-se ao meu lado. Perguntei a ele se ele não sentia nada por mim: 

-Se você disser, com todas as letras, que não sente nada por mim, eu nunca mais vou perturbar você.

Ele ficou calado durante muito tempo. Depois, me olhou e disse:

-Eu não posso, Yara. Não me pergunte porque, mas eu não posso dar a você o que procura. Estou dividido. Não acho justo, não é certo.

-Você tem outra mulher?

Meu coração quase parou ao ouvir a resposta:

-Sim, tenho. E estou apaixonado por ela.

-Mas você disse que está dividido! Entre ela e eu?

Ele concordou com a cabeça.

-Mas se você dá a ela o que não dá a mim, não é justo! Como pode saber o que quer, se não tiver comigo o que tem com ela? Precisa me dar uma chance, Duílio! Precisa me amar! E então, se depois disso você resolver que é a ela que você quer, eu juro que me afasto, e nunca mais me aproximo de você desta forma. Só quero ter os mesmos direitos que ela, as mesmas chances...

-Mas você é virgem! Não quero prejudicá-la!

Levantei da cama, impaciente:

-Seu excesso de pudor me enfurece! Já tenho dezenove anos e sei o que quero. Se ainda sou virgem, é porque estou me guardando para você!

Comecei a chorar, me sentindo humilhada e impotente. Os soluços me sacudiam. Minha vida era uma mentira: namorava um rapaz de quem eu não gostava, e com quem jamais me casaria. Duílio passou um braço em volta de mim, me puxando para perto dele:

-Yara, minha Yara… não queria que você sofresse.

-Então me dê o seu amor! Nem que seja só por esta noite, para que eu tenha algo que eu possa lembrar… quero que a minha primeira vez seja com você, Duílio.

-Não é justo… aqui, não… não podemos fazer isso sob o mesmo teto ocupado por seus pais, Yara!

-Que seja no inferno, então. Ou no céu. Não me importo.

Ele me disse então que iria embora no dia seguinte, mas que alugaria um quarto de hotel no Rio de Janeiro. E que assim que ele chegasse lá, e preparasse tudo, entraria em contato comigo. Mandaria um táxi me buscar. Dizendo aquilo, ele me beijou demoradamente. Nós nos tocamos de novo, e foi muito intenso. Ainda ficamos juntos quase até o amanhecer, e saí dali exultante, de volta ao meu quarto.

Eu procurava limitar meus encontros com Fernando aos finais de semana, pois apesar de gostar de estar ao lado dele como amigo, não sentia nada profundo por ele. Não o amava. Alegava que durante a semana eu me sentia cansada por causa do trabalho. Eu tinha começado a trabalhar como datilógrafa em um escritório na parte da tarde, além de lecionar de manhã, e tinha meu próprio dinheiro, mesmo que papai insistisse em continuar me dando uma mesada, e por isso, tudo o que eu ganhava com meu trabalho, colocava em uma caderneta de poupança – principal fonte de investimento dos anos setenta.

Fernando era doce e gentil. Às vezes, ele tentava avançar o sinal comigo, mas eu o repelia, dizendo que só faria aquilo depois de estar casada, o que era uma grande mentira: eu só queria fazer aquilo com o homem que eu realmente amava. Ele considerava a minha decisão uma forma de mostrar decência, e aquiescia. Achava que eu estava me guardando para nosso momento mais importante, e nem sequer imaginava que eu jamais estaria casada com ele. Nunca tivera aquela intenção. E quando Fernando me pediu em noivado, eu fiquei estarrecida. Não esperava por aquilo.

Estávamos namorando há apenas oito meses. Eu tinha acabado de completar dezenove anos, e pretendia fazer faculdade de Letras. Mamãe achava aquilo uma bobagem, pois para ela, o intuito de uma mulher deveria ser casar-se e constituir família. Ter filhos e cuidar de uma casa – e do marido. Quando eu disse a ela a minha intenção, quase tivemos uma briga. Mas papai apoiou a minha decisão.

Eu disse a Fernando que pensaria sobre o nosso noivado, que conversaria com meus pais. Na verdade, fui conversar com Duílio.

