quarta-feira, 8 de abril de 2020

MADRE - Capítulo 10





MADRE - Capítulo 10

O jantar foi muito tranquilo. Mayara escolhera uma música suave como pano de fundo, e fomos servidas por uma das empregadas da casa, que permaneceu junto à mesa o tempo todo, em silêncio absoluto, as mãos entrelaçadas na frente do corpo. Eu realmente não estava acostumada a tanto luxo e reverência, e estava achando aquilo tudo fantástico, mas também assustador. Mayara falava com a mulher suavemente, mas notei algo de cortante em sua voz. Era como se ela quisesse que suas ordens fossem bem compreendidas e jamais questionadas. A mulher parecia acostumada a servir, mas prestava muita atenção às ordens e tinha movimentos seguros, precisos, como alguém muito bem treinado. Fiquei pensando no que poderia acontecer se ela derramasse algo ao servir. Durante o jantar, fiquei sabendo que seu nome era Elvira. Mayara me disse que sempre que eu precisasse de alguma coisa poderia pedir a Elvira, caso ela não estivesse por perto.
A comida era algo tão delicioso e leve que nem sei descrever. Algo macio e espumoso de entrada, que derretia na boca, seguido por carne assada e legumes. As porções eram pequenas, mas após a sobremesa, descobri que eu estava satisfeita. Ela me convidou para tomarmos um chá digestivo na varanda. Chá digestivo?, pensei; aquela comida não precisava de nada digestivo, pois era perfeita! Mesmo assim, eu concordei com a cabeça. 

A outra mulher, chamada Rosa, serviu-nos um chá aromático com biscoitinhos bem pequenos de damasco. As xícaras eram tão finas que dava medo de segurá-las. Notei que Mayara colocava sua xícara de volta no pires sem fazer nenhum ruído, e mesmo que eu tentasse, não conseguia imitá-la. Eu era como um elefante em uma loja de louças. Mas ela não parecia reparar ou se importar. 

Conversamos sobre coisas mais corriqueiras, como a minha escola e meus amigos, minhas músicas e filmes prediletos, animais de estimação. Rimos muito das nossas histórias sobre eles. Mayara adorava animais de estimação, e disse que me mostraria seus dois cavalos e seus três cães de caça na manhã seguinte. Ela também tinha um casal de faisões que ficavam soltos pelo jardim, e uma águia que pertencera ao seu marido e que ela libertara após a morte dele, mas que continuava voltando para casa todas as tardes. Seu nome era Fênix. Também havia um pequeno lago com patos. Ela disse que me mostraria tudo no dia seguinte.
Sem querer, mal consegui disfarçar um bocejo. Já passavam das dez da noite, e eu estava exausta. Imediatamente, ela me disse que eu podia ir dormir, e que ela ainda tinha que dar algumas ordens na casa. 

Entrei naquele cômodo maravilhoso que agora era o meu quarto, vesti a camisola cor-de-rosa esvoaçante que Elvira separou para mim e me deitei entre o edredon macio e os lençóis perfumados. Pretendia telefonar para minha avó e Nina, mas nem deu tempo: Mal pus minha cabeça no travesseiro, adormeci.

Horas mais tarde, ainda tonta de sono, eu escutava as batidas insistentes. Me sentia como se estivesse em um limbo, entre o sono e a realidade. Estava tão cansada, tanto física quanto emocionalmente, que mal podia abrir os olhos. As batidas continuavam no fundo da minha cabeça. Eu achava que tudo não passava de um sonho. Também escutei vozes no corredor da casa, e abrindo os olhos, vi a luz acesa por debaixo da fresta da porta do quarto. Ouvi passos apressados cruzando o corredor, e uma porta ranger. Depois, pés que subiam uma escadaria. Contei: dez degraus. Naquele momento eu já estava totalmente desperta. Vozes abafadas. Alguém parecia estar chorando.

Eu me levantei, e me adaptando à escuridão, vislumbrei o caminho até a porta do quarto. Esfreguei os olhos, encostei a cabeça na porta e escutei. Tentei a maçaneta: eu estava trancada! Alguém tinha trancado a porta do meu quarto! Ainda tentei girá-la várias vezes; afinal, casas antigas podiam ter seus problemas. Nada: eu estava presa. 

Comecei a sentir uma angústia tomando conta de mim, salpicada de medo. Eu estava na casa de uma mulher que era a minha mãe verdadeira, mas quem era ela, realmente? Crescera longe dela, e na verdade, não a conhecia. Por que eu estava trancada no quarto? Minha mão direita se ergueu para começar a bater naquela porta que me impedia de sair, mas antes que ela pudesse baixar sobre a madeira com toda a força do meu desespero, ouvi um ‘click’ na fechadura. Passos apressados se afastaram da porta e morreram ao final do corredor. Uma outra porta bateu, se fechando. Testei a maçaneta: a minha porta tinha sido aberta.
Alguém saiu no meio da noite e trancou a porta do meu quarto por precaução, talvez porque não quisesse que eu visse alguma coisa. 

Abri a porta bem devagar, uma fresta suficiente para que eu pudesse enxergar o corredor escuro e silencioso. Senti calafrios na espinha. 

Na manhã seguinte, às vinte para nove da manhã, antes que eu saísse do quarto, liguei para minha avó. Nós conversamos por alguns minutos. Eu estava na sacada do meu quarto olhando o jardim lá embaixo e o movimento do jardineiro – o mesmo homem que nos recebera quando chegamos. Ele me viu, e me cumprimentou com um aceno de cabeça. Eu acenei de volta para ele. Minha avó me perguntava se eu estava bem, e como era Mayara. Eu disse que ela era linda, e que sua casa era linda. Achei melhor não mencionar a noite anterior. Nina gritava que estava com saudades. Ela às vezes pegava o fone e, chorosa, me pedia que voltasse. Impaciente, minha avó finalmente ralhou com ela, dizendo que se acalmasse e me deixasse em paz, pois toda aquela choradeira estava deixando todo mundo nervoso. 

Depois de lidar com elas, jurando que eu estava bem e que entraria em contato assim que pudesse, liguei também para Mateus, que atendeu o telefone com voz sonolenta. Me lembrei de que ele provavelmente trabalhara a noite toda, e me senti péssima por tê-lo acordado! Mas conversamos durante algum tempo, e como sempre, ele me deu toda a atenção do mundo. Também não mencionei nada sobre a noite anterior. 
Ao desligar o telefone, eu me perguntei o porquê de ter escondido deles aqueles acontecimentos estranhos, e não achei uma resposta. 

Me vesti – uma das roupas maravilhosas que Mayara comprara para mim – e desci as escadas. Ela estava tomando o café da manhã na varanda, entre bules de porcelana e xícaras com formatos e desenhos intrincados que pareciam tão caros, que davam medo de tocar. Ao me ver, seu rosto se iluminou em um sorriso e ela fez sinal para que eu me sentasse ao lado dela, e eu obedeci, me servindo de um brioche recheado com queijo quentinho e maravilhoso. Seria muito fácil me acostumar àquela vida! 

-E então, dormiu bem, - ela perguntou, mas já sabendo a resposta. Olhei para ela, acabei de mastigar meu brioche e tomando um gole de café, respondi:

-Muito bem. E você?

O tom da minha pergunta era bastante inquisidor e soou um tanto irônico, e logo me arrependi, mas ela apenas concordou com a cabeça, mudando de assunto:

-Então,  Aisha... (Ela fez sinal para que Elvira deixasse a sala, e continuou) estive pensando sobre a escola...
Eu a interrompi:

-O ano letivo está perdido, e vou continuar apenas no ano que vem. Fiquei muito tempo fora, por causa do acidente e da morte dos meus... pais. Agora eu prefiro não pensar nisso.

Ela pareceu surpresa, e corou levemente:

-Claro, mas... é que existe uma escola excelente por aqui. Estive conversando com a diretora por telefone. 
Ela acha que com aulas de reforço, você pode recuperar os meses perdidos. O que acha?

Ela parecia ter certeza de que eu ia ficar morando com ela. E também percebi que ela tinha assumido o papel de mãe completamente, não só escolhendo minhas roupas e arrumando meu quarto, mas também tentando decidir sobre minha vida escolar. Eu me lembrei da porta trancada. Me coloquei na defensiva:

-Já disse, agradeço sua preocupação, mas não voltarei para a escola esse ano. Não estou com cabeça para estudar. E nem sei se vou ficar morando aqui muito tempo, sabe. Prometi para minha avó que eu ia voltar para morar com ela. 

Uma sombra passou pelo rosto dela e apagou seu sorriso. Ela esmagou a ponta do guardanapo, e um músculo tremeu em sua testa. Mayara não gostava de ser contrariada, e aquilo estava ficando cada vez mais óbvio, na maneira como ela Às vezes perdia a paciência com os empregados e o quanto ela tentava ‘arrumar’ as coisas para mim e fazer planos para a minha vida, sem nem me conhecer direito. Quando eu vivia com meus pais adotivos, estava sempre cumprindo ordens: Não tenha redes sociais usando seu nome verdadeiro, não publique fotos suas, não ande sozinha sem avisar onde está, não fale com estranhos, arrume suas coisas AGORA e entre no carro! Eu não queria mais aquele tipo de coisa na minha vida. 

(continua...)




sexta-feira, 3 de abril de 2020

MADRE- CApítulo 9






MADRE- Capítulo 9

A última recomendação de Mateus, antes do ônibus sair, foi para eu não deixar de ligar para a minha avó e Nina. E foi o que fiz, assim que o ônibus partiu:

-Vó, eu estou bem. Estou indo conhecer minha mãe. 

-Ah, minha querida! Eu estava aqui, morrendo de preocupação. Nina está comigo. Vai ser minha acompanhante de hoje em diante. Ela está mandando um beijo pra você.

-Mande outro para ela, e diga que eu amo. Estaremos juntas de novo em breve. Nós três. 

-Eu espero que você me perdoe, Aisha...

-Não tem nada para ser perdoado. A senhora fez o que papai e mamãe mandaram. Agora compreendo o porquê das discussões e da distância entre mamãe e você. E Nina... ela... sempre foi tão boa comigo! Se não fossem por vocês duas, acho que eu teria pirado de vez com tantas mudanças repentinas!

-Mas por favor, querida, não odeie seus pais! Eles podem ter errado, mas sempre amaram você demais, e tinham medo de perder você. Um medo que eu partilhava, e que nesse momento, eu confesso, é grande demais. 

-Não! Você não vai me perder, vó! Eu vou entrar em contato, estaremos sempre juntas! Mas eu preciso conhecer a Mayara! Nós devemos isso a ela, e ela é minha mãe, entende?
-Claro, Aisha. Vá conhece-la. 

Desliguei o telefone, e me deixei envolver pela paisagem lá fora, aproveitando para pensar em minha vida e no que estava para acontecer. O ônibus estava quase vazio, e eu estava sentada sozinha, o que era bom, pois pude chorar e rir à vontade, conforme as lembranças chegavam. Pensei no acidente; pensei nos meus amigos da escola, na festa de aniversário que jamais aconteceu. Tive uma ideia: Entrei em uma rede social e abri uma conta. Desta vez, com meu nome e foto verdadeiros! Adicionei todos os meus amigos, e passei a viagem conversando com eles e explicando tudo, pois queria muito resgatar minhas amizades. Elas eram importantes para mim, e não queria perde-las. 

Era tão bom não ter mais nada a esconder! Era tão bom poder postar minhas fotos e dar meu verdadeiro nome! Era tão bom não ter mais medo.

Também passei uma mensagem para meu antigo ‘crush’, que ficou muito entusiasmado ao conversar comigo. Acho que ainda não disse o nome dele: Caio. 

Fiquei sabendo, através dos meus amigos, que a festa foi devidamente aproveitada até o final. Eles me mandaram fotos de tudo, e também de uma homenagem que fizeram para mim. Me disseram que ficaram muito aflitos ao saber que minha família tinha deixado a cidade de repente. Eu pretendia revê-los em breve, na época das férias escolares – mas antes, eu tinha que resolver aonde estudaria. Minha vida escolar tinha sido interrompida no último ano. Ainda faltavam o vestibular, a faculdade. Meu futuro era uma verdadeira incógnita. 

Lá fora, começou a chover, embaçando a paisagem. Adormeci, e acordei quando o ônibus parou. Todos os poucos passageiros já tinham saído, e fui a última a deixar o ônibus. Já era quase noite. 
Torcendo as mãos, minha bela mãe esperava por mim, e ela parecia tão jovem e desamparada, que eu só pude largar a mochila no chão e abraça-la forte. Senti o cheiro dos cabelos dela de encontro ao meu rosto, e meus braços em volta da cintura dela. E tudo me pareceu tão certo, tão familiar! Era como se nós duas nunca tivéssemos sido separadas. 

Ela me levou até sua casa de carro. Após dirigir por mais ou menos cinco minutos, chegamos a um imponente portão de ferro pintado de preto. Minha mãe vivia em uma enorme casa amarela de janelas brancas, nos fundos de um longo passeio cercado por um gramado verde e iluminado por luzes laterais que ladeavam a estradinha. Havia muitas árvores, e sob uma delas, um balanço. Ela me disse que gostava de sentar-se ali, pois balançar a deixava calma.

Minha mãe morava em uma verdadeira mansão! 

Assim que ela parou o carro, um homem veio para leva-lo até a garagem. Ele aparentava ter uns cinquenta anos de idade. Mayara me apresentou:
-Geraldo, essa é minha filha Aisha. Irmã gêmea de minha falecida filha Georgina. Estive a procura dela por muitos anos, e finalmente, ela está aqui!

O pobre homem pareceu muito confuso, mas assim que recuperou a fala, disse:

-Seja bem-vinda, senhorita Aisha. Fico feliz que vocês tenham se encontrado!
Dizendo aquilo, ele entrou no carro e dirigiu para a lateral da casa. Achei estranha a atitude surpresa dele, mas nada disse. Entramos por uma varanda envidraçada e cheia de plantas, como uma estufa, e fomos dar em um salão ricamente decorado. Eu nunca tinha visto tantas coisas bonitas na minha vida.  Havia duas mulheres que trabalhavam na casa e foram nos receber e Mayara me apresentou novamente. As mulheres se entreolharam, parecendo muito confusas e espantadas, e baixando a cabeça, fizeram-me um leve cumprimento e saíram da sala. Mayara disse:

- Deixe eu levar você até o seu quarto.

Achei aquela frase surreal: será que eu ficaria morando naquela casa com ela? Tinha prometido à minha avó e Nina que voltaria! Mas aquela era uma decisão para eu tomar mais tarde. 
Ela me conduziu por uma escadaria curva e larga de madeira encerada, forrada por um belo tapete verde-escuro. Chegamos a um corredor também acarpetado de verde, e abrindo a segunda porta à direita, ela fez sinal para que eu entrasse:

Prendi a respiração: o quarto era enorme! Tinha até uma lareira. A cama era de ferro trabalhado, uma linda cabeceira cheia de rosas de padrões intrincados, pintadas em cores reais; tão reais, que davam a impressão de serem de verdade. Eu nunca tinha visto nada tão lindo! O tapete era cheio de desenhos maravilhosos de flores e ervas, uma verdadeira obra de arte onde eu planejei ficar durante muito tempo até que eu tivesse percorrido todas aquelas tramas. E as paredes... era uma casa antiga, e elas tinham uma pintura maravilhosa, uma paisagem campestre com montanhas, lagos, árvores, céu. Parecia original, embora restaurada.
Mayara abriu o armário: ele estava cheio de roupas! Diante da minha surpresa, ela disse:

-Eu as comprei para você. É claro que mais tarde poderemos sair e você escolherá tudo o que quiser, mas achei que seria bom que você tivesse algo para vestir. Espero que goste. Agora tome um banho, troque de roupa e descanse um pouco. Daqui a duas horas eu a chamarei para jantarmos juntas. 

Ela me beijou suavemente na testa e eu fiquei sentada na cama, olhando embasbacada para tudo aquilo.
Mas depois fiz o que ela tinha sugerido, e escolhi umas calças jeans e uma túnica branca bordada de linha branca na pala. Ela era linda, de mangas longas, e o tecido era macio e esvoaçante. Calcei também umas sapatilhas brancas sem salto. Fiquei espantada porque as roupas serviam perfeitamente, parecendo terem sido feitas sob medida. 

Aquilo era um conto de fadas e eu era a princesa, pensei. 

Saí do quarto e parei no sopé das escadas, a mão no corrimão. Pude vislumbrar o magnífico lustre de cristal, a beleza da escadaria curva, o bom gosto da decoração da sala silenciosa. Depois, respirando profundamente, comecei a descer os degraus bem devagar, tomando posse daquilo tudo com o olhar. Eu era a filha de Mayara, e aquilo tudo também me pertencia, afinal.

(continua...)




segunda-feira, 23 de março de 2020

Madre- Capítulo 8






MADRE -Capítulo 8

Enquanto esperava pela volta de Tomás, não tendo nada para fazer decidi pagar minha estadia: arrumei todo o apartamento e preparei uma macarronada com as coisas que achei no armário. Quando ele voltou, por volta das onze da noite, encontrou  tudo limpo e a mesa posta para dois. Tinha me dito que voltaria mais cedo para conversarmos.

Nós comemos, e surpreendentemente, descobri que eu sabia fazer uma ótima macarronada, afinal de contas. Contei a ele  o que tinha conversado com minha verdadeira mãe ao telefone. Ele me escutou com atenção, serviu-se de um pouco de vinho. Tomás era um excelente ouvinte e um sábio conselheiro. Finalmente, quando ele sentiu que eu já tinha dito tudo o que eu precisava, ele balançou a cabeça e declarou:

- Sua vida está para sofrer a segunda grande mudança, Aisha. Espero que não seja demais para sua cabecinha. Mas... você não acha que seria uma boa ideia pensar um pouco mais sobre o que sente em relação aos seus pais adotivos? Afinal, eles acabaram de falecer e você mal teve tempo para um período de luto. E saiba, o luto é importante para que a gente supere as perdas.