Dois dias depois que ficamos juntos na casa de meus pais, ele me telefonou no escritório. Não tínhamos permissão para receber telefonemas, mas uma colega me substituiu e conseguiu me passar a ligação, me dizendo que fosse rápida. Ele queria que eu fosse estar com ele naquela mesma tarde. Mandaria o táxi para me buscar na hora do almoço, e eu deveria voltar para casa no início daquela noite. Desliguei o telefone, indo até o escritório do meu chefe  dizendo que minha avó adoecera, e que eu deveria visitá-la no hospital naquela mesma manhã, antes o almoço. Ele me liberou do trabalho, e ainda me desejou boa sorte.

Entrei no táxi, e meu coração estava aos pulos durante todo o percurso. Duas horas depois, chegava ao hotel onde Duílio estava me esperando. Saí do táxi, e logo o vi à porta, e ele veio me receber. Entramos no elevador do Copacabana Palace e subimos em silêncio até o sexto andar, entre pessoas estranhas que falavam alemão. Nós nos olhávamos sem parar, sem conseguirmos disfarçar a nossa ansiedade. Diante da porta do quarto, ele me perguntou se era aquilo mesmo que eu queria, e eu respondi com um beijo.

Aquelas três horas que passamos juntos foram as melhores de toda a minha vida! Dei-me a ele como jamais me entreguei a nenhum outro homem – nem mesmo ao meu marido, anos depois. Nós fizemos amor várias vezes, e foi melhor a cada vez. Duílio me amou apaixonadamente, loucamente, Às vezes, se esquecendo da doçura e tornando-se quase selvagem. Eu o correspondia da mesma forma, às vezes sendo doce, e em outras, tão selvagem quanto ele. Nunca havia pensado que poderia ser tão bom. E nunca mais seria. Nós tínhamos sede um do outro, e bebemos um do outro várias vezes, com muita intensidade, e a sede só aumentava. Fizemos de tudo – inclusive, quando pedi a ele que fizesse comigo o que eu tinha visto Cristina e Marcelo fazerem naquela tarde, ele me deitou atravessada na cama, ficando de joelhos sobre o carpete, e fez aquilo comigo até que eu finalmente pedisse a ele que parasse. Depois, eu pedi a ele que me deixasse retribuir. Após um momento de hesitação, ele me deixou fazer o que eu queria, e foi maravilhoso ver o rosto dele, seus olhos se fechando, sua cabeça sendo jogada para trás, até que ele me ergueu de repente pelos braços e deitou-se sobre mim. Foi maravilhoso ouvir o meu nome sendo repetidamente sussurrado em meu ouvido enquanto o amor da minha vida se entregava totalmente a mim, e me dava tudo de si.

Ao final daquele dia, enquanto voltava de táxi para casa sozinha, minha cabeça rodava, e uma nova Yara nascia; uma Yara mulher, totalmente mulher, que sabia o que queria e estava disposta a fazer de tudo para alcançar. Cumpri a minha promessa de não dizer nada aos meus pais ainda, prometendo esperar até que ele resolvesse a sua situação com a outra mulher com quem estava saindo, mas algo me dizia que aquele sonho era grande demais para mim, e que eu deveria me entregar e aproveitá-lo ao máximo, pois uma felicidade tão grande deveria ser proibida, e logo teria fim. No táxi, eu deslizava a minha própria mão sobre o meu ventre, e me tocava de leve nos ombros, repetindo o caminho que as mãos dele tinham feito há apenas alguns minutos, e eu respirava profundamente, sentindo os resquícios do perfume dele sobre a minha pele. Deparei com o olhar curioso do motorista através do espelho retrovisor, e colocando meus óculos escuros, me contive.

Eu era Lolita, eu era a Bonequinha de Luxo (tinha me fantasiado de Audrey Hepburn para aquela tarde, prendendo meu cabelo como o dela no filme), com um toque de Barbarella. Eu era a mulher perfeita. Nenhuma outra mulher no mundo seria tão amada quanto eu.

Chegando em casa, corri para o meu quarto e arranquei os sapatos, pulando na cama e me sentando de pernas cruzadas, pensando que eu adoraria que Cristina estivesse ali, pois ela era a única pessoa para quem eu poderia contar o que tinha me acontecido e que me ouviria sem julgamentos, sentindo-se feliz por mim. Adoraria dizer a ela o quanto eu não era mais virgem, o quanto eu derrubara as convenções e burlara todas as regras.

Batidas na porta interromperam meus pensamentos; era mamãe. Ela colocou a cabeça para dentro:

-Posso entrar?