Eu me encolhi no sofá:

-Eu não sei se eles merecem que eu fique de luto. Me esconderam da minha mãe durante quinze anos. Me roubaram do hospital quando eu nasci. Eu tinha uma irmã gêmea que eu nunca conheci por causa deles. 

-Mas com certeza não foi tudo ruim! Pense nos momentos felizes que vocês tiveram juntos. Quantas vezes você chorou depois que eles morreram, querida?

-Só uma vez, no hospital, depois que eu li a carta que minha mãe deixou. Mas foi um choro de... sei lá... acho que de raiva. Ressentimento. Indignação. Pelo que eles me fizeram.

Ele se sentou ao meu lado, segurando minha mão:

-Olha, eu não gosto muito de me meter na vida dos outros, mas... você caiu aqui de paraquedas, e eu me sinto meio responsável por você. Acredito que tudo na vida tem um motivo, e se tudo isso te aconteceu, foi para o seu bem. Sabe-se lá que vida você ia ter, se não fossem seus pais de mentirinha? Sua própria mãe disse que não poderia cuidar de duas crianças pequenas ao mesmo tempo. Cuidar de uma só já foi difícil para ela. Seus pais fizeram um bom trabalho, não?

Comecei a sentir uma inquietação tomando conta de mim, em forma de ansiedade. Num impulso, fui até a mesa e derramei uma quantidade grande de vinho no copo, bebendo tudo de uma vez só. Não estava acostumada a beber. Mateus ainda tentou me impedir, mas eu corri para o outro lado da mesa e bebi tudo depressa. O efeito foi eficaz: senti meu corpo relaxando aos poucos, em um leve torpor. E as lágrimas de dor pela perda dos meus pais adotivos puderam finalmente romper a barreira da minha dureza e jorrar aos borbotões. Chorei durante muito tempo, e partilhei com ele boas lembranças dos muitos momentos de felicidade que eu vivera junto a eles. Nem sei por quanto tempo eu fiquei contando minha vida para ele, e hoje, quando me lembro, fico agradecida pela paciência que ele teve comigo, em me escutar. Ele riu e chorou comigo. Surpreendeu-se, indignou-se, comoveu-se, gargalhou, caminhou pelas passagens da minha vida como um espectador ativo e interessado. Era tudo o que eu precisava, e ele foi tudo o que eu precisava. Não me julgou, não julgou meus pais, não fez observações idiotas que as pessoas fazem, que começam sempre com “Eu, no seu lugar, teria feito isso e aquilo.”

Horas depois, Mateus me abraçou. Colocou-me na cama e me deu um sonífero leve, sentando-se na poltrona ao lado da minha cama. De vez em quando eu abria os olhos na minha sonolência, e ver ele sentado ali, dormindo ao meu lado, me fez sentir tranquilidade. Na manhã seguinte, quando acordei, ele tinha preparado o café da manhã. Fez eu me sentar e comer. Depois, penteou meus cabelos ainda molhados em um lindo coque (disse ter sido cabelereiro há muitos tempo).  Adorei o resultado do penteado, que fez com que eu me sentisse mais madura. 

Mateus pegou o papel onde eu tinha anotado o endereço da minha mãe, e me entregando, disse:

-Agora vá ver sua mãe. 

E foi o que eu fiz. Peguei minha mochila, despedi-me dele e parti para a rodoviária, onde tomei um ônibus e enfrentei quatro horas e meia de viagem até a cidadezinha onde minha mãe Mayara vivia. 








terça-feira, 10 de março de 2020

MADRE - Capítulo 7






Capítulo 7

No dia seguinte, acordei Às onze e trinta e cinco da manhã sentindo cheirinho de ovos, bacon e café. Meu estômago vazio logo deu sinal de vida, e vestindo minhas roupas, escovei os dentes, lavei o rosto e fui até a cozinha, onde Mateus estava preparando um lauto café da manhã para nós. Ele me explicou que chegara em casa às cinco da manhã e dormira até dez e trinta, o que fazia todos os dias. O bar costumava abrir às sete e trinta da noite, então ele tinha o dia livre para fazer o que quisesse.

Nós tomamos nosso desjejum e depois passei muito tempo contando a ele em detalhes a estranha história da minha vida. Mateus escutou tudo quase sem me interromper, e depois, quando terminei, ele deu um longo suspiro:

-Uau! Parece coisa de novela. Você me superou, Aisha! Eu achei que tinha uma história de vida difícil, isso é, sendo gay e rejeitado pela família... mas você me superou, confesso.

E deu uma grande risada. Ele não me deu conselhos, apenas me perguntou o que eu pretendia fazer em seguida. Respondi que iria procurar minha mãe de verdade, e ele concordou com a cabeça. Depois, em tom de humor, me disse:

-Mas não sem antes tomar um bom banho e lavar essa coisa grudenta que você tem na cabeça. Pode usar a banheira à vontade! Lá tem sais de banho, espuma, e todas as coisas para que você passe alguns minutos relaxando. Já eu... acho que vou dormir mais um pouco. 

Eu o obedeci.

No final da tarde, ele se despediu e foi abrir o bar. Disse que eu poderia ficar com ele o tempo que eu quisesse, que não precisava me preocupar com nada, e eu me senti tão grata, que tive vontade de abraça-lo e beijá-lo, mas não o fiz, achando que ele era só um desconhecido, afinal de contas. Senti naquele meu pensamento traços das lições sobre segurança que minha mãe sempre me passava:

“Nunca ande sozinha, principalmente por ruas escuras. Não fale com estranhos jamais, não poste fotos ou revele sua identidade na internet, ou tomaremos seu telefone e computador. Jamais pegue carona com estranhos ou deixe que estranhos toquem em você. Sempre olhe para trás para ver se não está sendo seguida. Não confie em ninguém!”

Respirei fundo e peguei a carta da minha mãe onde ela tinha escrito o número do telefone da minha mãe verdadeira. Peguei o aparelho de telefone fixo de Mateus.  Mas de repente, toda a certeza que eu tinha foi por água abaixo: quem seria ela, realmente? E se ela me rejeitasse? E se fosse louca ou algo assim, e na verdade, tivesse assassinado minha irmã gêmea? 

A ansiedade tomou conta de mim em rápidas golfadas de ar que pareciam não ajudar em nada na entrada de oxigênio nos meus pulmões. Aquele não era meu primeiro ataque de ansiedade; eu tivera tais ataques a minha vida toda, principalmente durante a noite, quando acordava banhada de suor sem conseguir respirar direito e achando que ia morrer. Geralmente, minha mãe ou Tina me faziam um suco de laranja e me davam um calmante leve, ficando comigo até que eu dormisse de novo. Mas agora eu não tinha ninguém por perto, e precisaria fazer tudo sozinha.

Peguei um copo de água com açúcar e bebi aos pouquinhos, tentando respirar devagar. Vasculhei o armário do banheiro e acabei encontrando uns comprimidos de Diazepam. Parti um deles ao meio e engoli sem água. Aos poucos, fui me acalmando. 

Peguei o telefone e disquei o número. Ele tocou nove vezes e eu já ia desligar, a ansiedade crescendo, quando uma voz cristalina respondeu: “Alô!”

Prendi a respiração, e tentei ficar calma:

-Alô.

Silêncio do outro lado. Eu conseguia sentir a tensão dela. Ela sabia que era eu. Eu sabia que ela sabia. E ela sabia que eu sabia que ela sabia. Enfim...

-Meu nome é Aisha.

-Eu sei. Eu... eu sei! Meu nome é...

- Mayara. Eu sei, é Mayara. Meus pais... eles...

-Eu sei. Sinto muito. Mas você não está sozinha, Aisha. Eu procurei por você a vida toda. A vida toda eu sonhei com o momento em que eu poderia falar com você, olhar para você...

De repente, a raiva me dominou, e eu gritei:

-É mesmo? Então por que deixou ela me levar? Por que não procurou a polícia?

-Porque durante muito tempo eu sabia que não poderia dar uma boa vida a você. Eu era extremamente pobre, e houve dias em que cheguei a passar fome. Eu não tinha ninguém! Nem sei como Georgina... sua irmã... sobreviveu!

As lágrimas desciam sem o menor esforço, formando uma cachoeira no meu rosto. Ela continuou:

- Eu conheci um homem que foi um pai para ela. Ele era muito rico, e tratou-a como a uma filha. Foi então que eu contei a ele a verdade sobre a sua existência, logo depois que ele se casou comigo. Ele me aconselhou a procurar você, mas eu não queria escândalos, não queria que a polícia se envolvesse, pois não desejava prejudica-la. 

-Minha irmã sabia de mim? Ela sabia que eu existia?

-Sim. Eu sempre disse a ela a verdade. Ela queria conhecer você, mas... você sabe, ela ficou muito doente e morreu aos seis anos. Mas ela tinha uma boneca, sabe... o nome da boneca era Aisha. (O tom de voz dela tornou-se quase animado) Ela costumava brincar muito com essa boneca.

-Mas... e meu pai? Onde ele está?

-Seu pai? Ele sumiu, há muitos anos, e ele nunca assumiu a paternidade. Na verdade, era jovem demais. Não sei se ele fez por mal, ficou assustado e ele e a família se mudaram para longe, me deixando sozinha. Meus pais, ao saberem da gravidez, queriam me obrigar a fazer um aborto. Mas eu me neguei, e fugi também. Eu não tinha nada! Consegui ajuda em uma casa para meninas como eu, grávidas e jovens demais. Hoje, seus avós já são mortos. Minha mãe morreu de câncer, e meu pai teve um ataque cardíaco. Eu... nunca pude perdoá-los. 

Deixei que ela falasse sem interrompê-la, o tempo todo dizendo a mim mesma: “Essa é a história de vida da sua mãe verdadeira.” 

-Aisha, eu não queria nada disso. Às vezes as coisas fogem do controle.

-E o seu marido? Ainda vivem juntos?

-Não, ele faleceu há cinco anos. Jorge era bem mais velho do que eu. Praticamente tinha idade para ser meu pai. 

Pensei que ela havia ficado totalmente só. Eu ainda tinha Tina e minha avó emprestada, mas ela não tinha ninguém. Eu me ouvi dizer:

-Quero te ver. Quero te conhecer melhor.

Escutei o choro dela do outro lado da linha.

(continua...)




segunda-feira, 2 de março de 2020

MADRE - Capítulo 6







MADRE - Capítulo 6

Após ler a carta, primeiro me senti completamente anestesiada, como se lesse sobre a vida de outra pessoa. A minha vida parecia uma novela mexicana, um dramalhão de romances de segunda categoria,  uma série brega de TV. Minha mãe não era minha mãe, e meu pai não era o meu pai. Nem mesmo a minha avó era de verdade! Cresci entre estranhos, roubada da minha verdadeira origem. Após mais ou menos uma  hora pensando sobre isso e tentando digerir tudo, tive uma crise de choro. Quem era eu? Qual seria o meu nome verdadeiro – aquele que minha mãe verdadeira sonhara para mim? 

Até mesmo Tina sabia de tudo sobre a minha vida. Menos eu! Todos me enganaram. Eis então o porquê de eu jamais poder colocar minhas fotos e meu nome verdadeiro em redes sociais: não tinha nada a ver com a minha segurança, mas com a segurança dos meus falsos pais! Passei a minha infância e a minha adolescência fugindo de fantasmas que não eram meus. Perdi amigos, o convívio com pessoas que eu gostava e que gostavam de mim, cidades que adorei viver, enfim, tudo para que eu jamais descobrisse quem eu realmente era e também para que minha verdadeira mãe nunca me achasse. 

Eu tinha sido roubada. Poderia perdoar alguma coisa assim? Será que alguém poderia?

Mayara: este era o nome verdadeiro da minha mãe, da minha mãe de verdade. Pensei no quão jovem ela era: apenas quinze anos a mais que eu. Uma menina quando me teve. E eu tivera uma irmã gêmea. Com certeza, um pai, avós, tios e tias, primos e primas. Coisas que nunca tive direito na minha família falsa. É claro que eu tive minha avó Beatriz, mas até mesmo ela não era de verdade, e ajudara meus pais a esconderem tudo de mim e de todos. Não podia confiar nela. Talvez tentasse me impedir de conhecer a minha mãe.  Pensei em ir à polícia e contar tudo, mas o que seria de mim? Talvez me mandassem para um orfanato. Quem sabe achassem que minha mãe verdadeira não poderia tomar conta de mim... ou que minha avó era louca ou algo assim.

Eu estava livre agora: meus pais estavam mortos. Eu precisava pensar, e foi o que eu fiz durante horas, durante a noite toda no hospital. Na manhã seguinte, minha avó estaria ali para me levar de volta para casa e para a minha antiga vida. Mas eu não queria mais ela. Eu queria tomar a s minhas próprias decisões. 
Eram quase três da manhã quando eu me levantei da cama e abri a porta do armário, pegando uma calça e jaqueta jeans, camiseta branca e botas de couro que estavam lá. Também encontrei meu celular e o carregador, e havia uma nota de cem no bolso da jaqueta que Tina tinha me dado de presente de aniversário. Felizmente, ninguém a tinha encontrado. Rabisquei em um bilhete: “Vó, eu estou bem. Não me procure. Assim que eu sentir que eu devo, mando notícias.”  Deixei o bilhete sobre o meu travesseiro.
Sorrateiramente, entreabri a porta do quarto e olhei o corredor vazio, silencioso e semi-escurecido do hospital. De vez em quando uma enfermeira passava e entrava em um dos quartos. Entre uma enfermeira e outra, eu fugi. Ainda sentia algumas dores ao caminhar, mas nada que me impedisse de ir em frente. Quanto às sessões de fisioterapia, elas poderiam continuar depois, ou não. 

Na rua, a noite estava fria. As ruas desertas eram entrecortadas por alguns raros faróis de carros que passavam por mime por pessoas que cruzavam comigo na calçada. Algumas delas paravam e me olhavam, me seguindo com os olhos quando eu passava. Eram ameaçadoras, mas eu apertava o passo e ignorava o que elas diziam. Com as mãos nos bolsos da jaqueta, eu tentava não tremer  - de frio ou de medo? Entrei em um bar cuja porta estava aberta para tentar me recuperar, retomando meu fôlego. Ao olhar para dentro, percebi que era um bar gay, e apesar do adiantado da hora, havia quatro casais sentados às mesas. Eles me fitavam, e pensei no quão estranha era a minha presença por ali. 

O barman, um homem bonito que usava barba e batom vermelho e aparentava alguma coisa entre trinta e quarenta anos (nunca fui boa em calcular a idade das pessoas) se aproximou, dizendo: 

-Perdida por aqui, meu bem?

Tentei aparentar segurança, dizendo:

-Só quero um café quente. 

Ele virou-se de costas e começou a preparar o café, indo aqui e ali. Fez também um sanduíche de queijo, alface, tomate e presunto e me entregou tudo:

-É por conta da casa.
Hesitei, olhando para o sanduíche e depois para ele várias vezes. Ele me encorajou:

-Vamos lá, pode comer, é por conta da casa. Significa que você não precisa pagar.

Franzi a testa:

-EU SEI! Não nasci ontem. (E depois, mais calma, acrescentei): Obrigada. 

Abocanhei o sanduíche e tomei o café. Os casais gays voltaram a cuidar das próprias vidas. Minhas mãos tremiam, e eu senti que ia chorar. As coisas em volta foram ficando cada vez mais embaçadas, e quando percebi, meu rosto queimava enquanto as lágrimas desciam sem parar, mesmo que eu tentasse impedi-las.  Continuei mastigando o sanduíche. O barman se aproximou:

-Como é seu nome? Posso ajudar em alguma coisa?

Eu pensei que eu não tinha nada a perder, e respondi com sinceridade:

-Meu nome é Aisha. 

-Nome bonito! Então, Aisha... está sozinha aqui a essa hora, o que aconteceu? Bem, se não quiser me contar, não tem problema, eu só quero ajudar, mas não me meto na vida de ninguém. 

-Minha história é longa e complicada... seria preciso mais do que alguns minutos para contar ela para você. Mas... posso fazer uma pergunta?

Ele me olhava com atenção e preocupação:

-Vá em frente!

-Se você descobrisse que... se alguém lhe dissesse que sua vida toda era uma mentira, que você na verdade era outra pessoa... o que você faria? Continuaria vivendo como se nada tivesse acontecido ou então... iria atrás de quem você realmente é?

Ele pareceu triste por um instante, e então sorriu levemente, dizendo:

-Bem-vinda ao clube, querida. Na verdade, isso já me aconteceu. E eu decidi correr atrás da minha vida de verdade e descobrir quem eu realmente sou, vivendo isso na maior plenitude possível. E aqui estou eu, dono desse  bar, ganhando minha vida com dificuldades, mas feliz... longe de algumas pessoas que eu pensava que me amavam, mas por outro lado, perto de pessoas que eu nem imaginava que me amassem tanto. Se eu me arrependo? Não.

Pensei por instantes naquilo que ele acabara de me dizer. Comi o último pedaço de sanduíche e bebi o resto do café. Perguntei:

-Foi... muito difícil?

-Sim... às vezes, ainda é. Mas se eu não tivesse feito isso, não poderia me olhar no espelho sentindo respeito pelo que eu visse. Vale um conselhinho: procure a sua verdade, e enfrente o mundo, se for preciso, para que você possa vive-la! E lembre-se: não é preciso matar um leão por dia. Basta domá-los! E se não for possível, dê um chute no traseiro deles e siga em frente!

Eu ri. Pela primeira vez, alguém adulto me dizia algo com toda sinceridade do mundo, e eu me sentia grata. 

-Aliás – disse ele – meu nome é Mateus. 

Senti vergonha por não ter perguntado, e me desculpei, mas ele fez um sinal com a mão, dizendo:

-Deixa pra lá! Nomes nem importam tanto. Sabe, eu já estive em um lugar muito parecido com o seu e alguém me estendeu a mão no momento que eu mais precisava. Isso me ensinou a ser solidário e a ajudar as pessoas que precisam. Se precisar de um lugar para ficar, não hesite em contar comigo! Você não está sozinha! E não precisa me contar nada que não quiser. 