(continua...)





quarta-feira, 8 de maio de 2019

INOCÊNCIA - PARTE I - Capítulo XVIII





QUASE...

Naquele um ano, meu romance unilateral com Duílio continuou. De vez em quando, eu lhe roubava um beijo, ao qual ele resistia, mas acabava correspondendo. Eu estava com quase dezoito anos, e sabia muito bem do meu poder de sedução sobre os homens; tornara-me uma linda mulher. Mas guardava todas as minhas investidas sedutoras apenas para ele, que às vezes, cada vez mais raramente, conseguia resistir. Ele me dizia que não queria nos colocar em posições constrangedoras diante de meus pais, pois os dois eram amigos; falava da nossa diferença de idade e dos julgamentos da sociedade. Eu contestava tudo, e fazendo um olhar sexy, beijava-o, calando sua boca. Mas nunca íamos além daqueles beijos roubados. Eu afirmava que estava totalmente apaixonada, e que bastaria ele me pedir, e contaria a todo mundo, assumindo nossa paixão; ele dizia para eu deixar de ser criança, ou louca, ou impulsiva, ou perdia a paciência comigo e ficava dias sem aparecer lá em casa. Eu sabia que, no fundo, ele gostava de ter seu ego de macho sendo massageado por uma bela jovem fogosa e apaixonada. Infelizmente, Duílio era responsável demais, comprometido demais com meu pai e os negócios, formal demais. Eu não sabia mais o que fazer para quebrar aquele gelo, derrubando tanta formalidade.

Certa vez, nós quase chegamos aos ‘finalmente.’ Ele apareceu lá em casa numa tarde de sábado, pois tinha marcado com meu pai para colocar algumas coisas em dia. Mas papai precisou levar mamãe ao médico de repente , pois ela se sentira mal, e os dois saíram, me deixando sozinha em casa. Eugênio e Flora estavam em seu apartamento. Atendi a porta usando um penhoar, pois eu acabara de tomar banho, e servi-lhe um drink, explicando que papai tinha ido levar mamãe ao médico. Ele pareceu muito preocupado com ela, mas eu disse que ela logo estaria bem, e que tinha sido algo que comera no jantar. Sentei-me ao lado dele, e de propósito, mas tentando fazer parecer que tinha sido acidental, cruzei as pernas e o penhoar abriu uma fenda, deixando-as à mostra. Notei o olhar dele, que tentava disfarçar, mas que estava preso em meus joelhos, subindo até as minhas coxas.

Excitada, percebi também a excitação dele. Tentando fazer com que parecesse um gesto casual, Duílio pegou uma das almofadas do sofá, tentando cobrir-se, mas eu a retirei, após alguma resistência dele, e encarei-o, dizendo:   

- Até quando isso vai continuar? Eu sou uma mulher, você é um homem, e ambos sabemos muito bem o que queremos.

Ele me agarrou com força pela primeira vez, me beijando de um jeito que eu nunca tinha sido beijada. As mãos dele subiram pelas minhas pernas até o ponto desejado, e eu achei que finalmente teria o que queria. Ele começou a me acariciar ali, e eu cedi, entregando-me completamente ao meu primeiro orgasmo através das mãos de um homem. Ele beijou meus seios e minha boca. Ele me apertou contra o seu corpo, e de repente, começou a se tocar. Eu nunca tinha visto um homem se masturbando antes; eu  nunca tinha visto um homem naquele estado… toquei-o também, suavemente, e observei, fascinada, enquanto ele se aliviava no lenço de algodão branco que tirara do bolso do paletó.

Quando ele abriu os olhos, tinha o rosto vermelho, e eu estava novamente muito excitada. Tentei beijá-lo, pois queria entregar-me a ele totalmente, mas Duílio me afastou dele.

Levantando-se do sofá abruptamente, ele foi até o banheiro. Voltou minutos depois, parecendo envergonhado e arrependido. Tinha lágrimas nos olhos. 

-Você me deixa louco, Yara. Não podemos continuar com isso.

 Levantei-me furiosa com ele pela primeira vez. Eu queria mais. Eu o queria por inteiro, e tudo o que ele me dizia, é que eu não poderia tê-lo.    