Me lembrei imediatamente de uma história sobre anjos da guarda que Nina tinha me contado, que dizia que eles |às vezes se disfarçam de pessoas para nos ajudar. Mateus estava sendo meu anjo da guarda naquele momento, e eu agradeci a ele mais uma vez, decidindo aceitar a sua oferta. Ele me levou para trás do bar por uma porta vermelha, onde encontrei um apartamento pequeno, mas aconchegante. Havia um quartinho de hóspedes, e ele me entregou lençóis limpos e um cobertor felpudo. Me mostrou onde era o banheiro, embora não tivesse sido nada difícil de encontrar em um apartamento tão pequeno, e a cozinha também. Depois, me desejou uma boa noite e voltou para o bar. 

(continua...)




domingo, 16 de fevereiro de 2020

MADRE - CAPÍTULO 5






MADRE - Capítulo 5

“Querida Aisha,

"A história que eu tenho para contar é longa demais. Não consigo falar por muito tempo, mas tenho medo de deixar este mundo sem que você fique sabendo da verdade sobre a sua própria vida. Se eu a escondi de você, obrigando seu pai e sua avó a fazerem o mesmo, foi porque eu tive medo de coisas que eu mesma fiz, coisas muito erradas, mas que na época em que as fiz, me pareceram certas. Eu estava desesperada, e o desespero cega as pessoas. Espero que eu consiga contar pelo menos parte dessa história antes de morrer. Porque eu sei que vou morrer. Só espero que você me perdoe. Toda a dor que eu sinto nesse momento talvez sejam menos do que eu mereço como castigo.

Passamos a vida fugindo do passado, de um ato condenável e mesquinho que eu perpetrei e que por medo, escondi. Você já tem 15 anos de idade e entenderá o quanto eu fui egoísta. Talvez me odeie por um tempo, espero que não seja para sempre. Saiba que eu a amo demais, minha filha querida, mesmo que esse amor não justifique meu egoísmo.

Quando eu fiquei grávida, o médico me disse que seria uma gravidez de alto risco e que eu não poderia, de jeito nenhum, ter outro filho, então eu fiz repouso e segui todas as recomendações médicas à risca. Passei os nove meses de gravidez na cama, praticamente, e não lamento por isso. Fiz o que precisava ser feito, mas mesmo assim... meu bebê nasceu prematuramente. 

Não pudemos levar nosso bebezinho para casa. Ela teria que ficar no hospital durante mais algumas semanas, até que amadurecesse o suficiente. Eu ia ao hospital todos os dias para ficar perto dela, mas apesar da visão otimista dos médicos, eu sentia que minha bebê não estava bem... eu a sentia sempre fria quando a segurava, e ela quase nunca abria os olhos. Além disso, tinha dificuldades para alimentá-la, mas meu médico e as enfermeiras me encorajavam, dizendo que em breve tudo ficaria bem. Mas a minha intuição de mãe me dizia o contrário, e eu me angustiava!

Ao final do quarto dia da internação de nossa bebê, enquanto caminhava pelo corredor do hospital, notei uma menina grávida em uma cadeira de rodas, aguardando vaga para a sala de parto. Ela era realmente linda e muito jovem, estava sozinha e parecia assustada. Eu me aproximei e comecei a conversar com ela, tentando acalmá-la. Ela me disse que tinha quinze anos, e que seu nome era Mayara. Também me disse que daria à luz a gêmeas. Segurei a mão dela até que a enfermeira finalmente viesse e a levasse para a sala de parto. Ela estava muito nervosa. Perguntei por seus pais, e ela me disse que seu pai morrera quando ela era criança, e que sua mãe não aceitava sua gravidez, e portanto, não estaria presente. Perguntei se ela tinha irmãs, mas ela negou com a cabeça. Seus amigos também não a procuraram mais quando souberam de sua gravidez.
Lamentei pela situação dela; o que ela faria quando deixasse o hospital? Como cuidaria sozinha de dois bebês aos quinze anos de idade? Ao perguntar-lhe sobre aquilo, ela me encarou e encolheu os ombros, dizendo: “Acredito que exista um propósito para cada coisa na vida. Vai dar tudo certo. Quando sair, irei para uma instituição que acolhe meninas como eu, e depois... bem, depois, só Deus sabe.” Perguntei pelo pai das crianças, mas ela apenas baixou os olhos, e decidi não insistir no assunto que parecia magoá-la. Afinal, no fundo, ela era apenas uma estranha. 

No dia seguinte, fui visita-la em seu quarto. As meninas eram lindas, mas não eram univitelinas, e portanto, não se pareciam muito, apesar de serem gêmeas. Confesso que invejei-a, pois as bebês eram coradas e saudáveis, ao contrário da minha tão pequenina menininha, que parecia uma bonequinha de vinil. Ela me disse que logo seria liberada para deixar o hospital, e fiquei feliz por ela. Deixei com ela o número do meu telefone, caso ela precisasse de alguma coisa.
Naquela tarde, o hospital estava muito calmo. Era um hospital de cidade pequena, não muito movimentado.  O médico me aconselhara a passar a maior parte do tempo possível ao lado da minha filha, pois assim seu desenvolvimento seria melhor, e então Jairo, o médico e eu concordamos que eu deveria ficar no hospital durante a maior parte do tempo, e ao final da tarde, eu poderia ir para casa. 

Era o sexto dia de internação. Eu estava tão exausta, que acabei adormecendo na enfermaria da maternidade, com minha bebê no colo. Entre tubos e gazes, ela não chorava e quase não se movia. No começo, eu ficava apavorada ao segurá-la, mas já tinha me acostumado. Eu a coloquei de bruços em meu colo após amamenta-la e então acabei adormecendo. Alguns minutos depois, acordei com uma enfermeira entrando no berçário. Ela me olhou e sorriu, e eu sorri de volta. Me perguntou se eu queria que ela pusesse a bebê de volta na caminha, mas eu disse que eu mesma o faria. 

Ela saiu após verificar as gêmeas de Mayara e eu fiquei sozinha no berçário. Ia colocar minha filhinha na cama, mas quando olhei para ela, constatei que ela estava arroxeada e totalmente imóvel. Acidentalmente, eu a tinha sufocado! Um grito me veio à garganta, e eu o reprimi com as costas da mão: minha bebê estava morta! Engoli em seco: o desespero estava de prontidão. Imaginei minha vida sem ela, e também os dias que eu tinha pela frente, tendo que enfrentar aquilo tudo, convivendo com as consequências da minha irresponsabilidade... foi quando olhei por cima do ombro e vi as gêmeas, dormindo pacificamente. 
Sem hesitar, eu rapidamente olhei para a s meninas e percebi que uma delas era bem parecida com a minha bebezinha morta. Era a menor das irmãs, tinha os cabelos ralos e quase brancos e a pele mais clara. 

Rapidamente, eu troquei as roupinhas das bebês, temendo que eu fosse descoberta, o coração aos pulos. Depois, troquei também as pulseirinhas de identificação e coloquei a minha bebê morta ao lado da outra gêmea, deitando a bebê saudável no leito da minha filha.
Esta bebê era você, Aisha. 

Na manhã seguinte, o médico surpreendeu-se com o progresso da minha menininha, e na outra manhã, nos deu altas. Nem sei como pude ir até o quarto de Mayara e despedir-me dela, consolando-a pela perda da sua filha e dizendo que Deus sabia o que era melhor, e que ela deveria tentar ver as coisas de maneira positiva... abracei-a, e então eu, você e Jairo partimos. 

Logo após seu nascimento, eu disse a Jairo que seria uma boa ideia se nos mudássemos de cidade. Eu estava nervosa e agitada, e tanto ele quanto o médico achavam que eu estava sofrendo de depressão pós-parto, e que uma mudança de ares me faria muito bem. Eles não sabiam que eu estava apavorada pelo que tinha feito, e que temia ser descoberta! Jairo pediu transferência de Campos do Jordão para Belém do Pará, e recomeçamos nossa vida.

Dois anos mais tarde, recebi um telefonema; era Mayara! Ela me dizia que tinha desconfiado do que acontecera no dia em que eu deixara o hospital, pois ao segurar a bebê morta nos braços, logo percebeu que ela não era a sua filha. Porém, preferiu nada dizer, sabendo que a sua bebê verdadeira estava viva e seria bem cuidada. Eu fiquei apavorada, tentei negar tudo, mas ela me disse que ficasse tranquila, pois não queria a bebê de volta. Só queria saber se ela estava bem. Também me assegurou que não me denunciaria. Perguntei como ela tinha me encontrado, e ela disse que contratara um detetive particular. Pensei em como ela tinha conseguido pagar por seus serviços, já que era tão pobre, mas eu estava tão nervosa que achei melhor não perguntar por detalhes.

Naquela noite, quando Jairo chegou em casa, eu contei a ele toda a verdade. Ele ficou muito zangado 
Comigo, nós discutimos e ele saiu de casa. Mas voltou uma semana depois, dizendo que me compreendia e que não poderia suportar a vida sem nós duas. Contamos a verdade também a sua avó Beatriz, que apesar de ser totalmente contra o que fizemos, no fundo não queria que a família fosse destruída. Assim, nos mudamos de novo, desta vez, para o interior de São Paulo. A firma onde Jairo trabalhava não tinha filiais por lá, e ele precisou deixar o emprego. Foram tempos difíceis! Mas Mayara descobriu nosso endereço novamente. Desta vez, ela dizia que tinha se casado com um homem muito rico, e que queria ver você, conhece-la pessoalmente. Eu prometi a ela que conversaria com Jairo e que ligaria para ela de volta, marcando um encontro.

Mas o medo de perder você me fez querer sumir novamente, e foi o que fizemos, indo para Curitiba. Mas como você já sabe, seis anos após a nossa mudança Mayara nos redescobriu. Desta vez, ela me disse que queria conviver com você como filha: naqueles quase seis anos em que moramos em Curitiba, Georgina, sua outra filha, tinha contraído uma doença e falecido. Apesar de todo o dinheiro que tinham, ela e o marido não conseguiram salvá-la. Ela parecia desolada, realmente triste, e eu percebi que não havia qualquer sentimento de raiva em sua voz, mas eu não podia simplesmente desistir de você, abrir mão de nossas vidas, Aisha! Mayara me prometeu mais uma vez que não nos denunciaria, e que eu e Jairo poderíamos fazer parte de sua vida. Ela não queria arrancar você de nós, mas gostaria que você soubesse que ela existia, que você tivera uma irmã. Mas o medo me fez convencer seu pai a fugir novamente.

Quanto a Tina, ela sempre soube de tudo, mas jamais interferiu nos assuntos da família e agiu de maneira sempre discreta.

O restante da história você já conhece, filha. Sua avó Beatriz nunca foi favorável às nossas escolhas, e por isso, nós nos distanciamos. 

Na verdade, descobri que ela era quem sempre avisava Mayara de onde estávamos, e também mandava fotografias suas para ela. Eu jamais a perdoei por isso. Mas agora eu sei que estou morrendo, e seu pai já se foi. Sei também que a primeira coisa que sua avó faria, mesmo antes que nós descêssemos à sepultura, seria contar a versão dela dessa verdade, então preferi fazê-lo eu mesma. Só espero que você nos perdoe, minha querida filha, e que tente compreender as nossas razões. Vá conhecer sua verdadeira mãe. Mas por favor, não se esqueça de nós. Jamais. 

Com amor,

Fernanda, sua segunda mãe."

(CONTINUA...)





segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

MADRE - CAPÍTULO 4






MADRE -Capítulo 4

Eu ia e vinha. Tudo era branco quando eu abria os olhos. Logo caía no sono. Havia coisas apitando em volta de mim – aparelhos. Eu não conseguia me mexer nem engolir. Havia rostos estranhos à minha volta de vez em quando, mas eu não conseguia identificar quem eram aquelas pessoas, até que vi o rosto preocupado de minha avó Beatriz. Mas embora ela falasse comigo, meu ouvido só escutava um zumbido insistente, e então eu caía no sono outra vez.

Fiquei naquele limbo durante algumas horas. 

Mas depois eu descobri que na verdade, foram 22 dias. 

Abri os olhos de verdade pela primeira vez, e então a realidade branca mostrou-me suas cores reais: eu estava em uma cama de hospital, cercada de aparelhos e tubos. Um deles entrava pela minha garganta. Minha avó dormia em uma cadeira aos pés da minha cama. Parecia bem mais magra, envelhecida e exausta. Fiquei olhando para ela. Eu ainda não conseguia me mexer, então olhei em volta devagar – minha cabeça doía – e descobri uma pequena janela com as persianas fechadas. Era noite. Minha cabeça doía, minha garganta doía, meus ouvidos zumbiam, e eu tinha a impressão de que toda a parte inferior do meu corpo não existia mais. Fiquei com medo de que minhas pernas tivessem sido amputadas. Olhei para baixo e percebi que elas ainda estavam lá, e o pânico passou. Pensei nos meus pais pela primeira vez: onde eles estavam? Estariam bem? A porta se abriu e uma enfermeira entrou. Quando olhou para mim e meu viu de olhos abertos, ela voltou para o corredor e voltou com um médico: eu estava de volta. Minha avó despertou e segurou minha mão, chorando. 

Então descobri que estava mesmo em um hospital, e que estivera em coma por 22 dias. Meus pais também tinham se machucado bastante e estavam em recuperação em outro quarto. Eu teria que passar por vários tratamentos de fisioterapia antes de andar novamente, pois machucara a coluna, mas o médico me garantiu que meu problema não era definitivo. Eles tiraram os tubos da minha garganta, mas ela ardia tanto, que falar era um sacrifício. O médico me assegurou que eu ficaria bem em alguns dias. 

Minha avó Beatriz só chorava; ela tentava disfarçar, tentava não chorar, mas ela era uma manteiga derretida. Dizia que estava chorando porque estava feliz em me ver bem de novo, me recuperando. Mas depois que comecei a caminhar, após alguns dias de fisioterapia, eu quis visitar meus pais. Só que eles não estavam mais lá. 

Minha avó teve que me contar a verdade: meu pai morreu na hora do acidente, e minha mãe, cinco dias depois. 

No começo, eu não consegui sentir nada. Era como se ela estivesse me contando sobre um filme que tinha assistido, aquela não era a minha vida. Não podia ser. Meus pais não tinham morrido. Se eu, que não estava usando o cinto de segurança, ia ficar bem, como é que eles, que estavam usando o cinto e tinham airbag, poderiam estar mortos? Minha vó então me contou sobre o incêndio após a batida, e me deu detalhes: um caminhão avançou na nossa direção em uma transversal; aparentemente, o motorista caíra no sono enquanto dirigia. O carro foi arrastado e capotou na pista molhada, e então pegou fogo. 

Minha avó me contou que minha mãe ainda sobreviveu por cinco dias, e eu só queria saber se ela tinha sentido dor. Minha vó só concordou com a cabeça, e então me entregou um envelope: ela me deixara uma carta. Minha mãe, apesar da dor, conseguiu ditar uma carta que a enfermeira escreveu para ela e entregou à minha avó. Agora que eu já estava melhor e teria altas do hospital no dia seguinte, minha avó finalmente achou que já era hora de eu ler a carta. Trêmula, ela me estendeu um envelope lacrado. Notei que seu olhar era de medo, e não compreendi o porquê.

(Continua...)




terça-feira, 28 de janeiro de 2020

MADRE - CAPÍTULO 3





MADRE -Capítulo 3

A viagem continuou, mesmo debaixo do temporal que desabara durante a noite e continuava de manhã. A estrada principal estava bloqueada devido a um alagamento, então tomamos uma transversal. Para quem não sabia para onde estava indo, qualquer estrada serviria. Eu estava calada e taciturna durante a viagem, assim como os meus pais. Tinha a impressão de que quando um de nós resolvesse falar, alguma coisa se quebraria para sempre e uma tempestade emocional desabaria, tão forte e letal quanto a que caía lá fora, então eu permaneci calada, fones de ouvido ligados para não escutar a chuva. 

Meu pai dirigiu por mais de duas horas, e então conseguimos voltar à estrada principal. A manhã chuvosa dava lugar a um início de tarde ensolarado, embora um pouco frio, e as nuvens escuras se dissipavam aos poucos, varridas para algum esconderijo por trás do horizonte. Enjoada de ouvir música, abri a janela do carro e, de olhos fechados, deixei que o vento e o sol cobrissem meu rosto. 

Pensava que logo pararíamos para almoçar, o que seria bom, já que meu estômago roncava. Pensava também no meu lindo vestido verde, deixado para trás em uma casa para a qual jamais voltaríamos: o que fariam com ele? O que seria de nossa história, de tudo o que vivêramos naqueles anos? O que meus amigos pensariam quando soubessem que eu e minha família simplesmente desaparecêramos sem deixar notícias? O que seria feito das nossas roupas, móveis e objetos? Pensava em um canal no YouTube que eu assistia de vez em quando, e que mostrava casas abandonadas. Casas cheias de coisas, móveis, livros, roupas, pratos dentro da pia, como se alguém tivesse fugido de repente. Um dia, quem sabe, as nossas casas antigas estariam naqueles vídeos?

O que eu escutei foi um baque forte, e o carro escorregou para a direita. Abri os olhos de repente e vi os airbags dos bancos dianteiros se abrindo. O carro rodou  e então capotou várias vezes antes que eu desmaiasse. Não tive sequer tempo de perceber, de captar a mensagem: “Vocês estão em um acidente de carro.” Porque quando eu finalmente compreendi o que estava acontecendo, não tive tempo de formular a frase. 

Só me lembro de não conseguir abrir os olhos e de sentir um cheiro forte de fumaça. Pessoas gritando, talvez. Senti que alguém puxava meu corpo para fora com força; o engraçado é que eu estava acordada, mas não conseguia abrir os olhos, falar ou me mover. E então, nada.

E então, nada.