Eu às vezes me cansava daquele jogo de gata e rato, mas não podia conceber a minha vida sem aquela paixão, sem lutar por aquele homem. Um dia, escutando a conversa de Joana com uma amiga que dizia como ela tinha conseguido conquistar o namorado fazendo ciúmes nele com outro rapaz, eu achei que tinha descoberto a pólvora: eu ia arranjar um namorado para fazer ciúmes a Duílio!

(continua...)





quinta-feira, 2 de maio de 2019

INOCÊNCIA - PARTE 1- CAPÍTULO XVII






A VOLTA DE BERTA

Um mês após o casamento – naqueles tempos as luas de mel podiam ser bem longas – Berta e Sebastian voltaram a Rio da Prata. Foram recepcionados com um jantar na nossa casa, e os pais de Sebastian também foram convidados. Insisti para que papai convidasse Duílio, e ele concordou. Cândida e Marcelo, acompanhados de Tia Aurora e Joana, também compareceram ao jantar.

Berta estava radiante. Usava um terninho amarelo-claro que a deixava com ares de senhora, uma blusa creme e um colarzinho de pérolas. Notei que Tia Aurora aprovava seu novo visual. Berta desistira da faculdade para tornar-se a esposa de Sebastian, e ambos já planejavam um filho. Sebastian começou a trabalhar com o pai no escritório de engenharia, assim que retornaram da lua de mel. As coisas eram assim: os filhos seguiam a carreira dos pais, e a maioria das mulheres viravam “prendas do lar.” Era o final dos anos setenta.

Joana ainda não estava namorando ninguém, apesar dos dezessete anos de idade recém-completados, para cuja festa eu fora convidada, e comparecera a contragosto, a pedido de meus pais.

Berta e Sebastian ocupariam uma ala na casa dos pais dele, que tinha sido ampliada e convenientemente replanejada para dar privacidade total ao casal. Felizmente, Berta e Lourdes, a sogra, deram-se bem desde o princípio, tornando-se grandes amigas. Ambas tinham praticamente os mesmos gostos e opiniões, faziam compras juntas, organizavam juntas as coisas da casa e após o nascimento dos bebês gêmeos de Berta, Paulo e Marcos, a sogra tornou-se uma verdadeira mãe para todos eles – nora e bebês. Eu também gostava de Lourdes e Moacir, sogros de Berta. Eram pessoas boas, cordatas. Acho que Cristina os acharia convencionais demais. Eu sempre pensava no que Cristina poderia achar sobre isso ou aquilo. Tentava escutar suas opiniões imaginárias sempre que eu estava em dúvida sobre alguma coisa, me perguntava: o que Cristina faria? Muitas vezes, eu seguia aquelas respostas imaginárias, e nem sempre me dei bem. Porque na verdade, elas eram apenas isso: respostas de uma Cristina imaginária. Na verdade, Cristina tornou-se alguém totalmente diferente daquilo que eu imaginava, mas eu só descobriria aquilo bem mais tarde.

Um ano depois do casamento, Berta engravidou dos gêmeos. Eu adorava acompanhá-la às compras, juntamente com Lourdes. Ficávamos horas escolhendo roupinhas de bebê, e depois íamos almoçar juntas no restaurante de Tia Aurora. Às vezes, mamãe juntava-se a nós, mas ultimamente, ela andava um tanto deprimida, e tomava alguns medicamentos que faziam com que ela dormisse por horas, mesmo durante o dia. De repente, ela acordava bem disposta e dedicava-se à casa, ia ao cabeleireiro, comprava roupas novas, passava horas fazendo seus cursos, e logo em seguida, caía novamente num estado de torpor que podia durar dias a fio.

Eu não entendia porque mamãe andava tão infeliz. Nós tínhamos uma boa vida, éramos uma família unida e feliz, tínhamos uma boa casa. Berta ia dar-lhe netos. Eu terminara o colegial e já dava aulas na parte da manhã para um grupo de crianças da primeira série primária. Papai estava bem, e com saúde. Aliás, papai dizia que mamãe estava passando por uma fase difícil, coisa de mulher, segundo ele. Pedia que nós tivéssemos paciência com ela, e afirmava que um dia passaríamos pelas mesmas coisas. Eu procurava deixá-la em paz naqueles momentos, e talvez ter ficado longe dela tenha contribuído para que nos afastássemos totalmente mais tarde: eu não tentei compreender minha mãe.

(CONTINUA...)






A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...