(CONTINUA...)




quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

MADRE - Capítulo 2






MADRE - Capítulo 2 

Fui despertada  bem cedo em uma manhã de sábado pelas vozes dos meus pais na sala do apartamento. Minha mãe dizia:
- Eu vi um homem estranho... rondava o prédio... estava tomando notas em um bloco de papel...
Meu pai respondia:
-Não, não pode ser... estamos a quilômetros de distância!
E o diálogo continuava, em vozes sussurradas:
- Precisamos ir embora agora! Ela nos encontrou!
-Mas... a festa... Aisha...
-Esqueça a festa. Vou fazer as malas. Não podemos correr nenhum risco.
-Mas Fernanda, estamos tão bem aqui!
- Não podemos ficar mais, Jairo Seremos encontrados. Não podemos esperar!
-Mas... meu emprego, tudo está indo tão bem, e... o que diremos a Aisha??? Não podemos esperar a festa? É Daqui a três dias.
-Não! Você não entende? Precisamos ir agora mesmo!

E o meu mundo que já estava quase perfeito, construído ao longo daqueles cinco anos, ruiu em menos de um minuto quando meu pai bateu à porta do meu quarto para me explicar que precisaríamos nos mudar novamente. Porém, àquela altura da vida, eu já tinha amadurecido o bastante para exigir uma explicação. Não obedeceria sem saber o que estava acontecendo, e o motivo pelo qual estávamos fugindo há tantos anos. Quem nos perseguia? Por que? Eu queria respostas, e estava disposta a lutar por elas. 

Aos trancos e barrancos, sendo praticamente arrastada para fora do apartamento por meus pais, entrei no carro sem poder sequer despedir-me de meus amigos. Nem cancelamos a festa, que já estava totalmente paga e pronta para acontecer. Todos os convites já tinham sido distribuídos, e pensei na cara dos meus amigos quando chegassem para uma festa de quinze anos na qual a debutante e seus pais estariam ausentes. Pensei na casa maravilhosa que meus pais tinham comprado, e que eu já visitara, e que estava sendo decorada naquele momento para que pudéssemos nos mudar. 

Eu odiava meus pais. Sentada no banco de trás do carro, eu tentava conter as lágrimas que caiam aos borbotões. Pensava em meus amigos, na escola, nos professores, e a cada pensamento e lembrança, eu afundava um pouco mais. Nunca mais estaria com eles. Nunca mais abraçaria minhas amigas ou iria às festinhas que elas organizavam. 

Minhas lágrimas embaçavam a paisagem lá fora, que já estava cinzenta e prenunciava uma tempestade para breve. Meus pais permaneciam calados. O silêncio que reinava no carro era quase insuportável, e a atmosfera estava tão pesada, que meus ombros doíam. 

Quando eu perguntava o porquê de estarmos fugindo novamente, minha mãe dizia que assim que encontrássemos um novo lugar (estávamos dirigindo para longe sem destino, apenas para o mais longe possível de onde estávamos, deixando para trás todas as nossas coisas), eles me contariam tudo. Lembrei-me de repente do meu vestido verde que ficara para trás, pendurado no cabide do quarto de Tina para que fosse passado. Doía ainda mais o meu coração saber que Tina nem tinha sido avisada que tínhamos partido, pois ela estava passando alguns dias no sítio de uma amiga, e lá não tinha wi-fi ou sinal de celular. Meu pai disse que entraria em contato com ela mais tarde. Ela não teria sequer onde morar quando voltasse! Eu não podia entender ou aceitar o que meus pais estavam fazendo. O que seria de Tina? O que seria dela, eu repetia incessantemente. Minha mãe prometia que mandaria passagens para que ela nos seguisse quando encontrássemos um lugar para ficar, e que eu não me preocupasse com ela, pois ela tinha uma conta reserva em um banco para situações como aquela. 

Mas que situação era aquela, afinal? Por que eles não me contavam logo? Minha mãe respondia: “Porque é uma história muito longa e deve ser bem contada. Deveríamos nos sentar e falar sobre tudo com calma, e não estressados como estávamos.”

No final da tarde, a chuva desabou. Estávamos em algum lugar entre Curitiba e Santa Catarina. Eu nem me interessei em saber direito onde estávamos. Chorara o dia inteiro. Sentia-me cansada, totalmente esgotada e fraca. Me recusara a comer qualquer coisa quando paramos em um restaurantezinho à beira da estrada. 

Apenas bebi uma garrafa de água mineral. Eu só queria morrer, sumir, e queria que meus pais fossem para o inferno por estarem fazendo aquilo comigo, mas eles só repetiam que em breve eu entenderia tudo. 
Finalmente paramos em um motel de quinta, na beira da estrada, para passar a noite, por total falta de opção. O lugar era sombrio e um tanto sujo, e fiquei com nojo de tocar no balcão da recepção, mas meus pais me asseguraram de que logo tudo mudaria, e quem sabe, poderíamos voltar à Curitiba. Aquela possibilidade me encheu de esperança, e comi o sanduíche que meu pai tinha comprado para mim no McDonald’s, há alguns quilômetros atrás. 

Lá fora, a chuva desabava e não parecia disposta a ceder. Adormeci sem perceber, o travesseiro molhado de lágrimas, sabendo que em apenas dois dias, meus amigos estarrecidos estariam em minha festa de debutante sem mim. Naquela noite, sonhei com um rosto. Uma mulher estranha, muito bonita, que me olhava de longe e parecia muito ansiosa. De repente, percebi que aquela mulher estranha estivera em vários de meus sonhos desde a infância, e que aquele rosto que tantas vezes eu tinha ignorado por achar desimportante, estivera presente em minha vida pouco antes de todas as vezes em que fugíamos. 

(continua...)







segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

MADRE - Capítulo 1





MADRE - CAPÍTULO 1



Eu me lembro de um tempo, quando eu era criança, em que meus pais andavam nervosos e suas palavras sussurradas deslizavam pelos cantos da casa, sendo abafadas para que não chegassem aos meus ouvidos: “Aisha não deve saber.”  

Eu tinha cinco anos. Vó Beatriz vinha ficar comigo, e tentava distrair-me do que quer que fosse que pudesse estar acontecendo, e que eu não entendia. Nós duas íamos lá para fora brincar entre as árvores e plantas do jardim e lá ficávamos durante muito tempo, até que ela se cansava, e  sentando-se sob o frondoso choupo e abrindo algum livro, pedia-me que continuasse a brincar sozinha um pouco. Mesmo assim, vó Beatriz ainda participava da brincadeira, erguendo os olhos das páginas quando eu a chamava, e dizendo “Ah, sim, querida, que lindo!” Sempre que eu lhe mostrava alguma coisa.

Era sempre assim: meu pai me levava à escola na parte da manhã e minha avó vinha tomar conta de mim na parte da tarde. E é claro, nós tínhamos Tina, a nossa ‘secretária do lar,’ como mamãe costumava chamá-la. Estava conosco há muito tempo, e eu não me lembro da minha infância sem ela. Tina era uma mulher de meia-idade eficiente e alegre, mas também discreta e silenciosa quando necessário. Tina não tinha familiares morando próximos a nós, e éramos, para ela, a sua família. E era ela quem cuidava de mamãe naqueles tempos sombrios. Lembro-me dela dizendo: “Coma pelo menos um pouco, Dona Fernanda. Vai precisar de forças.”

Minha avó e minha mãe não eram exatamente grandes amigas; tinham a tradicional relação de sogra e nora, suportando-se e respeitando-se o máximo que conseguiam – até mesmo uma criança como eu podia perceber que as duas não eram e jamais seriam grandes amigas. Mas havia um  segredo que ambas partilhavam, e que escondiam de mim, embora as duas discordassem sobre como mamãe deveria proceder a respeito daquilo. Minha mãe quase gritava: “Beatriz, quantas vezes eu preciso dizer que não se meta nas nossas vidas?” Minha avó respondia: “Ninguém é feliz carregando pela vida algo assim, Fernanda. Você e Jairo precisam encarar a verdade dos fatos!” E então a discussão começava, até que meu pai interferisse e as fizesse lembrar de que eu poderia estar escutando: “Vocês querem por favor baixar o tom de voz? Aisha está ouvindo, e ela entende muito mais do que ambas podem supor.”

Morávamos em uma grande casa antiga que tinha sido reformada pelos meus pais, que eram arquitetos, e eles mantiveram as características da construção original acrescentando um pouco de modernidade, como uma jacuzzi, sauna e uma cozinha ampla e moderna. Os amigos dos meus pais vinham sempre nos visitar nos finais de semana, ocasiões em que a casa ficava cheia e festiva. Costumavam trazer seus filhos, que eram meus coleguinhas de escola também, e brincávamos juntos no enorme sótão que meus pais transformaram em um quarto de brinquedos. Lembro-me daqueles tempos vivendo na casa como sendo muito prósperos e felizes, apesar das habituais discussões entre minha mãe e minha avó.

Meus pais tinham muitos amigos, e eu gostava de brincar com as crianças de seus amigos. Nos finais de semana, quando não viajávamos para algum lugar, havia sempre convidados para o almoço ou a happy hour de sábado. Aos domingos, costumávamos sair – apenas meus pais e eu.
Não conheci os pais de minha mãe, pois eles morreram antes de eu nascer, e tenho poucas memórias sobre meu avô paterno, que morreu quando eu ainda era bem pequena.

Mas um dia, as coisas começaram a se transformar sem que eu tivesse controle sobre o que estava acontecendo, o que me deixou bastante insegura. Lembro-me da nossa mudança apressada de Campos do Jordão para Belém do Pará, do outro lado do país: meus pais me tiraram do colégio de repente, sem qualquer explicação, ignorando minhas lágrimas de protesto, pois eu adorava as tias e meus coleguinhas de classe. Tive que deixar minha avó para trás, e depois daquilo, eu passei a vê-la bem pouco, o que aumentou ainda mais a tensão entre ela e minha mãe. Nós nunca a visitávamos. Era sempre ela quem vinha passar alguns dias conosco duas vezes ao ano, nos períodos de natal e nos meus aniversários.

 Felizmente para mim,Tina foi embora conosco. Tivemos que alugar um apartamento, e ela precisou abrir mão do conforto que desfrutava em nossa casa, passando a dividir o quarto comigo. Meu pai dizia que seria por pouco tempo, só até conseguirmos vender a casa, o que, acreditava ele, não demoraria muito. 

Porém, os tempos prósperos e felizes estavam terminando, e eu não desconfiava do que estava por vir.

Eu não gostava do nosso novo apartamento. Era pequeno e escuro e não tinha o quintal enorme ao qual eu estava acostumada, mas meu pai me disse que assim que conseguisse vender a nossa antiga casa, resolveria o problema. Eu sentia falta de meus coleguinhas. Sentia falta de minha avó e da nossa linda casa. Detestava o clima quente da cidade e não gostava da nova escola. Foi uma época triste para mim, mas a melhor coisa é que mamãe começou a recuperar-se aos poucos do seu  estado nervoso e retomou sua vida normal. Até que precisamos nos mudar de novo, após menos de um ano.

Desta vez fomos para uma cidade do interior de São Paulo que não tinha quase nada. Meus pais alugaram uma casa velha e feia, escondida e afastada do centro. Eu não entendia porque tínhamos que viver ali! Após dois anos, já estava quase me acostumando à nova escola, e de repente, uma outra mudança!

 Minha avó não nos visitou nenhuma vez enquanto moramos naquela casa. Quando eu reclamava, meus pais me prometiam que logo tudo estaria resolvido, e que toda aquela situação era temporária e eu conviveria com ela novamente. Certa vez, escutei uma conversa entre minha mãe e Tina, onde minha mãe dizia que era melhor que não chamássemos muita atenção e permanecêssemos incógnitos por enquanto. 

Após quase dois anos  vivendo na nova casa feia, nos mudamos para outra cidade – desta vez, uma cidade grande: Curitiba – passando a morar em outro apartamento. A cada mudança, deixávamos tudo para trás: nossos móveis, a escola, a maioria das nossas roupas. Ficamos lá por mais tempo: aproximadamente, cinco anos. Fiz novos amigos e estava começando a me acostumar com nossa nova vida. Adorava Curitiba, uma cidade agradável, bonita e próspera. Meu pai conseguiu um emprego como free lancer em uma firma de arquitetura e estávamos indo bem.

Finalmente, após quase seis anos morando no apartamento, um dia meu pai chegou em casa radiante: vendera a nossa antiga casa! Naquela noite, fomos todos jantar fora juntos – inclusive Tina – e eu pude escolher qualquer coisa que eu quisesse comer, até mesmo uma banana-split, apesar de ser inverno. Era o mês de junho e meu aniversário estava próximo; vovó chegou para ficar conosco, e como sempre, dividiu o quarto comigo, e então, naquelas ocasiões, Tina dormia no sofá da sala. 

Eu gostava da presença da minha avó. Conversávamos até mais tarde, assistíamos TV juntas nas noites de sexta-feira e ela me mimava de todas as formas possíveis, o que deixava minha mãe furiosa. Às vezes, elas acabavam discutindo, e vovó ia embora de repente, e então meus pais começavam a discutir por causa dela.

Éramos uma família boa, embora não tão equilibrada, mas éramos felizes à nossa maneira. Eu me sentia amada e protegida. Tinha orgulho dos meus pais, da minha avó e também de Tina. Crescera em um ambiente acolhedor, em um estilo de vida considerado muito bom, se comparado à maioria das pessoas. A única coisa que me incomodava, é que eu estava totalmente proibida de ter redes sociais com meu verdadeiro perfil, e meus pais diziam que era para minha própria segurança. Não podia, de jeito nenhum, postar fotos na internet ou usar meu nome verdadeiro. E esta era uma regra de ouro, que se eu tentasse burlar, ficava semanas sem poder usar o celular, pois meus pais tinham um aplicativo que vigiava todos os meus passos online.

Eu estava radiante, pois finalmente, teríamos uma casa com quintal e meu próprio quarto outra vez, e meus pais tinham me prometido que seria em Curitiba. Eu contava então quinze anos de idade, e tinha feito muitos amigos na escola onde estudava desde que nos mudáramos para Curitiba. Tinha até um crush com quem trocava olhares, e as minhas amigas diziam que com certeza ele se declararia no dia da minha festa de quinze anos, que meus pais vinham planejando há meses: eles tinham alugado um belo espaço, encomendado as comidas e bebidas, o DJ e a banda, enfim: tudo estava pronto para as comemorações do meu aniversário! 

Logo os convites começaram a serem distribuídos. Só faltava eu me decidir por um vestido – mas todos pareciam ou pomposos demais, ou simples demais. Até que finalmente eu achei o meu vestido ideal, todo verde folha, saia rodada feita por várias camadas de tule e corpete justo bordado em paetês. Quando me olhei no espelho com ele, senti que eu tinha realmente crescido e me tornado uma bela moça. Minha mãe e minha avó choraram discretamente, mas fingi não notar para não aumentar o drama.

Na escola, meus amigos não falavam em outra coisa a não ser da minha festa de quinze anos e o encerramento do ano letivo, que coincidiam ambos no final do mês de novembro.

Porém, quando faltavam apenas alguns dias para  a festa, tive uma notícia horrível.

(continua...)





quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

BOB TINHA UM SEGREDO






Bob tinha um segredo. Um dia, quando ele ainda era uma criança, este segredo apareceu para ele na forma de um amigo imaginário que lhe falava verdades sobre as pessoas que o cercavam. Às vezes, ele repetia aquelas verdades perto dos adultos, e era severamente repreendido. Mas a pior coisa do mundo, era quando seu amigo imaginário dizia verdades sobre ele mesmo. Verdades que Bob não queria ouvir.

Certo dia, durante a visita de uma velha tia da qual ele não gostava, o segredo de Bob gritou tão alto, que seus pais acharam melhor trancá-lo no quarto, de castigo, até que a visita terminasse. Fato é que a tal tia jamais voltou a pisar naquela casa, e quando eles se encontravam em ocasiões de reuniões de família, ao avistar Bob, a pobre mulher fugia assustada para o primeiro banheiro, ou para a cozinha – qualquer lugar onde não tivesse que encontrar Bob. E a mesma coisa começou a acontecer em relação a outros parentes e conhecidos, até que finalmente Bob amadureceu o suficiente para compreender que era melhor não mostrar o seu segredo a ninguém. As pessoas não gostavam de encará-lo.

E assim, bob cresceu com seu segredo, que passou a perturbá-lo cada vez mais. Ele tentava desesperadamente encontrar um jeito de conviver com aquele terrível destino sem perder a sanidade. Achou uma maneira não muito eficaz, mas que poderia servir pelo menos em alguns momentos: passou a ignorar seu segredo. Pensou: “Se eu fingir que ele não existe, as outras pessoas não o perceberão.”

Mas o segredo de Bob não aceitava ser deixado assim, de lado. Começou a gritar cada vez mais alto dentro da cabeça de Bob, que passou a tomar antidepressivos e fazer análise com um psiquiatra. Dr. Fernandez, o psiquiatra, vivia dizendo que Bob precisava abrir-se, pois ele não poderia penetrar em sua mente e resolver seus problemas por ele. Mas Bob fechava-se em si mesmo, apertando os olhos para não se ver por dentro. Veio a síndrome do pânico. Bob tentava cada vez mais desesperadamente esquecer que ele tinha um segredo.

Mas o medo de sair de casa fez com que a solidão o obrigasse a encarar de frente seu segredo. Os dois passaram alguns dias e algumas noites se olhando e conversando. E a cada palavra e gesto, mais Bob se convencia de que não conseguiria viver se mostrasse seu segredo ao mundo. Sim, ele tinha um segredo que era grande demais, difícil demais de ser enfrentado. 

Assim, após uma longa conversa com seu segredo, Bob arquitetou um plano que ele achou que resolveria tudo para ele: esperou que seu segredo caísse no sono, e quando isso finalmente aconteceu, ele foi até a cozinha e pegou uma faca grande e afiada. Dirigindo-se à sala de estar, onde seu segredo adormecido se encontrava, Bob ergueu a faca acima da própria cabeça e golpeou seu segredo impiedosamente, várias vezes.

Bob foi encontrado alguns dias mais tarde por parentes, que após tentarem entrar em contato com ele várias vezes sem sucesso, decidiram invadir sua casa. 

Ele não dizia coisa com coisa. Seu olhar parecia perdido em algum lugar distante deste mundo, onde ninguém jamais conseguiu ir. Bob terminou seus dias em um manicômio, velado por seu segredo.





A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...